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O serviço comunitário: lições de repressão e dissuasão

celeridade e troca de papéis para punir na informalidade

7 Dirigir em alta velocidade s/habilitação 3 meses promotor 1 2ª

4.5 O serviço comunitário: lições de repressão e dissuasão

Comecemos pelo desacato. Tais casos tiveram uma presença quantitativamente marcante nas audiências observadas.30 Sua grande recorrência indica que se trata de uma infração pouco tolerada, afinal, a desobediência civil presente no ato de desrespeito a uma autoridade pública – em geral, por meio de xingamentos a policial – viola a legitimidade do poder público em manter a ordem. Do ponto de vista dos desfechos, as audiências referentes a esses casos não destoam das demais, tendo sido verificada a tendência predominante em favor da transação penal, baseada na prestação pecuniária. Observando as audiências verifiquei que as propostas seguem o padrão de oferta de um salário mínimo de prestação pecuniária ou um mês de PSC, cabendo ao infrator escolher entre essas duas opções. Por vezes, essa equivalência foi alterada propondo-se no lugar de um, três meses de PSC, com o claro intuito, já mencionado, de obter-se o aceite da prestação pecuniária de, invariavelmente para esses casos, um salário mínimo. Diante disso, a oferta de 6 meses de PSC em caráter originário, isto é, sem a contraproposta do pagamento em dinheiro, sobressaiu-se como uma punição severa para os padrões da comarca.

Observe-se que este foi o mais longo tempo de pena estabelecido em todas as audiências observadas. A descrição desse caso permite verificar que além da intencionalidade em cometer a infração e dos riscos nela contidos, outros elementos justificam a determinação da PSC em caráter originário. A audiência aconteceu durante pesquisa piloto, na tarde de 7 de novembro de 2006, e assim a relatei em meu caderno de campo:

Entram na sala de audiências um advogado já conhecido da juíza, o promotor, e um homem de terno e gravata que segura uma pasta 007, seu nome é Marcelo. Todos se sentam diante da juíza. O promotor examina rapidamente o processo e anuncia, com argumentos técnicos, o impedimento para a oferta de transação penal, tendo em vista a existência de condenação anterior de Marcelo por desacato. É o próprio Marcelo quem contradita laconicamente o argumento do promotor, utilizando-se de

30 Para ilustrar essa forte recorrência recomendo o exame da Tabela 7 apresentada neste capítulo. Nela vê-se que juntamente com a embriaguez no volante, o desacato foi a infração mais tematizada nas audiências preliminares negociais.

192 várias terminologias técnico-jurídicas para dizer que não poderia ser considerado reincidente. Percebo então que Marcelo é advogado. O promotor consulta o Código de Processo Penal e diz: O senhor tem razão . A juíza intervém levantando a dúvida a respeito do cabimento da transação penal: Mas ele tem condenação no mesmo crime... . O promotor prossegue, decidido em oferecer a transação penal: A condenação anterior foi pecuniária e não vejo obstáculo para a transação penal. A solução é a transação penal com prestação de serviços à comunidade, durante seis meses, com oito horas semanais . Marcelo e seu advogado silenciam, sinalizando consentimento em relação à proposta. O Termo da Audiência é impresso pela escrevente e todos assinam. Marcelo e seu advogado agradecem e saem.

Mais tarde, terminada a bateria de audiências, a juíza a quem eu já havia sido apresentada anteriormente, nota minha presença e pergunta solicitamente se havia alguma dúvida a respeito do que eu tinha assistido. Tentando compreender melhor o que havia se passado na audiência de Marcelo, comentei sobre a condescendência do promotor em propor a transação penal mesmo em um caso de reincidência em menos de cinco anos, como veda a Lei 9.099/95. Ela, uma juíza conhecida como linha-dura, fez questão de justificar a decisão do promotor. Segundo ela, a interpretação generosa da Lei para permitir que o rapaz tivesse o benefício da transação e não fosse processado havia sido compensada pela determinação de uma pena alternativa severa.

Lendo o inquérito policial percebo do que trata a situação. O desacato teria ocorrido contra um escrivão de polícia, nas dependências de uma das delegacias da cidade na qual um cliente de Marcelo estava detido por tráfico de drogas.

Observa-se neste caso a intenção deliberada do promotor de evitar o processo, mesmo tendo diante de si um indivíduo com currículo desfavorável à transação penal: um advogado de traficante de drogas, reincidente em crime de desacato. Ao invés de denunciá-lo, tornando-o réu em processo, o promotor aparentemente generoso optou pela transação penal, para que ele cumprisse a mais severa das punições previstas para os Jecrim's.

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A PSC foi a punição preferida pelo promotor para figurar em um perverso jogo de compensações cuja finalidade foi a de promover de maneira célere um castigo prolongado a alguém que, mesmo conhecedor da lei e da ordem, ousou desacatar as autoridades públicas por duas vezes. A partir de uma criativa manobra procedimental o promotor evitou o processo e garantiu a severidade do benefício . Para compensar a aparente benevolência da colher de chá em permitir a transação penal poupando o advogado de ser processado, cobrou uma pesada tarifa, afinal nada poderia ser mais desabonador para um profissional ligado à justiça do que estar exposto a uma penalidade pública, ao invés de manter-se anônimo com o pagamento de uma prestação pecuniária que sequer foi aventada. A finalidade do promotor não foi outra senão fazer da PSC, a ser cumprida ao longo de seis meses, uma forma de sofrimento inesquecível.

Verifica-se que a PSC e sua dosimetria foram determinadas levando-se em consideração não somente a gravidade do crime de desacato, mas a reincidência de Marcelo que o cometeu por duas vezes dentro da delegacia, no exercício da profissão de advogado. Segundo declarou-me o promotor que decidiu por tal punição:

O direito penal tem duas finalidades: repressiva em relação àquele que comete o crime e preventiva na medida em que ao punir aquele que cometeu um crime, o resto da sociedade está vendo que [alguém] ao cometer um crime vai ser punido.

Para assegurar as finalidades repressivas e dissuasivas o promotor aposta, como visto acima, em uma PSC de longuíssima duração.É esta a punição que, em um caso reputado como grave, assegura, para ele, a repressão e a dissuasão, finalidades precípuas da pena, ainda que se trate de crimes de menor potencial ofensivo .

Observa-se, portanto, que na prática punitiva exercida no âmbito de uma Justiça alternativa reproduz-se a dicotomia crimes graves e leves, medidos também segundo os antecedentes do infrator, ainda que não expressamente declarados. A essa escala de crimes corresponde também uma escala de penas e nesta a PSC tem lugar privilegiado como aquela que mais pode assegurar as finalidades repressivas e dissuasivas da punição. A PSC é a medida que guarda a dose de sofrimento minimamente necessária quando se quer punir de verdade na justiça alternativa .

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