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Uma leitura de Il filo dell’orizzonte pelo viés do humorismo pirandelliano

1.3 Alguns aspectos relativos ao fazer literário de Luigi Pirandello

1.3.1 Uma leitura de Il filo dell’orizzonte pelo viés do humorismo pirandelliano

Ainda em relação ao humorismo na literatura, o próprio Antonio Tabucchi nos fornece um exemplo extraído de seus escritos. Em seu livro Autobiografie Altrui220, Tabucchi se refere ao processo de criação de algumas de suas obras, dentre as quais o romance Il filo dell’orizzonte. Nesse texto, o leitor se depara com um personagem melancólico, que trabalha como auxiliar no necrotério de um hospital, e cuja existência será resumida em sua busca para desvendar o mistério que gira em torno da identidade de um jovem morto em uma ação policial. Seguindo pistas incongruentes e ilógicas, Spino persiste em sua investigação, durante todo o romance, na tentativa de responder à pergunta: quem é Carlo Nobody? Ao final da narrativa, consegue marcar um encontro noturno e misterioso no armazém de um velho porto com uma pessoa desconhecida que hipoteticamente iria lhe fornecer a informação tão desejada. Chegando ao local designado, Spino se vê, no entanto, sozinho. Ninguém compareceu ao encontro. É nesse momento que o protagonista ri e, em seguida, avança na escuridão.

Em Autobiografie Altrui, o próprio Antonio Tabucchi propõe uma reflexão a respeito dos motivos que levaram Spino ao riso no final do romance. Uma das hipóteses propostas pelo escritor italiano221

diz respeito à concepção pirandelliana sobre o humorismo. Para que seja possível a compreensão da análise feita por Tabucchi de seu próprio romance, é necessário proceder ao aprofundamento do que se entende por

218 Cf. PIRANDELLO, 2010a, p. 124. 219 Cf. PIRANDELLO, 2010a, p. 124.

220 Autobiografie Altrui é um texto de Antonio Tabucchi que se propõe uma autobiografia na qual o

escritor remete ao processo de criação de algumas de suas obras, mas que, no entanto, está repleta de elementos ficcionais como será possível perceber em outras discussões que serão estabelecidas ao longo desta tese.

humorismo, na concepção de Luigi Pirandello. Como explica Pirandello, desde a Antiguidade e depois na Idade Média, acreditava-se que

“Li uomini” si legge in un vecchio libro di mascalcia “hanno quattro umori: cioè lo sangue, la collera, la flemma e la malinconia: e questi umori sono cagione delle infermità degli uomini.” E in Brunetto Latini: “Malinconia è un umore, che molti chiamano collera nera, ed è fredda, e secca, ed ha il suo sedio nello spino”, com’è insomma nel latino di Cicerone e di Plinio. Sant’Agostino poi in un suo sermone ci fa sapere che “i porri accendono la collora, i cavoli generano malinconia” (PIRANDELLO, 2010a, p. 6).222

O termo “humor” possui, portanto, o significado de moléstia, e a “melancolia”, de acordo com Pirandello, “prima di significare quella delicata affezione o passion d’animo che intendiamo noi, abbia avuto in origine il senso di bile o fiele e sia stata per gli antichi un umore nel significato materiale della parola” (PIRANDELLO, 2010a, p. 6)223. Segundo Antonio Tabucchi, Spino pode ser considerado um clássico homo melancholicus, sendo que, “alla fine, il suo umore melancolico, la sua atra bilis, si è trasformato in humour, in ciò che Pirandello chiama ‘umorismo’” (TABUCCHI, 2003b, p. 54)224

. De acordo com Tabucchi225, Spino completou, ao final do romance, o ciclo de uma doença, representada por sua obsessão em descobrir a identidade do jovem morto. Sendo assim, chegando ao fim de sua procura, se libera de sua depressão e ri. A sua busca não mais importa, já que a narrativa de Il filo dell’orizzonte era justamente o desenrolar de sua enfermidade.

No entanto, me parece mais atraente outra hipótese, levantada por Tabucchi226

, segundo a qual, Spino ri ao se dar conta de que não passa de uma marionete nas mãos do acaso e de que, ao final do seu percurso, havia voltado para o mesmo lugar. Em sua busca, Spino percebe que, ao investigar a identidade daquele jovem morto, era a si mesmo que estava procurando.

222 “‘os homens – lê-se em um velho livro da arte da cura – têm quatro humores: isto é, o sangue, a cólera,

a fleuma e a melancolia; e estes humores são causa das enfermidades dos homens.’ E em Brunetto Latini: ‘A melancolia é um humor, que muitos chamam cólera negra, é fria, e seca, e tem seu assento na espinha’ – como se encontra, em suma, no latim de Cícero e Plínio. Santo Agostinho, a seguir, em seu sermão, nos informa que ‘os porros acendem a cólera, as couves geram a melancolia’” (PIRANDELLO, 2009c, p. 44).

223 “antes de significar essa delicada afecção ou paixão da alma, como nós a entendemos, tivera na origem

o sentido de bílis ou fel e havia sido para os antigos um humor na acepção material do termo” (PIRANDELLO, 2009c, p. 45).

224 “ao final, o seu humor melancólico, a sua atra bilis, transformou-se em humour, no que Pirandello

chama ‘humorismo’”. (Tradução Nossa).

225 Cf. TABUCCHI, 2003b, p. 54. 226 Cf. TABUCCHI, 2003b, p. 57.

“Piange? Chi era Ecuba per lui?”. (...) forse lo avrebbe scritto a Sara, ma senza dare grandi spiegazioni, semplicemente così come ora lui aveva capito che il guitto che piangeva (ma chi era?), anche se in altra forma e in altro modo vedeva in Ecuba se stesso. Ha pensato alla forza che hanno le cose di tornare e a quanto di noi stessi vediamo negli altri (TABUCCHI, 2008b, p. 97-98).227

“Signor Spino, ride? Chi era Nobodi per lei?” (TABUCCHI, 2003b, p. 52)228

, pergunta Antonio Tabucchi em Autobiografie Altrui. Spino percebe que o jovem morto Carlo Nobody era, na verdade, ele mesmo. Nessa referência ao Hamlet de Shakespeare229 está a reflexão de Spino sobre sua própria busca. Assim como Hamlet se surpreende com a reação do ator, que se emociona ao recitar um trecho da tragédia de Hécuba, e se indaga sobre qual seria a relação deste com a rainha de Troia, a qual evidentemente não poderia existir, Spino se conecta ao jovem morto ao ver-se nele refletido. É justamente essa a explicação que o protagonista do romance de Tabucchi encontra para esse verso de Shakespeare ao afirmar que a emoção do ator provém do fato de este ver a si próprio em Hécuba. No entanto, ao contrário do personagem de Hamlet, Spino se extravasa em um riso amargo, humorístico.230

Ao ver a si mesmo naquele jovem morto, o personagem de Il filo dell’orizzonte empreende um percurso circular em que, ao fim, retorna ao ponto de partida, ou seja, ele mesmo. A ideia de que a verdade, assim como a linha do horizonte, não pode ser alcançada está presente no próprio título do romance, na medida em que não importa o quanto o sujeito se desloque em sua busca, o fio ou a linha do horizonte o acompanha sempre, aparentemente imóvel, o que significa que Spino, na verdade, não saiu do lugar. Como é comum às obras de Antonio Tabucchi, o final do romance permanece em aberto, na medida em que não é revelada ao leitor a verdadeira identidade de Carlo Nobody, mantendo-se o enigma sem solução.

227 “‘Chora? Quem era Hécuba para ele?’ (...) talvez pudesse tê-lo escrito à Sara, mas sem grandes

explicações, simplesmente assim tal como agora percebera intuitivamente, e também ela teria percebido que o desgraçado que chorava (mas quem era?), ainda que de outra forma e de outra maneira, se via a si próprio em Hécuba. Pensou na força com que as coisas voltam e em quanto de nós próprios vemos nos outros” (TABUCCHI, 1994d, p. 81-82).

228 “Senhor Spino, ri? Quem era Nobody para o senhor?”. (Tradução Nossa).

229 O verso “Quem era Hécuba para ele?” (“What’s Hecuba to him?”) foi extraído de Hamlet, de William

Shakespeare, por Antonio Tabucchi. Nessa passagem de Hamlet, um ator recita em forma de monólogo o trecho da tragédia de Hécuba em que a rainha de Troia vê seu marido Priam ser morto por Pyrrhus durante a Guerra de Troia. Nesse momento, o ator que recitava o monólogo chora inexplicavelmente, o que leva Hamlet a refletir sobre a relação entre esse ator e a personagem Hécuba.

230 É importante salientar que, no trecho em que Antonio Tabucchi indaga “Signor Spino, ride? Chi era

Nobodi per lei?”, o escritor italiano faz uma referência ao verso de Shakespeare “Quem era Hécuba para ele?”. No entanto, na frase de Antonio Tabucchi, a presença do humorismo de Pirandello faz com que o sentido desse trecho da tragédia shakespeariana seja invertido, convertendo o choro do ator por Hécuba em Hamlet no riso amargo de Spino em Il filo dell’orizzonte e, assim, revertendo o evento trágico em fato humorístico.

Segundo Tabucchi231

, Spino recebeu xeque-mate da vida, o que merece uma risada, já que esta liberta e absolve. No entanto, o riso não é tão somente uma forma de libertação, já que pode ser provocado pela negação dessa mesma liberdade, ou pela tomada de consciência de que se trata de uma liberdade aparente como aquela da marionete, a qual é comandada por fios invisíveis. De acordo com Tabucchi232

, talvez Spino tenha percebido que não era de fato livre, já que fios invisíveis o conduziram até aquele ponto. Quando se reconhece como uma marionete, Spino ri, e ao fazer isso, demonstra ter consciência de sua condição, o que acaba por dissolver os fios que o moviam.

Sob essa perspectiva, segundo minha compreensão, Spino elabora o “sentimento do contrário”, derivado de uma “especial atividade da reflexão”, como define Pirandello233, tendo como resultado o riso amargo com que encerra o romance. Após um momento de autorreflexão, emerge em Spino um sentimento oposto àquele inicial, que lhe proporciona passar da ignorância de sua condição de ser manipulado para sua tomada de consciência dessa mesma condição. Nesse instante, percebe o ridículo de sua situação e, por isso, ri.

A partir dessas considerações, penso que Spino experimenta, ainda, o que Pirandello234 descreve como uma “strana impressione” (“estranha impressão”) que, de súbito, proporciona ao indivíduo ter um lampejo de uma realidade diversa daquela a que está habituado, fazendo com que a existência cotidiana pareça privada de sentido. Com isso, Pirandello conclui que “il vuoto interno si allarga, varca i limiti del nostro corpo, diventa vuoto intorno a noi, un vuoto strano come un arresto del tempo e della vita, come se il nostro silenzio interiore si profondasse negli abissi del mistero” (PIRANDELLO, 2010a, p. 146)235. Como consequência, após o súbito acesso de riso ao qual Spino é acometido, resta ao personagem penetrar na escuridão: “Suo malgrado ha cominciato a ridere, prima piano, poi più forte. Si è girato e ha guardato l’acqua, a pochi metri di distanza. Poi è avanzato nel buio” (TABUCCHI, 2008b, p. 105)236.

231 Cf. TABUCCHI, 2003b, p.56. 232 Cf. TABUCCHI, 2003b, p. 57-58. 233 Cf. PIRANDELLO, 2010a, p. 121-124. 234 Cf. PIRANDELLO, 2010a, p. 146.

235 “o vazio interno se alarga, transpõe os limites de nosso corpo, torna-se um vazio ao nosso redor, um

vazio estranho, como um arresto do tempo e da vida, como se o nosso silêncio interior se aprofundasse nos abismos do mistério” (PIRANDELLO, 2009c, p. 170).

236 “Sem querer desatou a rir, primeiro baixo, depois mais alto. Voltou-se e olhou para a água, a poucos

Essa experiência, segundo Pirandello237

, permite ao sujeito “ver-se vivendo”, como quando, diante do espelho, inconscientemente erguemos uma mão e o gesto nos permanece suspenso, pois temos a estranha sensação de que não o fizemos. Como atesta o dramaturgo italiano, nesse instante, as formas fictícias que criamos para nós e com as quais estamos habituados ruem completamente “e gli occhi nostri diventano più acuti e più penetranti, noi vediamo noi stessi nella vita, e in se stessa la vita, quase in una nudità arida, inquietante” (PIRANDELLO, 2010a, p. 146)238.

Na concepção de Pirandello239, essas diversas formas fictícias que criamos para nós são tentativas de fixar o fluxo contínuo da vida em formas estáveis e determinadas. Como resultado, nos compomos de máscaras tão diversas quanto as situações que vivenciamos. Para cada situação ou contexto, apresentamos uma máscara diferente. E, assim, somos feitos dessa ficção, “e niente è vero! Vero è il mare, sì, vera la montagna; vero il sasso; vero un filo d’erba; ma l’uomo? Sempre mascherato, l’uomo, senza volerlo, senza saperlo, di quella tal cosa ch’egli in buona fede si figura d’essere” (PIRANDELLO, 2010a, p. 147)240.

1.4 Algumas considerações sobre Fernando Pessoa e sua presença nas obras de