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A (não) cobrança de Propinas enquanto forma de Apoio Indireto

Capítulo 2. Enquadramento Teórico: Ação Social no Ensino Superior

2.4. Sistemas de Apoio Social no Ensino Superior

2.4.1. A (não) cobrança de Propinas enquanto forma de Apoio Indireto

A política de propinas adotada é um aspeto importante a ter em consideração quando se analisam os apoios sociais aos estudantes do ensino superior, pois elas representam um dos encargos que os estudantes, ou as suas famílias, têm que suportar. A não cobrança de propinas, ou a cobrança de valores relativamente baixos de propinas, é uma forma indireta de apoio público, na medida em que quanto menor for o encargo com propinas, menor é a necessidade de apoio financeiro aos estudantes. Contudo, mesmo que não existam propinas, os apoios sociais continuam a assumir um papel importante no acesso dos estudantes oriundos de contextos desfavorecidos, pois sem eles, muitos desses estudantes não conseguiriam suportar os restantes custos associados à frequência universitária. Relativamente às propinas, como forma de cofinanciar os custos do ensino superior, importa compreender a forma como estas podem ser aplicadas. Marcucci e Johnstone (2007) distinguem quatro tipos de políticas de cobrança de propinas:

Política de não fixação de propinas, centrada na responsabilidade do Estado em financiar os

custos da educação superior, justificada pelos benefícios coletivos do ensino superior;

Política de “propinas à cabeça”, fundamentada na responsabilidade de os pais suportarem os

custos com a educação dos filhos, devendo estes pagar em função da sua capacidade financeira, sendo muitas vezes auxiliados por meio de outros apoios públicos aos estudantes e às famílias;

Política dual de propinas, em que coexistem dois tipos de estudantes: para um certo número

de vagas, limitadas e seletivas, os estudantes estão isentos do pagamento de propinas; e ao mesmo tempo noutro número de vagas os estudantes ficam sujeitos ao pagamento de propinas20;

Política de propinas diferidas, que reconhece a exigência de os estudantes suportarem parte

dos custos do ensino superior, mas ao mesmo tempo a sua incapacidade de o fazerem enquanto estão a estudar. O recurso a empréstimos é o mecanismo que permite diferir no tempo o pagamento desses custos, com reembolsos exigidos após a conclusão do curso superior, que podem inclusive ser indexados ao rendimento futuro do diplomado.

20 Note-se que este tipo de política dual de propinas é muitas vezes utilizada para diferenciar estudantes

nacionais de estudantes internacionais, prática comum à maioria dos países da União Europeia, que distinguem os estudantes oriundos dos países que fazem parte da União Europeia, ou do Espaço Económico Europeu, dos que são oriundos de fora.

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Um dos argumentos a favor da aplicação de propinas é a regressividade dos sistemas de acesso livre ou gratuitos, ou seja, o facto de serem as classes médias e médias altas as que beneficiam dessa gratuitidade, dado que a maioria dos estudantes que ingressam no ensino superior provêm dessas classes. Daí que, de acordo com os defensores da não gratuitidade do ensino superior, se justifique a aplicação de propinas, ainda que reconheçam que devam ser conjugadas com políticas de ação social, no sentido de permitir o acesso aos estudantes que não têm capacidade de pagar esse custo, seja através da atribuição de bolsas de estudo ou da implementação de programas de empréstimos. Contudo, os opositores à cobrança de propinas contrapõem este argumento, contra-argumentando que é a aplicação de propinas que faz com que a taxa de participação dos estudantes oriundos dos grupos mais desfavorecidos seja relativamente baixa. A tabela 2.2 contrapõe os principais argumentos dos defensores e opositores das propinas.

A este respeito, Johnstone (2007) refere que na maioria dos países a procura do ensino superior é relativamente rígida, ou inelástica, face ao aumento dos preços. Dos vários estudos realizados a nível internacional, o autor conclui que apesar de poderem ocorrer mudanças na estrutura social da população estudantil do ensino superior como consequência do aumento das propinas, como ocorreu no Reino Unido ou nos Estados Unidos, tal não acontece em todos os países. Por exemplo, na Austrália ou na Nova Zelândia o aumento das propinas, ainda que com pagamento diferido, não influenciou a composição social dos estudantes do ensino superior. O autor relata ainda o caso da Irlanda, onde a redução das propinas não teve nenhum impacto no acesso ao ensino superior por parte de estudantes das classes sociais mais baixas; pelo contrário, os grupos socioeconómicos desfavorecidos ficaram ainda menos representados no ensino superior, apesar da diminuição das propinas.

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Tabela 2.2 – Argumentos a favor e contra as propinas no Ensino Superior

Fonte: European Commission/EACEA/Eurydice (1999: 187)

Cerdeira (2008) argumenta que a implementação ou aumento das propinas, mesmo que não tenha impacto direto nas taxas de participação no ensino superior, pode ter como consequências outras alterações como o aumento dos estudantes em tempo parcial, para conseguirem obter algum rendimento adicional, ou a mudança para instituições mais baratas ou mais próximas de casa. O que ocorre devido ao facto de, para muitos estudantes, as outras despesas associadas à frequência do ensino superior (deslocações,

ARGUMENTOS A FAVOR DAS PROPINAS ARGUMENTOS CONTRA AS PROPINAS

MOTIVOS FINANCEIROS

As propinas constituem um elemento essencial no financiamento do ensino superior numa época de 'massificação' do ensino e de contenção dosgastos públicos.

INVESTIMENTO PÚBLICO OU PRIVADO

O ensino superior representa um investimento tanto pessoal como colectivo, do qual os indivíduos beneficiam mais do que a sociedade. Se o ensino superior for gratuito, todos os contribuintes têm de pagar por algo de que só alguns beneficiam

directamente.

A introdução de propinas negligencia o facto de que o investimento no ensino superior constitui acima de tudo um investimento social. O ensino superior é uma prioridade nacional.

FORMA DE EXERCER PRESSÃO SOBRE AS INSTITUIÇÕES

Os estudantes ou as suas famílias transformam-se em consumidores numa conjuntura de mercado. Os estabelecimentos de ensino superior que dependem das propinas entram em concorrência, lutando entre si pela oferta de um serviço de melhor qualidade.

Os resultados, como sejam um ensino de melhor qualidade, ou instituições competitivas, podem ser alcançados por outras vias.

EQUIDADE DO SISTEMA

Os contribuintes incluídos nos grupos sociais mais desfavorecidos

comparticipam num investimento cujas principais mais valias são pessoais, e no entanto a percentagem de estudantes proveniente desses grupos é pequena.

As propinas desempenham o papel de uma barreira, ou filtro, que age sobre os grupos sociais mais desfavorecidos, não afectando os restantes grupos.

MOTIVAÇÃO DOS ESTUDANTES PARA OBTER BONS RESULTADOS

As propinas permitem maximizar a probabilidade de sucesso escolar, já que o investimento individual incentiva os estudantes a atingirem melhores resultados em cada ano.

É possível assegurar a motivação dos estudantes de outras formas.

SELECÇÃO DOS ESTUDANTES MAIS CAPAZES

Quando as propinas constituem um elemento de peso na tomada de decisão, só aqueles que confiam plenamente nas suas capacidades intelectuais optam por ingressar no ensino superior.

Se as propinas estão associadas à progressão e sucesso escolares, então os estudantes provenientes de estratos sociais mais pobres estão em

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alojamento, alimentação, materiais escolares e outras) serem muito mais significativas do que a própria propina.

Em OCDE (2012d)são analisadas as diferentes formas como os custos do ensino superior são compartilhados nos países da OCDE, bem como os apoios que os diferentes Estados disponibilizam aos estudantes do ensino superior, distinguindo 3 grupos de países:

i) Nos países com maior progressividade nos impostos, o ensino superior é tendencialmente gratuito ou cobram-se propinas muito baixas, e os estudantes têm acesso a apoios públicos significativos, mas em contrapartida pagam-se elevadas taxas de imposto sobre o rendimento (como nos países nórdicos);

ii) Noutros países cobram-se propinas bastante elevadas, mas os estudantes podem beneficiar de apoios financeiros também generosos (como a Austrália, o Canadá, a Nova Zelândia, a Holanda e os Estados Unidos);

iii) Ainda noutros casos os montantes pagos pelos alunos para frequentar o ensino superior são mais baixos, mas os apoios públicos também são mais restritivos (como a Áustria, a Bélgica, a França, a República Checa, a Irlanda, a Itália, a Suíça, a Espanha, o México e Portugal).

Neste estudo é argumentado que:

“os sistemas de educação superior que cobram um nível moderado de propinas, combinados com sistemas de apoio financeiro aos estudantes que facultem empréstimos reembolsáveis com rendimentos futuros e auxílios com base na existência de determinado nível de recursos, podem ter maiores hipóteses de promover o acesso, a equidade, a conclusão e os resultados positivos para os estudantes” (OCDE, 2012d:4).

A questão que se coloca é o que se entende por nível moderado de propinas? Independentemente do valor da propina, o que a evidência mostra é que os países que têm sistemas de apoios financeiros mais desenvolvidos, apesar de poderem até cobrar propinas mais elevadas, conseguem alcançar taxas médias de ingresso no ensino superior acima da média, como é o caso da Austrália, da Nova Zelândia, do Reino Unido e dos Estados Unidos (OCDE, 2012d).

Também em países que não cobram propinas, ou cobram valores muito baixos, como é o caso da Finlândia, da Islândia, da Noruega ou da Suécia, as elevadas taxas de ingresso observadas não resultam apenas do facto de não pagarem propinas, mas provavelmente também devido à existência de sistemas de apoio financeiro para subsidiar outro tipo de despesas associadas à frequência do ensino superior: nestes países mais de 55% dos estudantes do ensino superior beneficiam de apoios financeiros e/ou de empréstimos

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públicos (OCDE, 2012d). No outro extremo, podemos observar países que apesar de não cobrarem propinas, continuam a ter taxas de ingresso no ensino superior baixas, como é o caso da Irlanda e do México, que eventualmente podem ser explicadas por sistemas de apoios sociais menos desenvolvidos.

Os estudos efetuados a nível europeu mostram que em todos os países europeus as autoridades públicas contribuem para as despesas do ensino superior, mas, de um modo geral, os montantes atribuídos pelo Estado às instituições de ensino superior cobrem apenas parte dos seus custos. Na maioria dos países, uma parcela significativa das receitas das instituições de ensino superior depende dos estudantes e respetivas famílias, que são obrigadas a contribuir financeiramente para o custo dos seus estudos. A maioria dos países europeus cobra propinas aos estudantes do ensino superior, existindo, no entanto, diferenças significativas na maneira como esta forma de financiar os custos do ensino superior é aplicado em cada país. Procedemos a uma análise exaustiva das fichas informativas sobre os sistemas de ensino superior nacionais dos diversos países europeus, disponíveis em European Commission/EACEA/Eurydice (2015), cuja síntese dos principais custos suportados pelos estudantes do ensino superior se apresenta no anexo I21. A partir

dela, agrupámos os países europeus em quatro grandes grupos:

1) Os países em que o ensino superior é gratuito, não existindo propinas:

Inclui três países nórdicos – Finlândia, Suécia e Noruega: a Finlândia é o único país europeu onde nenhum estudante do ensino superior tem que suportar qualquer tipo de custos, representando portanto a única situação em que o ensino superior é totalmente gratuito; na Suécia, o ensino superior é gratuito para todos os estudantes nacionais, pertencentes à União Europeia ou ao Espaço Económico Europeu, existindo propinas apenas para os estudantes estrangeiros; na Noruega, o ensino superior público é gratuito, não existindo propinas nas instituições de ensino superior públicas, que acolhem a grande maioria dos estudantes.

21 Ver Anexo I – Caracterização dos principais custos suportados pelos estudantes do ensino superior nos

países europeus, construído a partir das 42 National System Information Sheets, disponíveis European Commission/EACEA/Eurydice (2015), relativamente ao ano letivo 2015/16.

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2) Os países em que o ensino superior é tendencialmente gratuito, ou seja, existem propinas, mas estas são suportadas apenas por uma minoria dos estudantes:

Neste segundo grupo de países, em que a maioria dos estudantes do ensino superior não paga propinas, podemos distinguir alguns subgrupos: um primeiro conjunto de países, em que o pagamento de propinas depende dos resultados académicos, ou seja do sucesso/insucesso escolar dos estudantes – na Alemanha22, na República Checa e na Áustria, só os estudantes que

ultrapassem o tempo regular dos estudos têm que pagar propinas (ou em mais de um ano, no caso da Áustria); um segundo conjunto de países, em que o pagamento de propinas apenas se aplica aos estudantes em part-time, sendo que os estudantes em full-time não pagam propinas – Dinamarca, Estónia, Malta, Polónia, Eslovénia e Escócia. A Eslováquia combina os dois critérios enumerados, ou seja os estudantes em full-time não pagam propinas, desde que não excedam o tempo regular dos estudos; noutros dois países europeus o pagamento de propinas depende do ciclo de estudos que o estudante frequenta – na Grécia os estudantes do 1º ciclo não pagam propinas e no Chipre as propinas dos estudantes do 1º ciclo são integralmente suportadas pelo Estado, em ambos, apenas os estudantes do 2º ciclo têm que pagar propinas.

3) Os países em que as propinas são suportadas pela maioria dos estudantes, mas existem isenções ou são suportadas pelo Estado, para determinados grupos:

Podemos aqui incluir o conjunto de países em que os estudantes bolseiros estão isentos do pagamento de propinas – Bélgica (Comunidade Francesa), Espanha, França e Itália; o conjunto dos países em que o Estado suporta a propina dos estudantes de rendimentos mais baixos – Bósnia e Herzegovina, Montenegro e Sérvia; os países com isenção de propinas para grupos específicos de estudantes, como portadores de deficiência ou órfãos – Bulgária e Macedónia; os países em que nos estabelecimentos de ensino superior subvencionados pelo Estado os estudantes não pagam propinas, mas que ainda assim representam uma parcela minoritária dos estudantes do ensino superior – Letónia e Lituânia. Também no caso do Luxemburgo 85% dos estudantes do ensino superior pagam propinas, sem que, no entanto, na respetiva ficha nacional seja feita referência à forma de isenção dos restantes.

22 Em cinco regiões da Alemanha os estudantes do ensino superior só pagam propinas se ultrapassarem o

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4) Os países em que todos os estudantes do ensino superior pagam propinas:

São os casos de Portugal, Bélgica (Comunidade Alemã e Flamenga), Irlanda, Holanda, Reino Unido (Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte), Suíça, Islândia e Liechtenstein. Ainda assim, podemos encontrar situações diferenciadas, com alguns países a cobrar por exemplo a propina mínima aos estudantes bolseiros, caso da Comunidade Flamenga na Bélgica, ou a aplicar reduções de propina a estudantes economicamente carenciados, como no caso da Suíça.

No que respeita aos estudantes internacionais, a maioria dos países europeus cobra propinas mais elevadas, na generalidade dos casos definidas pelas próprias Instituições de Ensino Superior. Em alguns países os estudantes internacionais pagam o mesmo que os estudantes nacionais – Bélgica (Comunidade Alemã), República Checa, Alemanha, Grécia, França, Itália, Luxemburgo, Finlândia, Islândia, Liechtenstein, Montenegro e Noruega. Note-se que o conceito de estudante internacional se aplica em quase todos os países europeus aos estudantes oriundos de países fora da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu. À exceção da Suíça, em que o conceito de estudante nacional é mais restrito, considerando como estudante internacional todos os estudantes estrangeiros, incluindo os da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu.

Quanto às taxas administrativas, as situações são muito díspares entre os países. Muitos dos países europeus cobram taxas administrativas complementares às propinas, na forma de taxas de admissão, de matrícula ou de certificação, que na generalidade dos casos são pagas por todos os estudantes e constituem um valor muito inferior ao das propinas. De realçar o caso da França, onde é cobrado aos estudantes do ensino superior, entre os 20 e os 28 anos, uma contribuição para o sistema de segurança social.