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Conflitos contra a justiça pública: a soberania da transação penal

celeridade e troca de papéis para punir na informalidade

3.5 Conflitos contra a justiça pública: a soberania da transação penal

Como afirma Kaminsky (2009, p.14), Ilà àaàpasàd u it ào tologi ueàduà i e;à s ilàe isteàu eàpossi ilit àdeàleàd fi i ,à està eàpasàpa àleà o po te e tàai sià ualifi ,à dont les figures sont hétéroclites, mais par la sanction qui lui est réservée . Assim, é pela pena prevista que a Lei 9.0099/99 circunscreve quais comportamentos são reputados como menos ofensivos ao interesse público e, portanto, passíveis de tratamento pelo Jecrim. Como consequência, o que se compreende juridicamente o oà i f aç esà deà pe ue oà pote ialà ofe sivo à o espo deà aà u aà ga aà extremamente variada de comportamentos que envolve não somente os conflitos interpessoais já tratados, mas também o que se denomina na linguagem forense de conflitos contra a justiça pública.

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A esse respeito vale citar o depoimento de Fernanda. Encontrei-a também em uma das visitas à Central de Penas e Medidas Alternativas. Tratava-se de uma jovem que havia sido flagrada dirigindo alcoolizada e por isso deveria realizar a prestação de serviços. Perguntei-lhe se interpretou o desfecho da audiência co oà pe a àouà e efí io e, ao responder-me, disse ter uma dupla perspectiva: por um lado sentia-se penalizada, pois como disse, oà eà ouvi a ,à oà tiveà aà ha eà deà dize à oà ueà aconteceu, não sei o que pensaram de mim, se sou uma pessoa que bebe ou alguém que merece uma segu daà ha e;à oàvejoàaà elaç oàe t eàoà ueàfizàeàissoàa ui ;àpo àout o,àviaà o oà e efí io ,àpoisàà pode iaà te à dadoà e à algoà pio , referindo-se a um eventual processo e suas consequências. E assim

o luiu:à Vejo como pena pelo descaso, achei que fosse entrar em uma sala com pessoas assistindo, tal como nos filmes americanos e não foi nada disso, meu advogado me orientou a aceitar o que me ofe e esse ,àoàp o oto à alàolhouàpa aàoà euà asoàeàesta ele euàaàpe a .Co tou-me ainda que ficou surpresa ao ver a pauta de audiências e constatar que ocorriam audiências de cinco em cinco minutos. Além de Fernanda, out osà auto esà doà fato à deà audi iasà ueà oà p ese ieià o e ta a à o à ressentimento a impossibilidade de não terem podido explicar-se durante a audiência, mesmo sabendo- seà ulpados .àCu iosa e te, essa experiência facilitava o trabalho das atendentes da Central de Penas

ueàaoà ealiza e àasàe t evistasà o àessesà ape ados à– a fim de traçar seus perfis e encaminhá-los a postos de trabalho – contavam com uma clientela totalmente disponível para falar de si justamente pelo fato de não terem tido tal oportunidade em audiência.

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Os conflitos interpessoais correspondem a situações nas quais a infração penal é identificada a cenários de tensão envolvendo disputas materiais e/ou morais entre duas ou mais pessoas, em geral conhecidas, polarizadas na dicotomia autor-vítima. Por distinção, os conflitos contra a justiça pública referem-se a situações em que esta polaridade não se estabelece entre duas pessoas fisicamente consideradas, mas entre aà pessoaà doà auto à eà u à e teà a st ato,à oà i te esseà pú li o à viti adoà pelaà transgressão. Isso não significa, entretanto, que tensões entre pessoas não estejam aí p ese tes,à poisà oà i te esseà pú li o à à otidia a e teà zeladoà por agentes estatais, isto é, por pessoas responsáveis pela manutenção da ordem e do respeito à lei. A situação, aliás, que mais representa conflitos contra a justiça pública nos quais há hostilidades entre pessoas corresponde aos casos de desacato a policiais, como se verá. No plano geral, essa conflituosidade associa-se à violação de códigos de conduta ligados à proteção ambiental, à manutenção da convivialidade no trânsito, ao controle do consumo de determinadas drogas, entre outros.

Por não envolverem uma vítima em concreto, as audiências relacionadas a esse tipo de conflito desenrolam-se a partir da polaridade autor do fato-promotor e em diálogos concentrados na proposta de transação penal. O agente público responsável pela constatação da infração que se dá, em geral, em situações de flagrância não o pa e eà àaudi ia.àP evale eàoàp i ípioàdeà ueàsuaàatuaç oàte à f àpú li a àe,à portanto, o promotor reputa como verdadeira a sua versão dos acontecimentos, contida no termo circunstanciado ou inquérito policial. Pelo fato de tais casos envolverem a abordagem policial, raramente os autores do fato contraditam essa versão, o que produz um caráter instantâneo às audiências, cuja duração, em geral, não passa de alguns minutos.

A situação de flagrância envolvendo o testemunho de um agente público também repercute na quase ausência de desfechos em arquivamento. Isso porque optar pelo arquivamento, neste contexto, significa duvidar da versão dos fatos trazida por um agente responsável pela ordem pública, colocando em xeque a própria legitimidade de sua atuação. Estabelece-se, portanto, uma espécie de pacto institucional entre o promotor e a polícia, que funciona como um recurso que favorece o aceite da transação penal. Isto é, da versão policial não se duvida e, portanto, o

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arquivamento é em geral descartado.26 A ausência do policial na audiência indica que a infração é fato consumado, não passível de discussão e a finalidade do Judiciário é então reforçar o poder da polícia, estabelecendo uma punição a quem irrevogavelmente violou a ordem pública.

Entretanto, se o flagrante de um agente policial dotado de fé pública cria um cenário desfavorável a negociações em torno de um acordo em direção ao arquivamento, nem por isso o autor do fato deixa de questionar a tácita atribuição de culpa que lhe é dirigida, sobretudo em situações que envolvem o crime de desacato. É o que ocorre em situações como a descrita a seguir:

15 de abril de 2008. 1ª vara criminal. JEC 27/08. Um homem por volta de 60 anos entra na sala de audiências com ar de cordialidade. Senta-se diante do promotor que o cumprimenta e não recapitula em detalhes o acontecido, apenas lhe informa que em determinada dataàeleà te iaà o etidoàoà i eà deàdesa ato .àEàp ossegue: Para evitar que o senhor seja réu em processo vou lhe fazer uma proposta, se o senhor aceitar não está admitindo culpa, a única restrição é não poder ter outra proposta desta em menos de cinco anos. O senhor paga uma multa para não ter processo, o senhor aceita esse e efí io? .àEde i ,àoàauto àdo fato que mudara de feição conforme ouvia oàp o oto ,à espo de:à Mas quem foi agredido fuiàeu! .àElevaàosà açosàeà diz:à Tá vendo essas marcas no meu pulso, foram as alge as... .à áà defensora pública sentada ao seu lado aconselha-oà al a e te:à Senhor Edemir, se o senhor quiser se submeter a processo, vai ter que provar o que está dizendo... se à uà e à p o essoà à uitoà pesado... . Inconformado, Edemir pe gu ta:à Co oà euà pagoà issoà ? à Oà p o oto à espo deà ap ese tadoà suaà p oposta:à Um salário ou três meses de oito horas se a aisàdeàse viçoà o u it io .àEde i àsile ia,àpa e eàesta à aàdúvida e inconformado.à áà defe so aà oà a o selha:à O senhor faz esse acordo para evita à p o esso... à Eleà e t oà uestio a:à Masà eà seà euà fo à i o e te? à Elaà

26 Vi situações de arquivamento de conflitos contra a justiça pública somente em duas audiências, nas quais a infraç oà o etidaàe aàdeà falsaà o u i aç oàdeà i e à– artigo 340 do Código Penal. Em ambas as situações o promotor foi convencido pelo argumento de, respectivamente, de um competente advogadoàeàdeàu à auto àdaài f aç o àdeà falaà e àa ti uladaà t atava-se de uma liderança religiosa) sobre o mal-entendido com a polícia. Em ambos os casos estava em questão a falsa comunicação de furto de veículo, um tipo de crime que não envolve uma situação de flagrante e, portanto, permite fugir da força probatória presente na testemunha ocular da polícia.

144 e t oà lheà diz:à Pode ser, mas o senhor corre o risco de sofrer uma o de aç o , eà e e da:à Àsà vezesà aà justiçaà e a... . É bruscamente i te o pidaàpelaàjuízaà ueà e vosa e teài te v :à N oà à ueàaàjustiçaà erra! É que as provas mobilizadas no processo podem lhe ser desfavoráveis, e se ficar provado que o senhor agiu, o senhor vai ser condenado, então o se ho à pe seà e ! .à Edemir parece estar em dúvida, comenta não ter tempo de prestar serviço comunitário em função de seus horários de trabalho e o silêncio se instala por alguns segundos. O promotor e o juiz parecem impacientes com sua indecisão. O promotor, ríspido, interrompe o sil io:à O senhor vai aceitar ou não? àEde i à e olo aàaà uest oàdeàsuaà i o iaàeàoàp o oto àe àto àdu oà eage:à á uiàaàge teà oàvaiàdis uti à isso! O senhor aproveita e fala para o seu filho não passar em sinal ve elhoàeàfugi àe àpe seguiç o! . Ede i àp o ta e teàde ide:à Eu pago onde? à E à seguidaà o e taà des o e tado:à É, esses moleques de hoje e àdiaàs à ia àp o le a... . áàjuízaàes aveja:à Esse moleque de hoje em dia é criado pelo senhor! Educação permissiva gera filhos que ficam viola doà asà eg asà so iaisà eà s à seà e volve à e à o fus o .à Eleà hu ilde e teà dizà É,à o o doà o à aà se ho a .à Oà p o oto à e t oà e o e da:à O senhor vai fazer o pagamento e trazer o comprovante no a t io .à áà defe so aà efo çaà aà e pli aç oà al a e teà e ua toà osà presentes assinam o termo da audiência apresentado pela escrevente. Edemir assina, agradece e sai.

Assim como nas audiências concernentes à conflituosidade pessoal, aqui a transação penal é aludida como um benefício a evitar os males do processo. Entretanto, trata-se de um processo no qual do outro lado figura um agente do Estado, o que torna a recusa da proposta mais ameaçadora. Essa recusa pode levar a uma disputa desigual, na qual as possibilidades de absolvição são remotas, pois exigem do autor do fato produzir provas contra alguém que, de saída, goza de maior credibilidade perante as autoridades públicas, isto é, o agente policial. Foi o que a defensora pública insinuouà aoà dize à i ge ua e teà dia teà daà juízaà ueà aà justiçaà e a .à E t eta to, Edemir somente convenceu-seà daà dispa idadeà deà a as à deà u à eve tualà p o essoà contra o policial quando o promotor lhe fez lembrar que o episódio envolvendo o desacato associava-se ao flagrante de desobediência à lei cometida por seu filho, que

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conduzia o veículo – como observei na leitura do processo – ao seu lado. Ao mencionar o deslize cometido pelo filho, o promotor tratou de esclarecer a Edemir que um processo envolvia um conjunto complexo de situações que lhe seriam altamente desfavoráveis e poderiam também atingir seu filho. Entendendo de súbito a mensagem do promotor, Edemir acata não somente a transação, mas a carraspana da juíza que o responsabiliza também pela ilegalidade cometida por seu filho.

Assim, com exceção de situações envolvendo desacato contraditado pelo autor do fato, nas quais estão em questão muitas vezes uma agressão moral, as audiências que correm contra a justiça pública e a respeito de questões que poderíamos nomear de ilegalidades urbanas – tais como, embriaguez ao volante, dirigir veículo sem habilitação, pichação, manutenção ilegal de viveiro de pássaros, consumo de maconha –, flagradas sob a testemunha ocular da autoridade pública, desenrolam-se, não raro, em um piscar de olhos. O que pode retardar o seu andamento não é a recusa do e efí io àdeà oàse àp o essadoàe àu à o te toàe à ueàpodeàhave à o de aç oà pio à– nos dizeres de uma promotora. A troca proposta tende a ser automaticamente aceita e em geral o autor do fato entra na audiência determinado a acatá-laà pa aà livrar-seà logoà disso ,à o oà de la a à algu sà aoà p o oto .à E t eà aà opo tu idadeà deà obter a conclusão uaseà ueà i ediataà doà p o le a à o à aà justiçaà eà oà seuà prolongamento rumo a um destino incerto, tal como em u aà lote ia ,à segu doà sempre enfatiza um dos promotores, é evidente a predileção pela primeira. São situações nas quais em geral não há resistência ao aceite, pois nos casos de conflito contra a justiça pública a força repressiva do Estado já foi sentida na abordagem policial, em determinadas circunstâncias nada afáveis27.

Por isso, boa parte da conversa entre o promotor e o autor do fato gira em torno de ajustes – dentro de determinados limites estabelecidos por quem propõe o eg io à – que viabilizem o cumprimento da punição pelo autor do fato. É neste aspe toà ueàoàdi logoàassu eàoàto àdeà ego iaç o , na qual o autor do fato, agente de sua própria punição ,28 deve escolher qual dentre as opções oferecidas pelo

27 Foi o que constatei em conversas informais travadas com alguns autores na Central de Penas e Medidas Alternativas.

28Em entrevista a Jean Paul Brodeur (1993), Michel Foucault utiliza essa expressão ao comentar as experiências de flexibilização do regime prisional que estavam sendo experimentadas em alguns países.

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promotor é mais factível de ser cumprida negociando os termos de sua própria punição. O que se negocia, portanto, são as condições que assegurem ao promotor o seu efetivo cumprimento da punição. Trata-se de criar, dentro de determinados limites, condições de flexibilidade para que o poder de punir do Estado seja consumado. Assim, se é possível observar um acordo ou uma negociação privilegiado nos diálogos que se vê corriqueiramente nas audiências, ele não está situado entre as partes como forma de solucionar conflitos fora da esfera punitiva. O acordo situa-se no diálogo estabelecido entre o promotor e aquele que figura como autor da infração. Foi esta a mediação que se pude observar acontecer em boa parte das audiências29.

3.6 A transação penal: a punição como negócio ou a ficção jurídica da troca punitiva

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