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A mutabilidade do sujeito no decorrer do tempo: outra faceta da multiplicidade

Relacionada à discussão sobre a multiplicidade do “eu” está, ainda, a reflexão sobre a mutabilidade do sujeito no decorrer do tempo. De acordo com Pirandello317, as inevitáveis mudanças causadas pela passagem do tempo fazem com que sejamos vários ao longo da vida. Isso significa que não somos no presente os mesmos que fomos anos atrás. Pensando de maneira mais radical, a reflexão nos leva a concluir que estamos em contínuo processo de mutação, sendo que a cada segundo somos outra pessoa, ou seja, no segundo seguinte a um dado instante já não somos mais os mesmos que fomos no segundo anterior. Sendo assim, Pirandello se vale do pensamento de Pascal para concluir seu raciocínio sobre essa questão: “Non c’è uomo, osservò il Pascal, che differisca più da un altro che da se stesso nella successione del tempo” (PIRANDELLO, 2010a, p. 144)318. Discussão semelhante é apresentada na peça teatral Sei personaggi in cerca d’autore a partir de uma consideração do personagem Pai, se reportando ao diretor:

Soltanto per sapere, signore, se veramente lei com’è adesso, si vede... come vede per esempio, a distanza di tempo, quel che lei era una volta, con tutte le illusioni che allora si faceva; con tutte le cose, dentro e intorno a lei, come allora le parevano, ed erano, erano realmente per lei! Ebbene, signore: ripensando a quelle illusioni che adesso lei non si fa più; a tutte quelle cose che ora non le “sembrano” più come per lei “erano” un tempo; non si sente mancare, non dico queste tavole di palcoscenico, ma il terreno, il terreno sotto i piedi, argomentando che ugualmente “questo” come lei ora si sente, tutta la sua realtà d’oggi così com’è, è destinata a parerle illusione domani? (PIRANDELLO, 2015, p. 124).319

A questão da mutabilidade do sujeito no decorrer do tempo pode ser, ainda, representada na literatura pela metáfora da fotografia, a qual conduz igualmente à reflexão sobre a multiplicidade. A esse respeito, em seu livro de ensaios Pessoana

317 Cf. PIRANDELLO, 2010a, p. 144.

318“Não há homem, observou Pascal, que difira mais de um outro do que de si mesmo na sucessão do

tempo” (PIRANDELLO, 2009c, p. 168).

319 “Somente para saber se realmente o senhor, tal como é agora, se vê... como vê, por exemplo, na

distância do tempo, aquele que o senhor era antigamente, com todas as ilusões que o senhor alimentava então; com todas as coisas, dentro do senhor e ao seu redor, como lhe pareciam então – e eram, realmente eram para o senhor! – Pois bem – pensando novamente naquelas ilusões, que agora o senhor já não alimenta mais; em todas aquelas coisas que agora já não lhe “parecem” mais como “eram” em outro tempo; não sente que lhe falta, já não digo estas tábuas do palco, mas o chão, o chão sob os seus pés, argumentando que, da mesma forma, “este” como o senhor se sente agora, toda a sua realidade de hoje, tal como é, está destinada a parecer-lhe ilusão amanhã?” (PIRANDELLO, 2009d, p. 229).

Mínima, Antonio Tabucchi320 indaga se em uma sucessão de fotografias de alguém, estariam representadas diferentes pessoas, tendo em vista a ideia de que nos transformamos a cada segundo, não sendo jamais os mesmos ao longo do tempo, ou se a sequência de fotos não representaria nada além de uma única pessoa segmentada em vários tempos: “Mas quantas vidas há numa vida? Tentemos observar a vida de uma pessoa através dos seus retratos de épocas diferentes: não teremos um arrepio de consternação? É a mesma pessoa segmentada em vários tempos ou o tempo segmentado em várias pessoas?” (TABUCCHI, 1984, p. 32).

A mutabilidade do ser humano ao longo do tempo não se dá apenas no aspecto físico. De acordo com as várias etapas da vida, o sujeito possui uma visão de mundo, diferindo em seus conceitos, ideias e pensamentos. Sendo a mudança uma constante em sua trajetória, o sujeito tal qual se apresenta hoje não pode ser o mesmo que foi ontem e certamente não será idêntico ao de amanhã. É nesse sentido que, um sujeito cruzando em uma rua com o seu “eu” de há vinte anos não pode se reconhecer neste, tamanha a mudança operada em seu interior. É justamente essa a experiência vivenciada pelo heterônimo pessoano Álvaro de Campos em seu poema “Realidade”:

Há vinte anos!...

O que eu era então! Ora, era outro...

Há vinte anos, e as casas não sabem de nada... (...) Tento reconstruir na minha imaginação

Quem eu era e como era quando por aqui passava Há vinte anos...

Não me lembro, não me posso lembrar. O outro que aqui passava então, Se existisse hoje, talvez se lembrasse...

Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro

Do que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui! (PESSOA, 2007b, p. 421).

Talvez seja mais fácil conhecer por dentro uma personagem de romance do que a si mesmo na sucessão do tempo, como afirma Álvaro de Campos, devido ao fato de a personagem ter sua realidade fixada em uma forma, coerente e imutável, como diria o Pai de Sei personaggi in cerca d’autore. É esse o motivo que leva a personagem a indagar ao diretor sobre quem ele é:

Un personaggio, signore, può sempre domandare a un uomo chi è. Perché un personaggio ha veramente una vita sua segnata di caratteri suoi, per cui è

sempre “qualcuno”. Mentre un uomo – non dico lei, adesso, un uomo così in genere, può non esser “nessuno” (PIRANDELLO, 2015, p. 123).321

De acordo com a fala do personagem Pai, é possível afirmar que, a constante mutabilidade do sujeito faz deste um ser múltiplo, o qual assume inúmeras máscaras ao longo da vida, sendo que a retirada da última delas pode revelar o simples vazio. É por esse motivo que o sujeito pode ser encarado como sendo “ninguém”, o que resulta da impossibilidade de este sustentar uma identidade única e imutável ao longo do tempo. Na visão do personagem Pai, sendo tão vário e instável, o sujeito acaba por se tornar nulo.

Em “Lisbon Revisited (1926)”, ao rever a cidade da sua infância, o sujeito poético na voz de Álvaro de Campos se indaga se ele próprio seria o mesmo que ali viveu anos atrás ou se, na verdade, a cidade teria sido visitada, no decorrer do tempo, pelos inúmeros “eus” sucessivos de que o poeta é constituído. A consciência de sua pluralidade faz com que o sujeito se reconheça enquanto “outro”, sendo que a constatação dessa alteridade se dá de forma tão incisiva, que chega ao ponto de o sujeito não mais se reconhecer. O poeta assume, portanto, sua pluralidade, não mais podendo se ver idêntico na sucessão do tempo. Resta o dilaceramento desse “eu”, o qual percebe não lhe ser possível ter uma visão totalizante de si, levando o sujeito a se reconhecer como fragmento:

Outra vez te revejo,

Cidade da minha infância pavorosamente perdida... Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, E aqui tornei a voltar, e a voltar,

E aqui de novo tornei a voltar?

Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram, Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória, Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim? (...) Outra vez te revejo,

Mas, ai, a mim não me revejo!

Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico, E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim – Um bocado de ti e de mim!... (PESSOA, 2007b, p. 270-271).

321 “Uma personagem, senhor, sempre pode perguntar a um homem quem ele é. Porque uma personagem

tem verdadeiramente uma vida própria, marcada por suas características, pelas quais é sempre ‘alguém’. Enquanto um homem – não estou falando do senhor, agora – um homem assim, genericamente, pode ser ‘ninguém’” (PIRANDELLO, 2009d, p. 229).

Também em Antonio Tabucchi, a consciência do sujeito enquanto ser fragmentado está presente, o que se expressa, comumente, na busca pela própria identidade por meio da perseguição do “outro”, o qual pode representar, para o sujeito, uma imagem especular de si ou uma parcela de um passado remoto. Nesse ponto, se faz necessário, portanto, situar a relação entre identidade e alteridade nesta discussão.