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Uma narrativa fragmentada e múltipla perpassa os textos de Antonio

2.4 A multiplicidade dos pontos de vista e das possibilidades interpretativas em

2.4.1 Uma narrativa fragmentada e múltipla perpassa os textos de Antonio

Um exemplo surpreendente de multiplicidade narrativa na obra de Tabucchi é a história de Isabel, a qual se delineia nas entrelinhas de alguns dos textos do escritor italiano, insinuando uma narrativa que pode apresentar mais de uma versão. Fragmentos e alusões a essa história aparecem em Requiem quando o protagonista tenta desvendar o que levou Isabel a cometer suicídio, o que provavelmente se deu devido ao arrependimento após se submeter a um aborto. Para obter as respostas que procura, o protagonista se encontra com o fantasma de seu amigo Tadeus e lhe indaga sobre o significado de uma frase que ele lhe escrevera quando estava à beira da morte, pois julgava ter aquela sentença alguma relação com a morte de Isabel. A frase era: “foi tudo

culpa do herpes zoster” (TABUCCHI, 2001a, p. 34). No entanto, nesse encontro insólito, o protagonista obtém de Tadeus apenas frases vagas e reticentes, deixando a dúvida sobre a morte de Isabel prevalecer:

O que é que tu querias, meu tímido, disse respondendo à minha pergunta precedente, que nascesse um bastardinho com dois pais? Eu não sabia da tua história com a Isabel, disse eu, só a descobri muito mais tarde, tu enganaste-me, Tadeus. E depois perguntei: mas era teu ou meu? Sei lá, disse ele, de qualquer modo teria sido um infeliz. (...) foi em consequência de tudo aquilo que ela teve aquela depressão e foi por causa da depressão que ela se suicidou, é isso que eu quero saber, se o bom conselheiro foste tu. Já te disse que é a ela que deves perguntar isso, defendeu-se Tadeus, eu não sei, juro, não sei nada (TABUCCHI, 2001a, p. 40).

Em sua viagem incongruente pela cidade de Lisboa, o protagonista de Requiem decide revisitar um quadro no Museu de Arte Antiga: As tentações de Santo Antão, de Bosch. No museu, conhece um pintor que se dedicava a copiar detalhes daquele quadro. É o Pintor Copiador quem explica ao protagonista que o quadro de Bosch já havia tido um valor taumatúrgico, tendo ficado exposto em um hospital onde eram tratadas pessoas com doenças de pele, como o fogo de Santo Antão, cujo nome científico é herpes zoster. É nesse quadro e em sua relação com a doença a que Tadeus se referiu no leito de morte que pode estar uma das chaves de leitura para a história de Isabel.

Então fale-me desse vírus, disse eu, o que é que sabe desse vírus? É um vírus muito estranho, disse o Pintor Copiador, parece que todos o albergamos dentro de nós em estado larvar, mas ele manifesta-se quando as defesas do organismo estão mais fracas, então ataca com virulência, e depois adormece e volta a atacar ciclicamente, olhe, digo-lhe uma coisa, eu acho que o herpes é um pouco como o remorso, fica adormecido dentro de nós e um belo dia acorda e ataca- nos, e depois volta a adormecer porque nós conseguimos amansá-lo, mas fica sempre dentro de nós, não há nada a fazer contra o remorso (TABUCCHI, 2001a, p. 68).

As informações que o protagonista obtém do Pintor Copiador sobre As tentações de Santo Antão lançam uma nova luz sobre o enigma de Tadeus ao permitirem o estabelecimento de uma relação entre o quadro e a frase misteriosa que o amigo deixa ao protagonista antes de morrer. É assim que a mensagem de Tadeus pode adquirir sentido: foi tudo culpa do remorso. Foi o remorso que levou Isabel a cometer aqueles atos para os quais o protagonista procura uma explicação e também é o remorso que o atormenta devido à sua parcela de culpa pelos acontecimentos.

Esse requiem, cujo significado é justamente uma missa para pedir o repouso dos mortos, pode ser considerado, portanto, uma forma de apaziguar o tormento suscitado no protagonista pela lembrança desses dois personagens, os quais foram peças centrais de um drama de intriga e morte que deve ser decifrado pelo leitor a partir das várias sugestões que lhe são fornecidas ao longo de diversos textos de Antonio Tabucchi. Devido à intratextualidade, recurso comumente utilizado pelo escritor italiano, o qual permite ao leitor, frequentemente, interligar vários de seus textos, os dois personagens em questão reaparecem no conto “Voci portate da qualcosa, impossibile dire cosa”, integrante do livro L’angelo Nero, ainda como fantasmas que assombram o protagonista e dos quais pretende se libertar, sabendo a verdade sobre o motivo do suicídio de Isabel. Nesse conto, Antonio Tabucchi apresenta um protagonista enigmático, o qual pratica um jogo que consiste em captar frases aleatórias pronunciadas pelos transeuntes para que, assim, possa apreender um significado a partir do texto final. No entanto, em meio ao jogo, o protagonista acredita receber uma mensagem de Tadeus, oculta em uma frase captada ao acaso: “Non sono mai riuscito a dirtelo prima, ma ora è necessario che tu sappia” (TABUCCHI, 2007f, p. 18)475.O protagonista relaciona a frase enigmática à história de Isabel, pensando que Tadeus pretendia se encontrar com ele para fazer alguma revelação. Isso o leva a recordar de seu passado:

bisognerebbe mettersi lì a ricostruire tutto con minuzia, quei momenti, quell’estate infausta, le burrasche del settembre, le serate di solitudine, la villa, Isabel che voleva sempre qualcuno a cena, aveva paura, forse, quelle serate le facevano paura (...). Tadeus, quel giorno eri tu con l’altra automobile, fosti tu a convincere Isabel a fare quella cosa, ti incaricasti tu di tutto, tramasti tutto, organizzasti tutto, fosti tu a preparare la sua perdizione. (...) E Magda, pensi, che ruolo ebbe in tutta questa storia? (TABUCCHI, 2007f, p. 20-24).476

A perturbação do protagonista de “Voci portate da qualcosa, impossibile dire cosa” se acentua quando ouve outra frase ao acaso: “è una malattia che oggi si può controllare, dice lui, è un virus simile all’herpes zoster” (TABUCCHI, 2007f, p. 27)477. A partir de certos trechos do conto é possível, portanto, estabelecer um paralelo entre

475 “Nunca consegui dizer-lhe antes, mas agora é preciso que você saiba” (TABUCCHI, 1994e, p. 16). 476 “seria preciso ficar ali reconstruindo tudo com minúcia, aqueles momentos, aquele verão infeliz, os

temporais de setembro, as noites de solidão, a casa, Isabel, que queria o tempo todo ter alguém para jantar, tinha medo, quem sabe, aquelas noites deixavam-na com medo (...). Tadeus, naquele dia era você com outro carro, foi você que convenceu Isabel a fazer aquela coisa, encarregou-se de tudo, tramou tudo, organizou tudo, foi você mesmo que aprontou a perdição dela. (...) E Magda, você fica pensando, que papel ela desempenhou naquela história toda?” (TABUCCHI, 1994e, p. 18-22).

477 “é uma doença que hoje em dia já se pode controlar, diz ele, é um vírus parecido com o herpes-zoster”

este e a narrativa que perpassa o romance Requiem. A menção, no conto, ao herpes zoster, o mesmo vírus a que Tadeus se refere em seu leito de morte em Requiem, é um dos elementos que permitem vislumbrar as conexões possíveis entre ambos os textos.

Situação semelhante ocorre em Per Isabel: un mandala, romance póstumo de Antonio Tabucchi. Nesse romance, outras versões da história da personagem são apresentadas. No entanto, dessa vez, é Tadeus quem tenta reconstruir a história de Isabel seguindo as pistas que o levam ao longo de círculos concêntricos até o centro do mandala que ele próprio está desenhando para a personagem feminina, no intuito de conhecer a verdade sobre esta. Contudo, o que ocorre é a reafirmação, própria a vários escritos de Tabucchi, da impossibilidade de se apreender a totalidade ou de se alcançar a verdade absoluta. Sendo assim, ao fim da narrativa, vários aspectos da história de Isabel permanecem em aberto.

Em Per Isabel, existe a dúvida se a personagem estava grávida ou não e, em caso afirmativo, quem seria o pai, como adverte sua amiga Monica: “Isabel è incinta, pare, ma non si sa se dello spagnolo o del polacco” (TABUCCHI, 2013e, p. 26)478. Nessa passagem, as possibilidades se ramificam, já que, apesar da história parecer coincidir com aquela de Requiem, surge um novo personagem, a quem Monica se refere como “o espanhol”. O “polaco” mencionado pela amiga de Isabel, poderia se tratar de Tadeus, conforme uma pista que pode ser encontrada em uma fala do protagonista de Requiem ao se referir ao amigo: “era filho de pais polacos, repliquei, mas ele não era polaco, era bem português” (TABUCCH, 2001a, p. 27). Monica explica a Tadeus que Isabel tinha desaparecido, provavelmente para fugir da polícia política salazarista. Além disso, a amiga teve notícias da morte de Isabel por meio de um jornal: “corsero voci che si era suicidata, ma non erano voci attendibili, appartenevano a persone che all’università ne sapevano quanto me” (TABUCCHI, 2013e, p. 29-30)479.

A pista de que Isabel tinha sido presa pela polícia política conduz Tadeus a Pai Tomás, homem que tinha sido carcereiro da jovem em Caxias. Pai Tomás nega que Isabel estivesse grávida e que tenha morrido na prisão: “La signorina non ha mai mangiato vetri, mormorò, non è morta in carcere, è solo quello che tutti hanno creduto, ma la verità è un’altra” (TABUCCHI, 2013e, p. 54)480. Pai Tomás afirma que a mulher

478 “a Isabel está grávida, parece, mas não se sabe se do espanhol se do polaco” (TABUCCHI, 2014, p.

24).

479 “constou que se tinha suicidado, mas não eram notícias dignas de crédito, vinham de pessoas da

faculdade que sabiam tanto do assunto como eu” (TABUCCHI, 2014, p. 28).

480 “A menina não comeu vidros nenhuns, murmurou, nem morreu na prisão, isso foi o que todos

que suicidara não era Isabel, e acrescenta que, inclusive, a teria ajudado a fugir da prisão. Após perseguir outras pistas, a busca de Tadeus o leva a Macau, ponto da narrativa em que passa a procurar por Isabel também pelo nome de Magda, identidade falsa usada pela personagem para escapar do regime salazarista.

A referência às personagens Magda e Isabel aparece no romance Notturno Indiano, no qual as duas mulheres podem ser tidas como a imagem especular uma da outra. É por esse motivo que Roux, ao escrever uma carta para Isabel, percebe que, na verdade, esta deveria ser endereçada a Magda. Em outro momento da narrativa, Roux recorda de uma cena do passado em que fez um piquenique com Xavier, Magda e Isabel. Roux é atormentado pela lembrança das duas mulheres, o que sugere um acontecimento misterioso em seu passado envolvendo os quatro personagens. Ainda no romance Per Isabel, Tadeus se encontra com Xavier, o amigo perseguido pelo protagonista de Notturno Indiano, para lhe indagar sobre o paradeiro de Isabel, ao que Tadeus se defronta com mais enigmas.

Ao final de Per Isabel, Tadeus chega ao último círculo do mandala que estava construindo, o que lhe permite se encontrar com a personagem feminina em uma atmosfera onírica:

il tuo centro è il mio nulla in cui mi trovo ora, io ho voluto scomparire nel nulla, e ci sono riuscita, e in questo nulla tu mi ritrovi ora con il tuo disegno astrale, però sappi bene una cosa, non sei tu che hai ritrovato me, sono io che ho ritrovato te, tu credi di aver compiuto una ricerca per me, ma la tua ricerca era solo per te stesso. Cosa vuoi dire, Isabel?, chiesi. Lei mi strinse forte la mano. Voglio dire che tu volevi liberarti dei tuoi rimorsi, non ero tanto io che tu cercavi, ma te stesso, per dare un’assoluzione a te stesso (TABUCCHI, 2013e, p. 116).481

O que parece se delinear nesses textos de Tabucchi, que trazem diferentes versões para a história de Isabel, é a busca da narrativa pelos vários protagonistas, a qual coincide com a procura de si e de uma forma de reconciliação com o passado, como afirma a personagem feminina no trecho citado. Conectando os vários textos perpassados por essa mesma história que é, a um só tempo, semelhante e diversa, é possível perceber os pontos em que os fatos se entrecruzam, assim como os momentos

481 “o teu centro é o meu nada em que me encontro agora, eu quis desaparecer no nada e consegui, e neste

nada tu encontras-me agora com o teu desenho astral, mas fica a saber que não foste tu que me encontraste, fui eu que te encontrei a ti, tu julgas que levaste a cabo uma demanda por mim, mas a tua demanda era só por ti mesmo. O que queres dizer, Isabel?, perguntei. Ela apertou-me a mão com força. Quero dizer que tu querias libertar-te dos teus remorsos, não era tanto a mim que procuravas, mas sim a ti, para te dares uma absolvição a ti mesmo” (TABUCCHI, 2014, p. 104).

em que se distanciam, como uma rede textual que se abre ao infinito. Em nenhuma das versões da história é revelado como se dá a morte de Isabel, e nem se deve ter a pretensão de alcançar as respostas para as questões que envolvem essa pergunta. Como afirma a personagem Lise de Per Isabel: “non si può credere di poter arrivare ai confini dell’universo, perché l’universo non ha confini” (TABUCCHI, 2013e, p. 106)482.

Seja em Per Isabel ou em Requiem, ou ainda no conto “Voci portate da qualcosa, impossibile dire cosa”, Tadeus e Isabel aparecem como fantasmas que atravessam a obra de Tabucchi, invocando as memórias dos protagonistas desses textos, os quais se mostram atormentados pelas lembranças do passado. Nesse texto, ao mesmo tempo fragmentado e plural, os pontos de vista se alternam e os fatos se contradizem, fazendo com que a ambiguidade e a dúvida se perpetuem. A história de Isabel exprime, portanto, várias facetas do fazer literário de Antonio Tabucchi, escritor que, lançando seu olhar sobre Fernando Pessoa e Luigi Pirandello, compreendeu a multiplicidade como um elemento fundamental para a constituição de seu universo narrativo.

482 “não é possível acreditar que se pode chegar aos confins do universo, porque o universo não tem

O JOGO ENTRE REAL E FICCIONAL, A ENCENAÇÃO E O FINGIMENTO