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O jogo entre real e ficcional com o leitor em Antonio Tabucchi

De acordo com Wolfgang Iser, “a oposição entre realidade e ficção faz parte do repertório elementar de nosso ‘saber tácito’” (ISER, 2002, p. 957), o qual integra um conjunto de certezas que parecem não serem questionáveis. No entanto, Iser põe em pauta a discussão a respeito dessa oposição entre textos ficcionais e não ficcionais, refletindo sobre a existência de parcelas de real no texto ficcional, assim como de indícios de ficção nos textos ditos não ficcionais.

Como parte de sua discussão, Iser483 propõe a substituição do par realidade e ficção pela tríade real, fictício e imaginário. Ao fazê-lo, Iser argumenta que

a relação opositiva entre ficção e realidade retiraria da discussão sobre o fictício no texto uma dimensão importante, pois, evidentemente, há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional. Estas realidades por certo diversas não são ficções, nem tampouco se transformam em tais pelo fato de entrarem na apresentação de textos ficcionais. Por outro lado, também é verdade que estas realidades, ao surgirem no texto ficcional, neles não se repetem por efeito de si mesmas. Se o texto ficcional se refere à realidade sem se esgotar nesta referência, então a repetição é um ato de fingir, pelo qual aparecem finalidades que não pertencem à realidade repetida (ISER, 2002, p. 958).

Com isso, Iser conclui que “se o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida, nele então surge um imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto” (ISER, 2002, p. 958). Sendo assim, o ato de fingir provoca a “repetição no texto da realidade vivencial”, e com essa repetição, atribui “uma configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma em signo e o imaginário em efeito do que é assim referido (ISER, 2002, p. 958).

A problematização dos limites entre realidade e ficção está presente de forma incisiva nas obras tanto de Antonio Tabucchi quanto de Fernando Pessoa e Luigi

483 Cf. ISER, 2002, p. 958.

Pirandello. Nos textos de Tabucchi, essa questão está relacionada ao estabelecimento de um constante jogo com o leitor. Em Autobiografie altrui, texto em que Antonio Tabucchi se reporta à composição de algumas de suas obras, existem passagens nas quais real e ficcional se entrecruzam, sugerindo o caráter maleável e instável da fronteira que separa essas duas instâncias. Isso se deve ao jogo estabelecido pelo escritor italiano que, ao se inserir em sua obra, de modo ficcionalizado, se faz personagem da mesma.

No texto que dá início ao livro Autobiografie Altrui, intitulado “Post- prefazione”484, o leitor é advertido de que está diante de uma autobiografia repleta de elementos ficcionais, o que fica evidente pela definição que o autor confere a seu texto: “queste mie poetiche a posteriori tendenzialmente illogiche, carenti di deontologia, cariche di false memorie e false volontà, messaggere di un senso che ci sforziamo pateticamente di dare poi a qualcosa che avvenne prima” (TABUCCHI, 2003b, p. 12)485.

Essa postura assumida por Antonio Tabucchi logo no início de sua autobiografia vai de encontro à expectativa do receptor, o qual tende a relacionar o gênero autobiográfico à esfera do real. Em Corpos escritos, ao se reportar às regras estabelecidas por Elizabeth Bruss para o ato autobiográfico, Wander Melo Miranda destaca, dentre outras, o pressuposto segundo o qual “a informação e os eventos relativos à autobiografia são tidos por serem, terem sido ou deverem ser verdadeiros, sendo passíveis de verificação pública” (MIRANDA, 1992, p. 32).

No entanto, o crítico 486 salienta que a autobiografia é uma forma de autointerpretação, em que o sujeito da escrita não apenas se reporta a seu próprio passado, como também elabora a forma como pretende ser visto pelo “outro”, o que, segundo Wander Melo Miranda, “não impede o risco permanente do deslizamento da autobiografia para o campo ficcional, o seu revestir-se da mais livre invenção” (MIRANDA, 1992, p. 30). Dessa forma, Wander Melo Miranda ressalta que “apesar do aval de sinceridade, o conteúdo da narração autobiográfica pode perder-se na ficção, sem que nenhuma marca decisiva revele, de modo absoluto, essa passagem”

484Antonio Tabucchi inicia sua autobiografia com o que denomina um “Pós-prefácio”, pois considera que

esse texto teria um caráter póstumo, já que escrito posteriormente às obras as quais irá se remeter em Autobiografie Altrui.

485 “estas minhas poéticas a posteriori, tendencialmente ilógicas, carentes de deontologia, carregadas de

falsas memórias e falsas vontades, mensageiras de um sentido que nos esforçamos pateticamente em dar depois a alguma coisa que aconteceu antes.” (Tradução nossa).

(MIRANDA, 1992, p. 30). Parece ser esse o caso do texto de Antonio Tabucchi, o qual estabelece com o leitor um constante jogo, em que realidade e ficção se entrelaçam.

No que se refere ao caráter lúdico do ficcional, em O escorpião encalacrado, Davi Arrigucci Junior afirma que

o jogo instaura seu próprio mundo, um mundo extraordinário, à margem do que se toma habitualmente por realidade. O mundo da ilusão, que, como indica o sentido etimológico lembrado ainda por Huizinga, significa “em jogo” (illusione, ou seja, in-lusione; illudere, in-ludere) (ARRIGUCCI JUNIOR, 2003, p. 164-165).

O jogo estabelecido entre real e ficcional instaura a ambiguidade no interior da obra literária, sendo que, a partir desse movimento, segundo Arrigucci Junior, “não só se desmascara o efeito realista da ficção, mas também se impregna a realidade de imaginação, diluindo fronteiras” (ARRIGUCCI JUNIOR, 2003, p.171). É possível, assim, afirmar, partindo das palavras de Arrigucci Junior a respeito de Borges, as quais poderiam ser perfeitamente aplicadas ao caso de Tabucchi, que “uma narrativa como essa tem por alvo explícito a dissolução da oposição entre o real e o irreal: assim como se sugere que a ficção possa ser realidade, também se insinua que a realidade possa ser ficção” (ARRIGUCCI JUNIOR, 2003, p. 170). Mais do que isso, no que diz respeito à narrativa de Tabucchi, tem-se o que Arrigucci Junior atribui à obra tanto de Borges quanto de Cortázar como “o desvendamento da literatura como uma sondagem de seus próprios limites: a construção literária, o intrincado enredamento de artifícios que enleia, com força de sortilégio, o leitor, se manifesta como um jogo nos confins ambíguos da ficção e da realidade” (ARRIGUCCI JUNIOR, 2003, p. 165-166).

O jogo estabelecido por Antonio Tabucchi em seus textos consiste em trespassar elementos ficcionais e não ficcionais, conduzindo o leitor por uma rede intrincada. Uma dessas situações ocorre em Autobiografie Altrui, obra na qual Antonio Tabucchi reproduz uma carta487 supostamente enviada a Fernando Lopes, diretor do filme O fio do horizonte, por um remetente desconhecido de quem o escritor italiano omite a assinatura, mas que apenas sabemos se tratar de um médico que vive em Nova York. Nessa carta, o homem alega que Tabucchi teria utilizado fatos e dados de sua vida para a criação de Spino, protagonista do romance Il filo dell’orizzonte. Isso seria possível devido ao fato de este ter travado contato com o escritor italiano anos antes da escrita do romance.

No entanto, de acordo com o médico que assina a carta, Tabucchi teria criado algumas distorções ao incorporar elementos e acontecimentos reais à sua narrativa. Isso ocorreria porque, ainda segundo esse homem misterioso, apesar de Tabucchi ter supostamente se apropriado de sua figura de médico para compor seu personagem Spino, o mesmo apresentaria, por outro lado, traços da personalidade de seu autor, sobretudo no que diz respeito a seu caráter melancólico: “Tabucchi trasferiva sulla mia immagine (dettagliata persino nei tratti fisiognomici) ciò che gli apparteneva: il suo rovello, le sue malinconie, la sua impotenza di capire ciò che succedeva, gli edifici fatiscenti della sua università” (TABUCCHI, 2003b, p. 66)488.

Conforme salientado anteriormente, o escritor italiano nega a existência de qualquer relação entre seu personagem e o misterioso remetente daquela estranha carta. Como parte do jogo estabelecido, Antonio Tabucchi insere no texto uma nota de rodapé em que explica a procedência da referida correspondência, tornando, assim, sua veracidade mais convincente:

Ringrazio Fernando Lopes per avermi consentito di pubblicare questa lettera che mi ha inviato in fotocopia il 20 dicembre 2002, quando questo libro era pronto per le stampe. La traduzione dall’inglese è mia, così come il titolo del capitoletto. Per ovvie ragioni ho omesso la firma del mittente (TABUCCHI, 2003b, p. 61).489

Ainda em Autobiografie Altrui, no texto “Balene d’altri tempi. Tango di ritorno”490, o jogo com o leitor é promovido, mais uma vez, pelo escritor italiano. Nesse texto, Antonio Tabucchi, ficcionalizado, estabelece um diálogo imaginário com um personagem chamado Vasco, o qual acredita na fidedignidade das histórias narradas no livro de contos do escritor italiano intitulado Donna di Porto Pim. Diante da insistência desse personagem quanto à veracidade de tais histórias, o escritor rebate suas observações, pondo em dúvida se existe algo de fidedigno na literatura ou até mesmo no mundo:

488 “Tabucchi transferia para a minha imagem (detalhada mesmo nos aspectos fisionômicos) aquilo que

lhe pertencia: a sua raiva, a sua melancolia, a sua impotência em entender o que acontecia, os edifícios dilapidados da sua universidade.” (Tradução nossa).

489 “Agradeço a Fernando Lopes por ter-me consentido publicar esta carta cuja cópia me enviou no dia 20

de dezembro de 2002, quando este livro estava pronto para ser impresso. A tradução do inglês é minha, bem como o título do breve capítulo. Por razões óbvias, omiti a assinatura do remetente.” (Tradução nossa).

‘Mi scusi se insisto’, dice Vasco, ‘ma io della caccia alla balena mi ricordo, e nel suo libro quei dettagli così esatti, il grido della balena ferita, e tutto il sangue che si sparge sul mare come una fioritura, tutto questo non si inventa, e se si inventa è troppo’.

‘(...) E poi c’è una responsabilità, comunque’, continua lui, ‘mi riferisco a coloro che hanno seguito la sua esperienza scritta’.

‘La prima imitazione è vera’, replico, ‘la seconda imitazione è falsa, è il principio dell’ut pictura poesis degli antichi, un ut va bene, ma non si può arrivare al come del come’ (TABUCCHI, 2003b, p. 77).491

Segundo o personagem Antonio Tabucchi, por sua história se tratar da imitação de uma imitação, apenas a recriação por meio da ficção literária de uma história que já havia sido contada, essa não poderia ser verdadeira como defendia Vasco. A esse respeito, confessa que o diálogo estabelecido entre os personagens do conto “Piccole balene azzurre che passeggiano alle Azzorre”492, da coletânea Donna di Porto Pim, foi retirado de uma peça de teatro que ele teria assistido em Paris muitos anos antes de escrever seu livro sobre os Açores. Dessa forma, enfatiza mais uma vez o caráter ficcional de sua obra, a qual aparece como produto da imaginação, se caracterizando por ser uma ilusão de realidade, ainda que uma ilusão convincente.

Antonio Tabucchi admite que a memória está cheia de falsas recordações e acrescenta que “uno scrive un libro su un suo viaggio alle Azzorre, o su un presunto viaggio, e poi quello che gli resta nella memoria, più di vent’anni dopo, non è quel viaggio, ammesso che lo abbia fatto, è quello che vi ha scritto sopra” (TABUCCHI, 2003b, p.76)493. Nessa passagem, Tabucchi reconhece, por meio da ficção, que aquela experiência supostamente vivida, sua viagem aos Açores, já se transformou ao ser recriada pela memória, e o que realmente permaneceu foi o livro, a dimensão ficcional.

No entanto, ao mesmo tempo em que afirma a veracidade de sua visita ao arquipélago, sugere que essa viagem seria nada menos que um produto da sua imaginação. Ainda em “Balene d’altri tempi. Tango di ritorno”, Antonio Tabucchi, ficcionalizado, afirma que a viagem feita aos Açores mais de vinte anos após a publicação de Donna di Porto Pim, a qual deu origem ao próprio texto “Balene d’altri

491 “’Desculpe-me se insisto’, disse Vasco, ‘mas eu me recordo da caça à baleia, e, no seu livro, aqueles

detalhes tão exatos, o grito da baleia ferida, todo o sangue que se espalha sobre o mar como uma floração, tudo isso não se inventa e se se inventa é demais’. ‘(...) E depois tem a responsabilidade, no entanto’, continua, ‘mi refiro àqueles que seguiram a sua experiência escrita’. ‘A primeira imitação é verdadeira’, replico, ‘a segunda imitação é falsa, é o princípio do ut pictura poesis dos antigos, um ut tudo bem, mas não se pode chegar ao como do como.” (Tradução nossa).

492 “Pequenas baleias azuis que passeiam nos Açores” (Tradução nossa).

493 “alguém escreve um livro sobre uma viagem aos Açores, ou sobre uma suposta viagem, e depois o que

lhe resta na memória, mais de vinte anos depois, é aquilo que escreveu sobre essa viagem.” (Tradução nossa).

tempi. Tango di ritorno”, seria sua primeira visita real ao arquipélago, sugerindo que a viagem que motivou a escrita da referida coletânea de contos não passou de imaginação, como é possível depreender do diálogo estabelecido entre o escritor italiano e o personagem Vasco: “‘Ma questo viaggio, le è piaciuto?’. Lo rassicuro: ‘È il primo vero viaggio che ho fatto alle Azzorre, caro Vasco. La ringrazio, credo perfino di aver capito la differenza che c’è tra vita e letteratura. Ma stia tranquillo, di questo viaggio non scriverò mai’” (TABUCCHI, 2003b, p. 82)494.

Em sua autobiografia, Antonio Tabucchi ora sugere que a viagem que deu origem a Donna di Porto Pim é real, ora que a mesma é produto da imaginação. No entanto, o jogo do escritor italiano com o leitor vai além, já que tampouco é possível afirmar a veracidade da segunda viagem de Tabucchi aos Açores, mesmo estando esta relatada em sua autobiografia, pois, de acordo com o próprio escritor, ficcionalizado, “la nostra memoria è piena di falsi ricordi” (TABUCCHI, 2003b, p. 76)495 e, ainda, que “gli scrittori sono di solito persone poco fidate anche quando sostengono di praticare il più rigoroso realismo: per ciò che mi riguarda merito dunque la massina sfiducia” (TABUCCHI, 2006c, p. 47)496. Ao advertir na própria coletânea Donna di Porto Pim que a memória é contaminada pela imaginação e que ele próprio tem uma tendência à mentira, Antonio Tabucchi497 cria uma atmosfera propícia ao questionamento, fazendo com que o leitor se indague se o escritor italiano teria realmente visitado os Açores ou se tudo não passa de ficção. Nesse sentido, parece ser o intuito do escritor manter a ambiguidade e o tom de mistério que gira em torno de suas palavras a respeito do referido livro de contos, como é possível perceber no prólogo a Donna di Porto Pim:

una elementare lealtà mi impone di mettere in guardia chi si aspettasse da questo piccolo libro un diario di viaggio, genere che presuppone tempestività di scrittura o una memoria inattaccabile dall’immaginazione che la memoria produce – qualità che per un paradossale senso di realismo ho desistito dal perseguire. (...) Premesso questo sarebbe però disonesto spacciare queste pagine per pura finzione (...). Effettivamente io ho messo piedi a terra e questo libretto trae origine, oltre che dalla mia disponibilità alla menzogna, da un periodo di tempo passato nelle isole Azzorre (TABUCCHI, 2008a, p. 9-10).498

494 “‘Mas você gostou dessa viagem?’ Asseguro-o: ‘É a primeira viagem verdadeira que fiz aos Açores,

caro Vasco. Eu o agradeço, acredito até mesmo ter compreendido a diferença que há entre vida e literatura. Mas fique tranqüilo, jamais escreverei sobre esta viagem’.” (Tradução nossa).

495 “a nossa memória está cheia de falsas recordações.” (Tradução nossa).

496 “os escritores são, frequentemente, pessoas nas quais não podemos confiar até quando afirmam

praticar o mais rigoroso realismo. Pelo que me diz respeito, mereço, portanto, a máxima desconfiança” (TABUCCHI, 2003a, p. 53).

497 Cf. TABUCCHI, 2008a, p. 9-10.

498 “Uma lealdade elementar me impõe a necessidade de alertar os que poderiam esperar deste pequeno

No mesmo prólogo, Antonio Tabucchi499 atenta para o fato de que alguns dos textos da coletânea Donna di Porto Pim não passam de ficção, como é o caso da biografia do poeta Antero de Quental, enquanto outros como “Una caccia”500 seriam, segundo o escritor, fidedignos. Ao mesmo tempo, insere em sua coletânea diversos fragmentos de textos retirados de outros livros como La carrière d’un Navigateur, de Albert I, Príncipe de Mônaco, e Moby Dick, de Melville, como também transcreve um documento que regulamenta a pesca dos cetáceos nas águas territoriais de Portugal.

Em relação ao conto “Donna di Porto Pim. Una storia”501, também integrante da referida coletânea, Antonio Tabucchi afirma se tratar de uma história contada a ele por um homem que teria conhecido em sua viagem aos Açores. No entanto, se apressa em justificar que partes da narrativa podem ter sido por ele modificadas, devido ao efeito do álcool consumido durante o suposto diálogo em que teve conhecimento da mesma. Dessa forma, Antonio Tabucchi atenta o leitor para o fato de que, mesmo quando a narrativa é presumivelmente fidedigna, este não deve se iludir ao ponto de acreditar nas palavras do escritor, já que, como é possível apreender do comentário feito pelo próprio Tabucchi, ficcionalizado, em diálogo com o personagem Vasco: “Fededegne... Vasco, c’è qualcosa degno di fede a questo mondo? E quanto al fededegno in letteratura, non faccia l’ingenuo, per favore (...)” (TABUCCHI, 2003b, p. 76)502.

Entretanto, o jogo entre real e ficcional se impõe, já que, em vários trechos do conto “Donna di Porto Pim. Una storia”, está sugerido que o homem para quem Lucas Eduino narra acontecimentos de sua vida é o próprio Antonio Tabucchi, mais uma vez ficcionalizado em sua obra. De fato, o antigo baleeiro se refere a seu interlocutor como sendo um escritor italiano que parece frequentar aquela taberna de Porto Pim em busca de histórias que possa transformar em matéria literária, conforme o trecho: “E a te, italiano, che vieni qui tutte le sere e si vede che sei avido di storie vere per farne carta, ti regalo questa storia che hai sentito. (...) Scrivi che questa è la vera storia di Lucas

pelas imaginações que a memória produz – qualidade que por um senso de realismo paradoxal desisti de perseguir. (...) Posto isso, seria porém desonesto fazer passar estas páginas como pura ficção (...). Com efeito, coloquei o pé na terra e este livrinho se originou além da minha disponibilidade à mentira, de uma temporada que passei nas ilhas dos Açores.” (TABUCCHI, 1999, p. 7-8).

499 Cf. TABUCCHI, 2008a, p. 10-12.

500 O título foi traduzido para o português como “Uma caçada”.

501 O título foi traduzido para o português como “Mulher de Porto Pim. Uma história”.

502 “Fidedignas... Vasco, existe alguma coisa digna de fé neste mundo? E quanto ao fidedigno em

Eduino, che uccise con l’arpione la donna che aveva creduto sua, a Porto Pim” (TABUCCHI, 2008a, p. 87)503.

Além disso, para corroborar ainda mais o caráter de real de seu livro, Antonio Tabucchi o encerra com um apêndice do qual constam um mapa do Arquipélago de Açores e uma breve nota, que inclui informações geográficas e fatos históricos a respeito das referidas ilhas. No entanto, ao final do “Appendice”, o leitor se depara com uma lista de textos que tratam de temas como viagens marítimas, atividades baleeiras e assuntos referentes aos Açores, o que sugere ser esta a bibliografia utilizada por Antonio Tabucchi para a criação de seus contos, o que permitiria, por outro lado, inserir Donna di Porto Pim na categoria das viagens imaginárias. Dessa forma, a dúvida se impõe devido ao jogo entre real e ficcional estabelecido pelo escritor italiano, fazendo com que o leitor tenha dificuldades em discernir realidade e ficção.

O tema da viagem é recorrente na obra de Antonio Tabucchi, o qual está muitas vezes atrelado à tensão entre real e ficcional na medida em que o escritor italiano frequentemente afirma que as viagens presentes em seus textos foram realmente realizadas por ele, servindo como material para sua criação literária.504 Saliento que minha intenção não é, em absoluto, entrar em uma discussão a respeito da veracidade ou não da viagem de Antonio Tabucchi aos Açores, tampouco pretendo me indagar se as narrativas que compõem tanto Donna di Porto Pim, quanto Autobiografie Altrui são, em alguma medida, invocadas de sua memória ou criadas por meio de artifícios meramente ficcionais.

O que pretendo é, portanto, atentar para o fato de que, se consideramos a narrativa de Antonio Tabucchi como unicamente produto de uma viagem imaginária ou textual,

503 “E para você, italiano, que vem aqui todas as noites e não esconde que está ávido de histórias