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celeridade e troca de papéis para punir na informalidade

4.2 A monetarização da punição e seus encantos

Para melhor compreender o modo como as punições são escolhidas nos procedimentos de Jecrim e os sentidos que mobilizam é preciso ter em conta que a fiscalização do cumprimento da medida alternativa negociada é de responsabilidade do juiz que a homologa12. Assim, cada um dos cinco juízes criminais é responsável por gerir o cumprimento das medidas alternativas decididas em suas audiências. Homologado o acordo cabe a eles fiscalizarem seu cumprimento e, se isto não ocorrer comunicarem os respectivos promotores, para que tomem providências procedimentais, decidindo se darão prosseguimento ao processo, propondo a denúncia do autor.

Deste ponto de vista, apesar de o juiz não intervir na proposta feita em audi ia,àpoisàaàt a saçãoàpe alà pe te e àaoàp o oto ,àoà agist ado,à espo s velà em fiscalizar o cumprimento do acordo, tem prioridades gestionárias que, muitas vezes, se impõem tacitamente sobre as escolhas do promotor. Isso ficou mais evidente em uma das varas, na qual a medida ofertada é, invariavelmente, o pagamento de dez dias multa. Lá, pude confirmar, em conversa informal com a juíza, que essa opção decorre de seu posicionamento sobre como deve funcionar o Jecrim, posição bastante conhecida dos promotores que com ela atuam. Seu intuito é determinar uma pena de caráter monetário com valor abaixo do salário mínimo, viabilizando o rápido aceite da proposta visando não só agilizar o andamento da audiência, mas também garantir

12 Algo distinto se passa na justiça comum, na qual há uma vara de execuções criminais com um juiz ocupado exclusivamente com o gerenciamento da pena determinada pelos demais juízes criminais da mesma comarca.

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minimamente o cumprimento da medida. Um certa simbiose entre os interesses gestionários do juiz e a proposta do promotor foi também notada nas demais varas. Ela revela que ao determinarem a punição, os promotores em consonância com os juízes também têm os olhos voltados para as maiores possibilidades de sua aceitação e de seu cumprimento por parte do autor. Um fator relevante na escolha da oferta punitiva está, portanto, ligado à dimensão gestionária, isto é, às garantias mínimas de que o caso não voltará ao já abarrotado sistema criminal, sendo definitivamente dejudicializado.

Nesse aspecto, a pena pecuniária apresenta vantagens em relação à PSC, pois enquanto valor monetário corresponde a um bem cuja liquidez propicia maiores margens de negociação. O parcelamento do pagamento em até duas vezes ou o adiamento do pagamento para quinze ou até trinta dias são estratégias recorrentes para viabilizar a transação penal. Ainda nessa perspectiva gestionária, se comparada à PSC, a prestação pecuniária goza de mais instantaneidade. Seu processamento exige do infrator que apresente em cartório, na data combinada para saldar a dívida, o comprovante do pagamento em favor da instituição assistencial, cujos dados bancários encontram-se na cópia do Termo de Audiência que lhe é entregue. Nenhum desses atos, seja o comparecimento em agência bancária para realizar o depósito na boca do caixa 13, seja a apresentação do comprovante em cartório, exigem o comparecimento pessoal do infrator, podendo ser realizado por terceiros, fator que reforça a impessoalidade que marca as trocas monetárias.

Como apontado, sua execução é instantânea, esgotando-se no ato do pagamento, dando-lhe vantagens operacionais em relação à PSC. Sob essa perspectiva, vê-se que a prestação pecuniária permite que o cumprimento da pena esteja circunscrito ao território de controle do juiz, isto é, ao seu cartório, dispensando investimentos adicionais em funcionários, além dos já disponíveis. Esse controle do cumprimento da pena mobiliza os cartorários e, no máximo, a intermediação de uma agência bancária na qual o depósito é realizado e eletronicamente controlado.

13 Essa recomendação sempre feita e refeita em audiência tem por objetivo evitar que o pagamento seja realizado em caixas eletrônicos, pois estes não registram a identidade do depositário, o que somente é possível se realizado nos guichês de atendimento pessoal.

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A PSC, por oposição, arrasta-se no tempo e também no espaço. A punição mínima consiste em 8 horas semanais de trabalho comunitário durante 4 semanas. Para agenciá-la, os juízes contam com os serviços da Central de Penas e Medidas Alternativas (CPMA) que lhes remete relatórios mensais individualizados a respeito do cumprimento das horas. Trata-se, portanto, de uma punição que exige maior investimento público e de uma sanção que se prolonga no tempo de vida do apenado e também do Judiciário. Ademais, a PSC é uma punição estritamente individual, cujo cumprimento não pode ser socializado, como na prestação pecuniária, na qual a dívida com a justiça pode ser distribuída entre amigos e parentes dispostos a emprestar dinheiro. O caráter intransferível e personalizado desta punição torna seu cumprimento mais vulnerável às intempéries da vida de um cidadão em movimento, do qual é demandado esforço constante para adequar a pena à sua rotina pessoal e profissional. Por isso, é vista também como uma pena mais vulnerável à descontinuidade.

Além disso, se a prestação pecuniária se esgota na instantaneidade do pagamento controlado diretamente pelo cartório, a PSC exige uma execução que ultrapassa o espaço do Judiciário envolvendo a atuação da CPMA do município. Por isso, exige também a disposição dos juízes em transferir parte do poder de fiscalização e controle da punição para uma instituição externa, ligada ao Poder Executivo estadual14.

Nenhum juiz ou promotor chegou a declarar explicitamente reticências quanto a essa transferência de poder. Ela foi insinuada em conversas a respeito dos trâmites que envolvem a rotina dos agenciamentos da PSC. Em uma das varas, por exemplo, em caso de determinação de PSC, no Termo de Audiência a juíza faz constar a data e hora em que ele deve comparecer à CPMA. Mais do que informar o apenado, esse procedimento tem outro propósito, segundo explicou-me a juíza. Como ela enfatizou: Euà a oàho aàeàdataàpa aàeleàesta àl àpo ueàissoàfa ilitaàoà euà o t ole .àE àout aà

14 Nesse aspecto, é importante informar que a CPMA tem o compromisso de remeter aos juízes relatórios individuais e mensais a respeito das horas trabalhadas e ainda devidas. Frise-se ainda que ela está geograficamente distante do juiz, situada em outra localidade da cidade e, com isso, as informações são trocadas por meio de visitas semanais dos estagiários da CPMA ao fórum.

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vara adota-se estratégia semelhante com a mesma finalidade. Segundo explicou-me a promotora ao explanar sobre a PSC:

O autor já sai da audiência com o Termo de Audiência e tem cinco dias para comparecer na Central de Penas. Se ele não for nos cinco dias a gente já fica sabendo [...] Quem não cumpre nos cinco dias, não vai mais cumprir, então passados esses cincos dias a gente já tá atrás dele porque senão vai prescrever [...] Eles jogam muito com a prescrição, como é que eu vou deixar? De jeito nenhum! (promotora 2)

A PSC apresenta-se, nesta concepção, como uma punição mais sujeita à prescrição – ou seja, ao descumprimento –, cujo efeito é pernicioso para a afirmação e respeitabilidade do sistema penal. A PSC exige, portanto, vigilância redobrada porque sua conclusão pode arrastar-se no tempo, o que a torna mais suscetível àsintempéries e imprevisibilidades da vida cotidiana.

Mas não se trata somente disso. Pelos investimentos e apostas que exige, essa modalidade punitiva guarda desconfianças quanto às suas finalidades restitutivas e dissuasivas. Nesse aspecto, é importante ressaltar que a PSC envolve resultados (em termos de benefício para a instituição favorecida e efeitos pedagógicos no infrator) que podem ser duvidosos, tal como declarou em entrevista um promotor:

A gente recebe o relatório [da CPMA] e lá dá para ver bem que [a pena] é aplicada, mas a gente nem sabe qual o resultado desse trabalho comunitário. A gente sabe que ele [o apenado] foi lá, fez uma entrevista, prestou o serviço em algum lugar e horário. Vemos a assinatura de que ele compareceu. Mas como ele prestou o serviço a gente não sabe. Eu nunca vi um caso voltar informando que o serviço foi mal feito. Essa é uma boa coisa para avaliar porque não adianta a pessoa ir lá, fazer o serviço de qualquer jeito, assina e vai embora. [...] Além disso, a gente não sabe como está sendo a efetividade e eu nem sei se a Central tem esse retorno, isto é, se eles conseguem avaliar isso. A prestação de serviço deveria ter esse caráter pedagógico, ter que ir prestar um serviço e ali ele começar a pensar no que fez, mas a gente não tem uma avaliação final para ver. (promotor 3)

Para esse promotor, a determinação da PSC envolve mais do que a necessidade de controle das horas trabalhadas, mas também a expectativa quanto à qualidade do

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serviço prestado e dos seus efeitos na transformação do comportamento do apenado. É, portanto, uma punição exigente na perspectiva de sua fiscalização e controle de seus resultados. Tanto a finalidade restitutiva desta punição, medida pelo trabalho e à feito à à o u idade,à ua toà seuà i tuitoà t a sfo ado ,à edidoà pelaà potencialidade reflexiva do apenado sobre o crime cometido são, para ele, difíceis de averiguar.

Assim, entre uma punição sem grandes desafios gestionários e grandes promessas transformadoras, mas que traz mais garantias de cumprimento, e outra que exige incremento na fiscalização, transferência de parte do poder de punir para um órgão exógeno e uma promessa de transformação no indivíduo difícil de ser averiguada, opta-se, em geral, pela primeira, isto é, a prestação pecuniária.

Entre as duas punições em meio aberto estabelece-se uma hierarquia na qual o risco de descumprimento é um dos critérios mais observados na elaboração da proposta de transação penal. O risco do descumprimento está associado, por sua vez, não somente às características intrínsecas a esses dois tipos de punição que se opõem – de um lado a liquidez, impessoalidade e instantaneidade da prestação pecuniária e, de outro, a densidade e pessoalidade da PSC, uma pena que só se consome no tempo. Na avaliação deste risco evidencia-se também as dificuldades de promotores e juízes lidarem com um modo de punir em liberdade, quando esta exige um certo deslocamento do controle punitivo em direção para instituições externas ao Judiciário. Entre uma forma de punir mais do que secular, semelhante à multa, e uma sanção com características gestionárias inovadoras, fica-se com a primeira15.

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Não foi possível verificar de maneira mais minuciosa até que ponto a destinação dos recursos provenientes da prestação pecuniária potencializam o capital político de promotores perante as instituições assistenciais do município, cadastradas para receber tais doações. Entretanto, uma das promotoras, durante entrevista, criticou o comportamento de determinados colegas que incluíam nesta lista entidades de sua preferência situadas fora da comarca, contrariando o recomendado. Ressalte-se que o depósito da prestação pecuniária é feito diretamente pelo infrator na conta da instituição indicada no Temo da Audiência Preliminar. A questão parece-me relevante, pois demonstra que o reforço do capital político dos promotores junto à "comunidade", proporcionado por estas doações, pode também explicar a preferência pela prestação pecuniária.

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