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LINGUAGENS COMPARADAS

4.1 ESTUDO DE LINGUAGEM

4.1.4 A negra na capa

É preciso admitir que os meios de comunicação referendam e reproduzem concepções do eu e do outro, do corpo e da alma, dos pertencimentos e das exclusões. Apesar dos avanços das discussões feministas e raciais, a mídia do século 21 ainda é pautada na exaltação de um modelo forjado a partir do sujeito dominante, o homem-branco-ocidental. Essa tipificação redunda numa dupla exclusão: de gênero e de raça.

Esta prática excludente nos permite situar a mulher negra na cena midiática como a marginal por excelência. Sua presença surge branqueada por uma produção fotográfica ou relegada às páginas internas das mídias impressas. As capas são o espaço privilegiado reservado às mulheres brancas. Mas, mesmo estas últimas, têm sua imagem editada, maquiada e simulada para servir ao desejo masculino através da exposição do corpo, dos gestos e das posturas. Para além desta distorção, a produção da “garota da capa” ajusta a imagem da mulher à moldura social das elites, apagando as pistas de identidade que não sejam interessantes comercialmente.

A imprensa feminina costuma se articular em torno de papéis e só de alguns papéis. [...] tal discurso não poderia versar sobre mulheres determinadas, individualizadas, com nome, profissão, personalidade própria. Os papéis apresentados pertencem à mulher/condição feminina, à mulher genérica, sem tempo, espaço nem classe. É apenas a mulher moderna, feliz em cumprir seus papéis predeterminados com a ajuda dos bens que a civilização

proporciona. A mulher é pasteurizada, ‘universalizada, em nome do consumo. (BUITONI, 2009, p.209)

A imagem predominante de um sujeito vendável, audível, representável na arte e na mídia promove o silenciamento da voz e o apagamento da imagem da mulher-negra-marginal. Na relação gênero-raça, é preciso entender que “nossas diferenças raciais não nos constituem inteiramente, somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diferentes tipos de diferenças – de gênero, sexualidade, classe” (HALL, 2003, p.346). Dito isso, defende-se que a secundarização da mulher na sociedade é agravada midiaticamente a partir do fator racial.

Pautando-se neste alerta crítico, um olhar mais afiado sobre as capas das edições de junho de 2012 a janeiro 2013 (Anexo A) revela que, entre as 24 edições, apenas a número 323 traz uma mulher negra na primeira página. A estratégia de venda marcada por um branqueamento explícito das capas entra em conflito com as centenas de mulheres negras que protagonizaram matérias das páginas internas da Sou Mais Eu. Esta afirmação se alinha com a constatação de Buitoni, que diz:

A mulher brasileira mesmo não frequenta as páginas da imprensa a ela dedicada. [...] Hoje, assistimos a descaracterização total da mulher brasileira. A mulher apresentada como modelo é a mulher multinacional, globalizada. As capas de nossas revistas, mesmo trazendo manequins brasileiros, parecem capas similares norte-americanas ou europeias. (BUITONI, 2009, p.210)

A reprodução de uma imagem colonizada pode ser identificada na revista Sou Mais Eu, que confere à mulher negra um status menor ao relegá-la a um confinamento midiático, nas páginas internas da publicação. Esta prática editorial, que secundariza a figura da mulher negra, reproduz uma forma de representação que é histórica e literária

O fato das mulheres negras dificilmente figurarem na capa da Sou Mais Eu é parte de um complexo constructo sócio-histórico-literário que ainda está por ser rompido, afinal, como destaca Hall, “a raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica” (2005, p.63). Esta categoria discursiva encontra campo fértil na rede de discursos midiáticos.

Assim como a literatura, a imprensa feminina não é um à parte da sociedade. Seu microambiente revela tensões macrossociais e macro-históricas que requerem desvendamento. Parece existir um acordo tácito que promove a omissão e a exclusão em diferentes instâncias. Sem a pretensão de localizar causa e efeito, é fato que a

representação da mulher negra na mídia está na mesma frequência de realidade inclusiva nos discursos e excludente nas práticas.

O papel dos meios de comunicação e das tecnologias de informação permitiu ampliar o debate sobre os problemas enfrentados por diferentes setores da sociedade. Mas, esses mesmos meios ainda apresentam dificuldades em relação ao acesso e aos benefícios para os grupos excluídos e sem recursos para o seu consumo. (AMNB, 2013, p.16)

Neste cenário a mulher negra seria o que Spivak (2010) denomina subalterna da subalterna. Isto é, mesmo que o discurso pretensamente ético e oficial defenda a igualdade de posições, a discriminação em relação à mulher negra e pobre se dá de forma velada. Contudo, a cada edição que chega às bancas com mulheres brancas, magras e sorridentes, as escolhas ideológicas denunciam uma prática avessa aos discursos.

A edição 311 da Sou Mais Eu é exemplar na evidenciação da linha editorial do veículo. Na capa está Priscila Silveira, 21 anos, branca, fotógrafa, de Florianópolis, Santa Catarina. Isabel Ferreira, 41 anos, negra, caseira de sítio, moradora de São Sebastião, Distrito Federal está na página 19. A história de Priscila ocupa a capa e mais duas páginas internas. Na foto, a jovem está bem maquiada, sorridente com pose de garota da capa. A matéria de Isabel ocupa uma página. Na imagem que ilustra a reportagem ela está de chinelos de dedo. Uma rua de terra é o cenário onde Izabel aparece de cócoras abraçada ao seu cachorro, que também é parte da história que ela relata.

Figura 3 – Recorte da matéria de Isabel Ferreira

Fonte: Sou Mais Eu, Edição 311, Novembro de 2012

Na comparação entre de Izabel Ferreira e Priscila Silveira chamam atenção fatores que podem ser analisados de forma associada: cor da pele, região geográfica

de origem e idade. A mais jovem e branca, moradora de um Estado do sul do Brasil, que, como enfatizado anteriormente, é também privilegiada em termos geográficos, ocupa a vitrine, a capa. A beleza europeizada de Priscila é um artifício de venda da revista. A imagem idealizada e coordenada a uma hexis corporal de fêmea servil contribui para o consumo da revista nos mesmos moldes das demais publicações femininas que são pautadas na ideia de perfeição, juventude e magreza.

Figura 4 - Capa com Priscila Silveira

Fonte: Sou Mais Eu, Edição 311, novembro de 2012

A presença de Isabel nas páginas internas revela uma estratégia de opressão similar ao que acontece na sociedade em que o negro, o idoso e o pobre são excluídos em diferentes âmbitos: política, economia, cultura, religião, entre outros. No caso de Isabel, ela comporta todas essas características, as quais não recebem maquiagem ou tratamento. Sua condição marginal está in natura. O chão de terra, o cachorro vira- lata, a postura corporal de cócoras e o sorriso desdentado reproduzem seu espaço social. A justaposição dessas duas mulheres impõe outra questão: qual representação seria ideal? Uma imagem identitária, sem maquiagem ou produção? Optamos por concluir que nem a encenação extrema nem a realidade crua suprem as necessidades de representação dos periféricos. Certamente, a imagem ideal é aquela que seja mais digna, que não resulte da mentira da produção nem da crueldade da exclusão. Da mesma maneira que as manobras linguísticas extremas resultam num apagamento das identidades, as manipulações radicais de imagem recaem no mesmo erro. Mas o

que seria uma imagem digna? Não existem fórmulas perfeitas. Contudo, a mais próxima do ideal, deveria ser aquela que não privilegiasse uns e depreciasse outros como acontece no caso de Isabel e Priscila. Seria aquela em que todos recebessem o mesmo tratamento, que não houvesse um esvaziamento da identidade de classe e que, ao mesmo tempo, fosse franca com o leitor, sem diminuir a negra em relação à branca.

Vamos a outro exemplo que ilustra bem a questão e que, apesar de fugir ao recorte inicial de pesquisa, é pertinente devido à grande presença de negras nas páginas internas. A publicação de 21 de março de 2013 traz na capa Débora Nunes, branca, 29 anos, professora e técnica de enfermagem, Nova Odessa, São Paulo. Nas páginas 12 e 13, a loira de 1,82m de altura, bem maquiada, veste peças em tafetá e joias douradas. Na reportagem, Débora fala sobre a dieta que a fez perder 65 quilos. Nas páginas 32 e 33 está Tania Mara, negra, 52 anos, pedagoga, de Goiania, Goiás. Na reportagem Tania conta a história de como se casou com um assassino que conheceu na prisão. Na comparação entre as duas entrevistadas, percebe-se a branca relatando sua história feliz de emagrecimento e conquista da beleza enquanto a negra narra um romance marginal.

Fica claro que, a exemplo do que diz Dulcília Buitoni, "num país de mestiços, a negra raramente surge em revistas femininas, a não ser como manequim exótico" (BUITONI, 2009, p.209). A esta fala poderíamos adicionar, no caso dos exemplos abordados, que a mulher negra se torna interessante quando portadora de uma história de violência, pobreza ou dor.

Uma das exceções em termos de capa é a edição 323, que traz a carioca Marieli Nepomuceno. Além dela, as páginas 8, 20 e 26 são protagonizadas, respectivamente, Gisella Venâncio, Josiane da Rocha Lima e Márcia Neres, todas mulheres negras.

Figura 5 - Capa com Marieli Nepomuceno

Fonte: Sou Mais Eu, edição 323, 21 de março de 2013

A predileção pelos tons de pele mais claros, pelas mais jovens e que conquistaram a magreza, não é totalmente defensável, visto que inúmeras mulheres negras, com mais idade e fora do padrão-magro, protagonizam reportagens da revista. Se o processo de planejamento e edição de um produto midiático depende de escolhas editoriais, que são controladas desde a reunião de pauta até a edição do texto e das imagens, seria adequado afirmar que os critérios seletivos pendem para as imagens estigmatizadas do feminino. Com base na argumentação e exposição apresentada aqui, fica explícito que esta triagem atende a valores racialmente excludentes. O processo editorial enquadra as mulheres retratadas na moldura do desejo do sujeito soberano: o homem-branco-ocidental. Como apontam Carrança e Borges (2004), o jornalismo é um ‘espelho infiel’ do negro, e certamente, da mulher negra brasileira.

A representação da mulher na imprensa brasileira foi objeto da investigação de Dulcília Buitoni. A pesquisadora analisou os principais veículos do segmento. Além de estabelecer uma recuperação e documentação históricas, Buitoni realizou uma análise semântica sobre os textos e imagens. A partir do tratamento jornalístico conferido às mulheres em diferentes décadas do século 20, a pesquisadora estabeleceu categorias de estudo. Duas dessas categorias postuladas são “a liberada e a marginal”. Para analisar a marginal, Buitoni traz o caso de uma mulher do povo, que teve sua história publicada na imprensa feminina alternativa:

Nos anos 70, Girse não seria objeto de uma reportagem, empregada doméstica, moradora de um barraco na periferia de São Paulo, suas ações não mereceriam destaque jornalístico. Mas em 1977 ela pode ter uma página inteira de um tablóide alternativo. Talvez seja pouco, talvez ainda seja uma iniciativa de dominadores para dominados, afinal, não podemos negar que as redatoras pertencem à elite intelectual, em sua maioria. De qualquer maneira, a “ascensão” de Girse a personagem jornalística representa um avanço em relação aos caminhos até então seguidos pela imprensa feminina não só brasileira como estrangeira. Ainda não é um jornalismo praticado pelo povo, pela própria comunidade. Ainda é algo de cima para baixo, uma espécie de concessão, ou melhor, reconhecimento de uma realidade. Se houver resquícios de paternalismo, pelo menos não se resume na atitude assistencialista de outras reportagens que mostram vidas miseráveis. (BUITONI, 2009, p.127)

Buitoni infere que as 'vidas miseráveis' são desvalorizadas quando se resumem às matérias assistencialistas. Contudo, o retrato da mulher alinhado à figura de mulheres estrangeiras configura outra modalidade de desqualificação, que é tanto social quanto racial. As manobras para o apagamento das pistas de sua identidade real são claras. Na Sou Mais Eu a imagem da mulher pobre ganha adereços e artifícios cosméticos que retocam as marcas que denunciariam sua identidade de classe. Ocupando a capa, espaço nobre, elas recebem uma produção similar às revistas de moda (maquiagem, cabelo e figurino). A direção de fotografia também é conduzida no sentido de reproduzir o discurso visual próprio desse segmento. Um observador menos atento confundiria facilmente a Sou Mais Eu com outras revistas que trazem modelos ou atrizes em destaque. Este ajuste de imagem reitera também outro fato apontado por Buitoni: a presença de sujeitos do povo é marcada por um olhar de cima para baixo.

Na relação de derrotas, de ‘personagens menores’, a mulher acumula perdas ainda mais graves, enredadas por uma representação idealizada, marcada por um feminino servil, prostrado ao deleite masculino ou às estratégias de consumo. A mulher de papel não representa a mulher real mas a coloca como

Segundo sexo. Segunda imprensa. Secundário, secundária. Sempre um segundo lugar: subalterno, dependente, complementar. Ou supérfluo. Admitamos que assim seja. No entanto, das folhas artesanais ao produto industrial, a imprensa feminina tem potencialidade de atingir o gênero humano. (BUITONI, 2009, p.21)

A reflexão de Buitoni aponta para a hipótese de que a mesma imprensa, que confinou o feminino à moldura arquetípica, midiática e mitológica, pode ser antídoto para o veneno que ela mesma formulou. O modelo de imprensa desinteressada pela

mulher marginal é predominante, mas não é o único possível. Apesar disso, é necessário um afastamento, um olhar desprovido de um otimismo exacerbado. A iniciativa da Sou Mais Eu exige uma postura crítica porque as análises realizadas até o momento explicitam uma ênfase para as brancas em detrimento das negras, pelo menos no que diz respeito às capas.

Ademais, de acordo com o debate promovido aqui, o tratamento das imagens (ou a ausência dele) também evidencia uma disparidade. A conclusão de que a imagem da negra é obliterada em prol da reiteração de discursos (textuais e imagéticos) alinhados a um etnocentrismo hegemônico na mídia nos reconduz à Spivak quando ela questiona: “o que a elite deve fazer para estar atenta à construção contínua do subalterno? A questão da “mulher” parece ser a mais problemática nesse contexto. Evidentemente, se você é pobre, negra e mulher, está envolvida de três maneiras” (SPIVAK, 2010, p.85).