Como apresentado na seção anterior, várias iniciativas de reorientação da formação dos profissionais em saúde divulgaram, ao longo das últimas décadas no Brasil, pressupostos pedagógicos considerados inovadores que teriam a potencialidade de promover a superação do modelo de formação escolar em saúde avaliado como tradicional.
No início dos anos 2000, esse movimento ganha força e se oficializa por meio da aprovação e implementação de projetos, programas e políticas voltados à reorientação da formação em saúde, sendo eles, o PROMED, a Politíca Nacional de Educação Permanente em Saúde e, nos últimos anos, as Diretrizes Curriculares Nacionais das graduações em saúde e o Pró-Saúde. Mediante sistematização dos dados acerca de tais iniciativas oficiais, é possível inferir que os princípios pedagógicos, aprender a aprender, professor faciliador, aprendizagem significativa, metodologia ativa de aprendizagem e aprendizagem por problemas, alicerces das propostas formativas, se articulam aos referenciais teórico-metodológicos das pedagogias de caráter não diretivo.
Snyders (1978) ao questionar a direção das pedagogias não diretivas afirma que a defesa da não diretividade pedagógica sustenta-se na ideia de que as experiências educativas realizadas na escola devem se basear em relações democráticas, nas quais o professor deve
facilitar e intensificar as relações interpessoais, para que o estudante possa por si mesmo formular suas dificuldades e buscar os meios para saná-las.
A não diretividade no ensino formal visa desenvolver e gerar relações interpessoais, sentimentos de autoconfiança e liberdade, sendo os conteúdos minimizados no processo pedagógico. O método da não diretividade pretende-se não estruturante do processo de aprendizagem, outrossim, constitui-se em um método informante da aprendizagem ao aluno. O professor não dirige o processo pedagógico de ensino-aprendizagem, limita-se a promover e facilitar situações em que o próprio aluno construa suas experiências formativas (MIZUKAMI, 1986).
Para o referencial da não diretividade pedagógica o estudante possui um potencial interno e espontâneo de auto-realização, podendo fazer suas próprias escolhas, desde que vivencie um clima de aceitação e livre de cobranças e ameaças, assim, a instituição escolar deve valorizar o desenvolvimento de relações interpessoais positivas (LIBÂNEO, 2002).
Cabe destacar que a não diretividade pedagógica está ligada teoricamente à Pedagogia Ativa, movimento que surgiu no final do século XIX, fundamentalmente na Europa e nos Estados Unidos da América como contraposição à pedagogia tradicional. A Pedagogia Ativa propôs uma mudança radical na educação ao colocar o estudante, suas necessidades e capacidades no centro do processo educativo; ao enfatizar a atividade como precedente ao conhecer, em que o ambiente e não o saber sistematizado torna-se central na aprendizagem (CAMBI, 1999).
A criança é o ponto de partida, o centro e o fim. Seu desenvolvimento e seu crescimento, o ideal. Só ele fornece a medida e o julgamento em educação. [...] O ideal não é acumulação de conhecimentos, mas o desenvolvimento de capacidades (DEWEY, 1978, p. 46).
[...] o indivíduo e o meio social são, portanto dois fatores harmônicos e ajustados. O meio social ou o meio escolar, se bem compreendidos, devem fornecer as condições pelas quais o indivíduo liberte e realize a sua própria personalidade. Não podemos, assim, considerá-los antagônicos (DEWEY, 1978, p. 27-28).
Não há, pois nenhum meio direto de controlar ou governar a educação que a geração infantil recebe, salvo o de preparar o ambiente em que a criança age, pensa e sente. Não se educa diretamente mas indiretamente através de um meio social (DEWEY, 1978, p. 24).
Dentre os principais pressupostos divulgados pela Pedagogia Ativa destacam-se: a) o puericentrismo, expresso pelo reconhecimento do papel, essencialmente ativo, da
criança/aluno como o centro do processo educativo; b) a valorização da experiência (de cunho sensorial) no âmbito da aprendizagem; c) a motivação/significação, segundo a qual toda aprendizagem deve estar ligada a determinada necessidade do estudante; d) o ambiente como elemento central e estimulador no processo de aprendizagem; e) o antiautoritarismo, tendo a liberdade e a democracia como base para as relações pedagógicas; f) o anti-intelectualismo que se evidenciou pela desvalorização de programas educacionais centrados pela socialização de saberes sistematizados (CAMBI, 1999, p. 526-527).
O desenvolvimento da Pedagogia Ativa deve-se a uma gama de teóricos que, com diferentes abordagens divulgaram os fundamentos basilares desse referencial pedagógico, difundindo seus pressupostos a diferentes realidades sociais e educacionais. O ativismo pedagógico inspirou vários movimentos educacionais que emergiram ao longo de todo o século XX, além de alguns de seus pressupostos terem sido assimilados por concepções educativas bem distintas, como a pedagogia católica e a marxista (CAMBI, 1999).
Manacorda (1992), na obra História da Educação: da antiguidade aos nossos dias, ao apresentar os problemas da instrução nas democracias burguesas afirma que John Dewey3 foi
o máximo teórico da escola ativa e progressista, fundamentada no learning by doing, no aprender fazendo.
Dewey compreendia a educação como um evento social, possuindo uma tríplice unidade: fim social, força social, interesse social, sendo a escola o instrumento fundamental e mais eficaz de progresso e de reforma social (MANACORDA, 1992).
De acordo com Manacorda, Dewey pode ser considerado um dos mais geniais observadores das relações entre educação e produção, entre educação e sociedade. Apesar disso, adverte que a conexão que propõe entre ensino e atividade, ensino e trabalho não pode ser identificada com a mesma unidade visada por Marx. Para Dewey “é a adequação dinâmica da escola à vida produtiva real, dinâmica no sentido de que escola pode ser chamada a colaborar para a mudança [...]” (MANCORDA, 1992, p. 320).
Na obra Marx e a Pedagogia Moderna, Manacorda (1991) afirma que a conexão proposta por Marx entre ensino e trabalho não pode ser confundida “[...] como aquela proposta pelas modernas escolas ativas do trabalho - do sloyd, do learning by doing - de
3
John Dewey (1859-1952) foi filósofo, psicólogo e pedagogo norte-americano, é reconhecido como um dos fundadores da escola filosófica do pragmatismo, divulgador principal do movimento da educação progressiva norte-americana durante a primeira metade do século XX. Suas preocupações ligaram-se à filosofia, educação, psicologia, sociologia e política, fato que possibilitou uma vasta produção teórica. Criou uma escola-laboratório de nível básico para ajudar a avaliar, modificar e desenvolver as suas ideias sobre educação (GADOTTI, 2004).
inspiração positivista, pragmática ou de qualquer outro tipo, de Salomon a Dewey [...]” (MANACORDA, 1991, p. 125).
Para Marx o trabalho não é o trabalho artesanal, aquele anti-industrial; nem é o trabalho das modernas escolas administrativas, aquele em que a ênfase era a aquisição de uma ou mais tarefas do processo produtivo; nem mesmo é o trabalho meramente didático, corretivo de uma cultura abstrata, mas é um trabalho produtivo, que exclui toda oposição entre cultura e profissão, que oportuniza a prática do manejo dos instrumentos essenciais de todos os ofícios, um trabalho que se fundamenta “[...] nos aspectos mais modernos, revolucionários, integrais do saber” (MANACORDA, 1991, p. 125). Enfim, um trabalho que garanta o acesso aos fundamentos da ciência.
Manacorda (1991; 1992) adverte que é necessário fazer diferenciações entre os princípios da Pedagogia Ativa e os princípios do pensamento pedagógico marxiano. A base, a origem das teses pedagógicas marxianas e da Pedagogia Ativa são comuns, é a realidade viabilizada pela Revolução Industrial, o que as diferencia é a forma de reagir a ela. Enquanto as pedagogias modernas, dentre elas a Pedagogia Ativa, se posicionavam frente às consequências da Revolução Industrial por meio da lamentação das mudanças exigidas pelo novo modelo de produção ou pela aceitação a-histórica que reforça a lógica da divisão do trabalho pela ideia dos diferentes talentos humanos, Marx constata que o novo modelo de produção é um processo real que requereria uma rigorosa crítica das relações sociais.
Marx propõe a união entre ensino e trabalho e entende que o processo educativo, rico em conteúdos teóricos, deve estar articulado como o processo da produção moderna, tendo a prática/atividade humana como central na produção do saber.
A prática que Marx tem em mente é algo que não coincide como objetivo individual em que se verifica a validade de um pensamento, que é a posição característica de um certo pragmatismo. Marx fala, no entanto, de modificar o mundo, isto é de uma atividade na qual a sociedade humana está fortemente empenhada e que representa de certa maneira, todo o processo de sua história: apropriar-se da natureza de modo universal, consciente e voluntáro, modificá-la e, ao modificar a natureza e seu próprio comportamenteo em relação a ela, modificar a si próprio, como homem (MANACORDA, 1991, p. 126).
Apesar de certos termos/conceitos serem tomados como análogos entre as ideias pedagógicas marxianas e as da pedagogia moderna, há uma diferenciação radical entre as duas perspectivas. A pedagogia moderna reforçou um movimento que indicou uma certa obliteração dos conteúdos e a ênfase sobre os métodos, considerados “ativos”, fundados sobre
o interesse e a escolha autônoma do aluno. Enquanto que para Marx não é alheia a superação da cisão entre espontaneidade do discente e organicidade do saber, entre interesse subjetivo e dados objetivos, entre motivação e racionalização (MANACORDA, 1991).
É possível indicar que o referencial pedagógico, bem como os pressupostos, divulgados no campo da formação em saúde inspiram-se nos ideais da Pedagogia Ativa e da não diretividade pedagógica. Tal dado será explorado quando do aprofundamento dos princípios pedagógicos divulgados pelas propostas oficiais, sejam em projetos, políticas ou programas voltados à reorientação da formação em saúde no Brasil.