• Nenhum resultado encontrado

A multiplicação das máscaras e o desdobramento do “eu” em Antonio

2.3 Identidade e alteridade

2.3.3 A multiplicação das máscaras e o desdobramento do “eu” em Antonio

A multiplicidade do sujeito está relacionada à variedade de máscaras que este é capaz de comportar dependendo da situação em que se encontra em um dado momento, bem como das relações sociais com as quais está implicado em certo contexto. No caso de Antonio Tabucchi, como ressaltado na seção anterior, a sucessão de máscaras se dá ao infinito. A personagem Maria do Carmo, de “Il gioco del rovescio”, apresenta uma multiplicidade tão grande de faces que não se pode ter a ambição de conhecer a “verdadeira” personalidade da personagem, mesmo porque não existe uma Maria do Carmo “mais verdadeira” que as outras. Isso significa dizer que todas as versões da personagem são igualmente válidas e que não se deve ter a pretensão de lhe retirar a última máscara, já que sua multiplicação não tem fim.

Em se tratando da experiência de viver constantemente a representação de uma representação, é preciso ressaltar o personagem Wilfred Cotton do conto “Teatro”415, de Antonio Tabucchi. Wilfred Cotton fora um famoso ator shakespeariano que, por motivos desconhecidos, se embrenhou nas selvas da África, na tentativa de fugir de si mesmo: “L’Africa era uno spazio dello spirito, una non prevedibilità, un azzardo. In Africa ognuno aveva la sensazione di essere lontano, anche da se stesso” (TABUCCHI, 2006f, p. 47)416. Em um ambiente totalmente inusitado, uma cabana rodeada pela floresta, Wilfred Cotton se mostra capaz de assumir tantas personalidades quantas são as personagens das peças de Shakespeare, interpretando, com maestria, todas elas ao mesmo tempo.

Wilfred Cotton mi pregò di sedermi, salì sulla pedana, aprì un libro che aveva sotto il braccio e disse: “William Shakespeare, King Lear. Act One, Scene One. A state room in King Lear’s palace.” Lesse, anzi, recitò con un’intensità sorprendente, tutto il primo atto e la metà del secondo. Fu un Lear devastato da una mortale malinconia, ma anche un Fool lampeggiante di genio, cinico e bruciante. (...) E così la tragedia si rifece concitata, le voci si animarono, Gloucester balzò avanti per dire che il re era al colmo dell’ira, che la notte avanzava e i venti erano furiosi. E a quel punto la voce cupa di Cornovaglia, come se rimbombasse nell’ampia stanza di un palazzo dai soffitti altissimi, gridò di sprangare le porte, in quella notte di tempesta, per ripararsi dall’uragano. È l’intervallo, disse Wilfred Cotton. Vogliamo andare al foyer a bere qualcosa? (TABUCCHI, 2006f, p. 50-51).417

No entanto, a representação de Wilfred Cotton vai além de seu teatro erguido no interior da floresta, se estendendo à representação de si mesmo. Ao exilar-se na África,

415 Nesse conto, existe uma referência ao romance Heart of darkness (Coração das trevas), do escritor

Joseph Conrad. Nesse romance, que se passa no contexto do imperialismo, o inglês Charles Marlow trabalha transportando marfim pelo rio Congo. Embrenhando-se no interior da selva africana, tem a missão de trazer Kurtz, um comerciante de marfim, de volta à civilização. Apesar da referência ao romance de Conrad contida no conto de Tabucchi, o personagem Wilfred Cotton, de “Teatro”, leva a civilização para dentro da selva, criando um ambiente inusitado ao fazê-lo, enquanto o personagem Kurtz, de Heart of darkness, se absteve da civilização ao penetrar pelo “coração das trevas” nos confins do continente africano.

416 “A África era um espaço do espírito, um imprevisto, um acaso. Em África cada qual tinha a sensação

de estar longe, até de si próprio” (TABUCCHI, 2013g, p. 55).

417 “Wilfred Cotton pediu-me para me sentar, subiu para o estrado, colocou na estante um livro que levava

debaixo do braço, abriu-o e disse: “William Shakespeare, King Lear. Act one, scene one. A state room in King Lear’s palace.” Leu, ou melhor, recitou com uma intensidade surpreendente, todo o primeiro acto e metade do segundo. Foi um Lear devastado por uma melancolia mortal, mas também um Fool com lampejos de génio, cínico e mordaz. (...) E assim a tragédia ganhou nova exaltação, as vozes animaram- se, Gloucester irrompeu dizendo que o rei estava louco de cólera, que a noite avançava e os ventos eram cada vez mais furiosos. E então a voz sombria de Cornualha, como se ecoasse na ampla sala de um palácio de tectos altíssimos, gritou que trancassem as portas, nessa noite de tempestade, para se protegerem do furacão. É o intervalo, disse Wilfred Cotton. Vamos ao foyer tomar alguma coisa?” (TABUCCHI, 2013g, p. 59-60).

o personagem levou consigo diversas convenções sociais que, naquele contexto, soam como absurdas. Na verdade, este reproduz parte de seu país, a Inglaterra, e de sua cultura em um ambiente em que isto não poderia ser imaginado. A seriedade de seus atos e convicções fica evidente quando Wilfred Cotton faz um convite formal ao protagonista para jantar em sua casa, no qual exigia traje de cerimônia e pedia resposta. Para a surpresa do convidado, durante o jantar foi servido vinho e um meatpie coberto de doce de groselha, o que parecia totalmente inusitado para aquele contexto. Em seguida, os personagens saborearam um chá escuro e aromático, extremamente sofisticado para as condições em que se encontravam naquele lugar.

Essa obstinação do personagem em recriar uma parte da Inglaterra em meio à selva africana demonstra como Wilfred Cotton levou a questão da representação às últimas consequências: “Erano le sette in punto. Sir Cotton mi aspettava in piedi sulla veranda. Indossava una giacca bianca con un papillon di seta” (TABUCCHI, 2006f, p. 49)418.

O protagonista ignora completamente a identidade de seu anfitrião, se contentando em apenas conhecer seu nome. Durante meses, encontra-o regularmente naquele inusitado “teatro” para presenciar a próxima demonstração de seu gênio. Wilfred Cotton, por sua vez, foge de seu passado e jamais revela ao protagonista os motivos que o levaram a abandonar a Inglaterra. Em sua fuga do real, prefere se entregar à representação desenfreada: “Egli fu, di volta in volta, un goffo Amleto sgraziato e codardo, ma anche un gentile Laerte; un Otello folle, ma anche un perfido Iago; un Bruto tormentato e amaro, ma anche un Antonio presuntuoso e sprezzante” (TABUCCHI, 2006f, p. 52)419.

É nesse sentido que Cotton pode ser todos os personagens de Shakespeare ao mesmo tempo, mas não assume quem realmente é. Está, portanto, atrelado de forma intrínseca às máscaras que ele mesmo se impôs. Mais uma vez, a multiplicação do personagem tabucchiano é possível devido ao “jogo do reverso”, o qual proporciona o desdobramento desenfreado de personalidades em Wilfred Cotton, garantindo o jogo de máscaras que este executa com maestria.

418 “Eram sete em ponto. Cotton estava à minha espera na varanda. Vestia um casaco branco com um

lacinho de seda” (TABUCCHI, 2013g, p. 58).

419 “Ele foi sucessivamente um Hamlet desajeitado e cobarde, mas também um Laertes gentil; um Othello

louco mas também um pérfido Iago; um Brutus atormentado e amargo, mas também um Antonio desdenhoso e presumido” (TABUCCHI, 2013g, p. 61).

O gosto pelo contrário e a tendência em ver o mundo ao avesso420 , características do fazer literário de Pirandello que contribuem para a elaboração do conceito tabucchiano de “jogo do reverso”, também estão relacionados à profusão de máscaras dos personagens pirandellianos. Sendo assim, para refletir sobre como as personagens de Pirandello lutam contra suas máscaras sociais, é preciso trazer a discussão sobre identidade conforme empreendida pelo dramaturgo italiano.

Na introdução à edição italiana do romance Il fu Mattia Pascal, Laura Trenti421 reproduz um trecho de uma carta escrita por Pirandello a sua noiva Antonietta422, em que o dramaturgo italiano afirma ver-se dividido entre dois “eus” que se embatem constantemente em seu interior, revelando que um deles é de conhecimento de sua noiva, enquanto o outro nem mesmo ele conhece realmente.

In me sono quasi due persone: Tu già ne conosce una; l’altra, neppure la conosco bene io stesso. Soglio dire, ch’io consto d’un gran me e di un piccolo me: questi due signori son quasi sempre in guerra tra di loro; l’uno è spesso all’altro sommamente antipatico. Il primo è taciturno e assorto continuamente in pensieri, il secondo parla facilmente, scherza e non è alieno dal ridere e dal far ridere. Quando questi ne dice qualcuna un po’ scema, quegli va allo specchio e se lo bacia. Io sono perpetuamente diviso tra queste due persone. Ora impera l’una, ora impera l’altra. Io tengo naturalmente molto di più alla prima, voglio dire al mio gran me; mi adatto e compatisco la seconda, che è in fondo un essere come tutti gli altri... Quale dei due amerai di più, Antonietta mia? (PIRANDELLO apud TRENTI, 2007, p. 5).423

A questão da personalidade dupla e dos espelhamentos está colocada, pois, por Pirandello nessa carta a sua noiva. Como afirma Laura Trenti, é “un caso di ‘doppio’, non c’è dubbio” (TRENTI, 2007, p. 5)424. Conforme salientado pela crítica italiana, o espelho é apontado por Pirandello como o único meio de seus “eus” se confrontarem,

420 Essa característica de Pirandello está intrinsecamente relacionada à sua tendência em ver o teatro dos

bastidores, em expor as engrenagens da peça teatral que deveriam permanecer ocultas ao espectador. Esse desvendamento de outras faces da realidade é um dos elementos de que Antonio Tabucchi se apropria para a criação de seu conceito de “jogo do reverso”.

421 Cf. TRENTI, 2007, p. 5-6.

422 Também Fernando Pessoa escreve cartas à sua noiva Ophélia Queiróz, nas quais, dentre outros

assuntos, fala de seus heterônimos, sendo que Álvaro de Campos chega a interferir no namoro, assinando, inclusive, algumas cartas. Esse tema será retomado no terceiro capítulo desta tese.

423 “Em mim são quase duas pessoas: você já conhece uma; a outra, nem eu mesmo a conheço bem.

Costumo dizer que eu consisto de um grande eu e de um pequeno eu: esses dois senhores estão quase sempre em guerra entre eles; quase sempre um é extremamente antipático para o outro. O primeiro é taciturno e está continuamente absorto em pensamentos. O segundo fala com facilidade, brinca e não é alheio ao rir e ao fazer rir. Quando este diz alguma coisa meio boba, aquele vai ao espelho e o beija. Eu estou perpetuamente dividido entre essas duas pessoas. Ora impera uma, ora impera a outra. Eu mantenho, naturalmente, muito mais a primeira, quer dizer, o meu grande eu, me adapto e compadeço da segunda, que é no fundo um ser como todos os outros... Qual das duas amará mais, minha Antonietta?” (Tradução nossa).

pois a imagem especular “è avvertita come ‘altro’ dal senso interno di sé, ma fa indubitabilmente altrettanto parte della persona, anzi, è il segno tangibile della persona per chi l’accosta dal di fuori” (TRENTI, 2007, p. 6)425.

Partindo da discussão a respeito do duplo e do espelho, Laura Trenti426 incorpora a seu argumento o teatro, ao se valer da correspondência do significante “persona” em latim (máscara) e em italiano (pessoa), o que permite à crítica remeter a importantes aspectos referentes ao fazer literário de Luigi Pirandello: “se ricordiamo che il termine persona in latino indica la maschera indossata dagli attori della commedia e della tragedia, si sono praticamente messi in gioco tutti i motivi e i temi più importanti del pensiero e dell’opera pirandelliana: il doppio, lo specchio, la maschera” (TRENTI, 2007, p. 6)427.

Em Pirandello428, há uma constante reflexão a respeito de como somos impelidos a tentar deter o “fluxo contínuo da vida” que existe em nosso interior, fixando-o em formas determinadas, que são os conceitos e ideais que nos impomos. No entanto, como afirma Pirandello, em seu ensaio L’umorismo, “dentro di noi stessi, in ciò che noi chiamiamo anima, e che è la vita in noi, il flusso continua, indistinto, sotto gli argini, oltre i limiti che noi imponiamo, componendoci una coscienza, costruendoci una personalità” (PIRANDELLO, 2010a, p. 145)429.

A esse fluxo contínuo opõe-se o fato de as feições do nosso corpo serem fixadas de forma imutável, como é o caso do nariz de Vitangelo Moscarda que pende um pouco para a direita. O protagonista de Uno, nessuno e centomila deve, portanto, se resignar em carregar esse traço pelo resto da vida a partir do momento em que toma conhecimento do fato após um comentário sarcástico feito por sua esposa. Esse é o evento que irá desencadear todo o drama de Moscarda, já que faz com que este perceba que o modo como os outros o veem não é o mesmo como ele se vê.

Avrei potuto, è vero, consolarmi con la riflessione che, alla fin fine, era ovvio e comune il mio caso, il quale provava ancora una volta un fatto risaputissimo, cioè che notiamo facilmente i difetti altrui e non ci accorgiamo dei nostri. Ma il

425 “É advertida como ‘outro’ pelo sentido interno de si, mas sem dúvida faz igualmente parte da pessoa,

na verdade, é o sinal tangível da pessoa para quem se aproxima do lado de fora.” (Tradução nossa).

426 Cf.TRENTI, 2007, p. 6.

427 “se recordamos que o termo ‘persona’ em latim indica a máscara usada pelos atores da comédia e da

tragédia, são colocados em jogo praticamente todos os motivos e temas mais importantes do pensamento e da obra pirandelliana: o duplo, o espelho, a máscara.” (Tradução nossa).

428 Cf. PIRANDELLO, 2010a, p. 145.

429 “dentro de nós mesmos, naquilo que chamamos alma, e que é a vida em nós, o fluxo continua,

indistinto, sob os diques, além dos limites que nós impomos, ao compor-nos uma consciência, ao construir-nos uma personalidade” (PIRANDELLO, 2009c, p. 169).

primo germe del male aveva cominciato a metter radice nel mio spirito e non potei consolarmi con questa riflessione. Mi si fissò invece il pensiero ch’io non ero per gli altri quel che finora, dentro di me, m’ero figurato d’essere” (PIRANDELLO, 2010c, p. 9-10).430

Como afirma Pirandello em seu ensaio L’umorismo431, esses pequenos detalhes, aparentemente insignificantes, causam grande efeito sobre nós quando adquirimos consciência de que nossas pequenas imperfeições são percebidas pelos outros assim como percebemos as dos outros e não as nossas próprias. Sendo assim, segundo o dramaturgo italiano, para um indivíduo se consolar de possuir um feio nariz, ele ri das orelhas ou da boca de outro432. De toda forma, somos condenados a carregar nossas máscaras ao longo da existência e nos debatermos devido ao desajuste dessas máscaras exteriores com o que somos em nosso interior.

Uma das primeiras reações de Vitangelo Moscarda diante da descoberta de ser um estranho para si mesmo é desejar estar sozinho, e isso significava não apenas estar sem outras pessoas por perto como também estar sem ele mesmo, ou pelo menos estar sem aquele sujeito que ele julgava ser ele mesmo: “Così volevo io esser solo. Senza me. Voglio dire senza quel me ch’io già conoscevo, o che credevo di conoscere. Solo con un certo straneo, che già sentivo oscuramente di non poter più levarmi di torno e ch’ero io stesso: l’estraneo inseparabile da me” (PIRANDELLO, 2010c, p. 17)433. Sendo assim, ele estaria com um desconhecido, que é aquele Vitangelo Moscarda que ele próprio não sabia quem era, mas que já percebia ser inseparável de si, já que “la vera solitudine è in un luogo che vive per sé e che per voi non ha traccia né voce, e dove dunque l’estraneo siete voi” (PIRANDELLO, 2010c, 17)434.

Esses pensamentos de Moscarda levam-no a refletir sobre quem ele realmente é, sendo que, nesse momento, ele ainda pensava ser apenas um. No entanto, o protagonista de Uno, nessuno e centomila, logo irá perceber que existia uma multiplicidade de máscaras de Vitangelo Moscarda, cada qual correspondendo à imagem que certa pessoa

430“É verdade que eu poderia me consolar com a ideia de que, afinal de contas, o meu caso era óbvio e

banal, mais uma prova de um fato extremamente notório, isto é, que todos notamos facilmente os defeitos dos outros e não percebemos os nossos. Mas o primeiro germe do mal já começara a lançar raízes no meu espírito, e eu não pude me consolar com esta reflexão. Em vez disso, fixou-se no meu pensamento a ideia de que eu não era para os outros aquilo que até agora, dentro de mim, havia imaginado que fosse” (PIRANDELLO, 2010b, p. 24).

431 Cf. PIRANDELLO, 2010a, p. 147. 432 Cf. PIRANDELLO, 2010a, p. 147.

433 “Assim, eu queria estar só. Sem mim. Quero dizer, sem aquele ‘mim’ que eu já conhecia ou pensava

conhecer. Sozinho com um certo estranho que eu já sentia obscuramente não poder afastar para longe, que era eu mesmo: o estranho inseparável de mim” (PIRANDELLO, 2010b, p. 29).

434 “a verdadeira solidão está em um lugar que vive por si e que para você não tem nem voz nem feição,

construíra desse sujeito na tentativa de fixá-lo em uma forma estável, sendo que o protagonista não podia se reconhecer em nenhuma dessas representações. No entanto, segundo Alfredo Bosi435, ao recusar as construções que os outros fizeram de si, Vitangelo Moscarda não tem mais nenhuma personalidade a qual se ater, pois, como afirma Bosi, “abolidas as imagens criadas pelo próximo (o eu social), também ele anula- se, já que mais nenhuma consciência o reflete. Nem cem mil, nem um: ninguém” (BOSI, 1988, p. 185).

Na concepção de Alfredo Bosi, o que ocorre nos textos de Pirandello é um “desajuste entre a vida subjetiva da personagem e a forma social, a persona que a represa de todos os lados” (BOSI, 2010, p. 8). Os personagens pirandellianos lutam, portanto, contra essas máscaras impostas pelas convenções sociais. No caso de Uno, nessuno e centomila, enquanto, para a sociedade, existiam cem mil faces de Vintangelo Moscarda, para o próprio personagem não existia nenhum “eu” que pudesse resistir fora do olhar do outro. Por esse motivo, para Vintangelo Moscarda, ele próprio não era ninguém.

No entanto, como ressalta Alfredo Bosi436, não se pode falar em desintegração total do protagonista de Uno, nessuno e centomila, já que, apesar de todo o processo de decomposição de sua imagem social pela qual Moscarda se submete, este ainda carrega dentro de si um sentimento que ele próprio chama de “ponto vital”, “que pulsa quando o mais fundo da sua consciência moral é ferido por um juízo acusador e injusto do outro” (BOSI, 2010, p. 11).

Segundo Alfredo Bosi437, esse é justamente o elemento que proporciona, de certo modo, o retorno à unidade do ser após sua profusão em múltiplos “eus”. É assim que a passagem do romance em que o protagonista reconhece seu “ponto vital”, como afirma Bosi438, representa o momento em que este é levado à reflexão sobre sua experiência, sendo o ponto “em que o narrador se empenha lucidamente em sondar o processo psicossocial que o faria passar da pura anomia (‘nenhum’) ou da vertiginosa dispersão (‘cem mil’) a um estado de unidade moral (‘um’)” (BOSI, 2010, p. 11).

Esse drama do personagem está relacionado à reflexão constante nos textos de Pirandello sobre a oposição entre “vida” e “forma”. Vitangelo Moscarda jamais havia tomado consciência de pequenos detalhes relacionados à sua constituição física,

435 Cf. BOSI, 1988, p. 185.

436 Cf. BOSI, 2010, p. 11. 437 Cf. BOSI, 2010, p. 11. 438 Cf. BOSI, 2010, p. 11.

acreditando que esses pormenores não poderiam definir quem ele era. Assim, seguia o fluxo da vida sem questionamentos ou reflexões: “Vivendo, non avevo mai pensato alla forma del mio naso” (PIRANDELLO, 2010c, p. 17)439. No entanto, percebe que, sob o olhar do outro, ele era definido e julgado justamente a partir dessas características externas:

E gli altri? Gli altri non sono mica dentro di me. Per gli altri che guardano da fuori, le mie idee, i miei sentimenti hanno un naso. Il mio naso. E hanno un pajo d’occhi, i miei occhi, ch’io non vedo e ch’essi vedono. Che relazione c’è tra le mie idee e il mio naso? Per me, nessuna. Io non penso col naso, né bado al mio naso, pensando. Ma gli altri? Gli altri che non possono vedere dentro di me le mie idee e vedono da fuori il mio naso? Per gli altri le mie idee e il mio naso hanno tanta relazione, che se quelle, poniamo, fossero molto serie e questo per la sua forma molto buffo, si metterebbero a ridere (PIRANDELLO, 2010c, p. 18).440

O protagonista de Uno, nessuno e centomila compreende não ser possível às outras pessoas ter conhecimento de quem ele era dentro de si, assim como lhe era impossível ver-se de fora, como os outros o viam. Essa é a próxima constatação de Vitangelo Moscarda, seguindo sua linha de raciocínio: não é permitido ao sujeito ver-se vivendo. A consciência dessa privação é motivo de angústia para o personagem, o qual é acometido por uma grande perturbação.

No entanto, Moscarda pode vivenciar, ainda que por um instante, a experiência de se ver da forma como os outros o viam. Isso ocorreu em uma ocasião em que,