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NARRATIVAS PESSOAIS: DE ONDE VIERAM E PARA ONDE VÃO?

DA ESCRITA ÍNTIMA À AUTOPUBLICAÇÃO VIRTUAL

3.1 NARRATIVAS PESSOAIS: DE ONDE VIERAM E PARA ONDE VÃO?

No rastro histórico das práticas da escrita de si, Foucault (2006) destaca os hypomnemata, arquivo pessoal onde o indivíduo documentava leituras, pensamentos e frases de outrem. Contudo, o autor alerta que tais cadernos permitiam a constituição de si a partir da recolha do discurso do outro e não da narrativa de si. Desta última, pistas históricas podem ser encontradas “pelo lado da correspondência com outrem e da troca do serviço da alma”. (FOUCAULT, 2009, p.153). Uma carta enviada para aconselhar, insultar ou consolar o destinatário constitui uma espécie de treino de si que é realizado pelo emissor. A palavra endereçada ao outro serve à subjetividade do escritor. Neste aspecto, Foucault afirma: “a carta que, na sua qualidade de exercício, labora no sentido da subjectivação do discurso verdadeiro, da sua assimilação e da sua elaboração como ‘bem próprio’, constitui uma objectivação da alma” (FOUCAULT, 2009, p.151).

Como confissão, memória ou exame, as autonarrativas entram na história da subjetividade moderna como busca, ou obrigação, de enunciar uma verdade sobre si. Lejeune (2008) aborda historicamente dois grandes movimentos de interiorização. O primeiro: a autovigilância, preconizada no século 4 por Santo Antonio, considerado pai da prática do diário íntimo. “No início os diários foram coletivos e públicos, antes de entrarem na esfera privada, depois na individual, e, enfim, na mais secreta intimidade” (LEJEUNE, 2008, p.261). O diário se pôs a serviço da pessoa. O segundo movimento, registrado no século 18, trata do aprimoramento de si através do relato a um confidente. Neste período era comum que os diaristas lessem seus diários para outras pessoas ou confidenciassem suas memórias através de cartas.

Segundo Gay, seria incorreto falar em escrita íntima antes do século 18. "Pense, por exemplo, como a idéia de privacidade era até fisicamente impensável em famílias cujos membros eram obrigados a dormir juntos num mesmo quarto, algo comum no século XVIII" (GAY,1998, p. 23). Nesse sentido, Araújo (2008) reforça ainda que:

Não havia lugar para o homem pensar-se a si mesmo como sujeito do saber até fins do século XVIII. O século XVII estava mergulhado na ciência geral da ordem, preocupado em classificar e organizar a multiplicidade dos seres em quadros unificadores (ARAÚJO, 2008, p.107).

É interessante notar que a transformação dos costumes e até mesmo da arquitetura e mobiliário das casas foi determinante para que a escrita íntima conquistasse adeptos. "Detalhes como quartos privativos ou escrivaninhas com chaves [...] serviram para que a classe média respondesse à nova intimidade com confissões, viciando-se em tudo o que a remetesse à busca do 'eu' no cotidiano e nas artes" (GAY,1998, p.24).

Ao investigar documentos do século 19 na Biblioteca Nacional da França, Lejeune identificou textos biográficos e autobiográficos de religiosos, médicos, engenheiros, artistas, homens letrados e comerciantes. Lejeune afirma que “essas pessoas se tornam proprietárias de suas vidas, podem organizá-las, apresentá-las como carreira ou destino e fazer delas um espaço de transmissão de valores sociais” (2008, p.132).

Virgínia Woolf esclarece que:

[...] perto do século XIX, a consciência de si mesmo se desenvolvera a ponto de que era um hábito dos homens de letras descreverem o que lhes passava pela mente em confissões e autobiografias. Também suas vidas foram escritas, e suas cartas foram publicadas após a morte deles. (WOOLF, 1985, p.67)

Percebe-se que o universo da escrita se restringe aos 'homens das letras'. A autonarrativa, fechada nos círculos intelectuais e nas classes dominantes, relegou a vida dos operários, artesãos e camponeses à obscuridade. Vivências individuais e de classe, não mereciam ser escritas e impressas. Mesmo a voz operária, responsável pelos poucos registros da época, não assume tons individuais. As autobiografias de militantes que viveram entre 1848 e 1871 eram voltadas ao despertar de uma consciência de classe e difusão de valores revolucionários. Esses textos eram marcados por uma contradição infeliz porque não chegam à classe operária sem a mediação da classe dominante. “Não há, portanto, autobiografia ‘popular’ no século 19, porque não existia para ela nem público, nem circuito de difusão” (LEJEUNE, 2008, p.134). No século 19, acreditava-se que memórias e histórias pessoais não seriam capazes de gerar interesse de leitura nem transmitir valor.

O discurso sobre elas permanecerá apenas na memória de seu grupo (seu vilarejo, seus pares) e raramente irá além desse círculo. Enclausuradas em seu meio, suas vidas não tem o tipo de individualidade próprio para suscitar interesse, em geral vinculado à mobilidade e ao êxito social. (LEJEUNE, 2008, p.132-133)

Escrever e publicar a narrativa da própria vida nas mídias impressas foi por muito tempo, e ainda continua sendo, em grande medida, um privilégio reservado às elites.

Os relatos autobiográficos [...] constituem o espaço que se elabora, se reproduz e se transforma numa identidade coletiva, as formas de vida próprias às classes dominantes. Essa identidade se impõe a todos os que pertencem ou se integram a essas classes e relega as outras a uma espécie de insignificância. (LEJEUNE, 2008, p.131)

Mesmo no século 19, época em que a educação começa a chegar às classes populares, e ainda hoje, em pleno século 21, o espaço de publicação impressa da autobiografia se fecha para o analfabeto ou pouco escolarizado. Importante é compreender que esta restrição não se refere meramente à escrita como conhecimento ‘técnico’, mas diz respeito ao seu caráter histórico e político, capaz de promover um silenciamento estratégico, cômodo e interessante às classes dominantes.

A questão das autobiografias populares esbarra nos domínios da escrita. Para Lejeune o entrave da alfabetização e da aculturação esconde outro problema: o do circuito de comunicação que não veicula a voz do povo:

Por que esse silêncio? Por que não sabiam ler nem escrever e transmitiam sua memória oralmente? Seria ingênuo pensar isso. A instrução se difundiu em larga escala no século 19. Mas quem sabia ler e escrever usava sua instrução para outros fins, sob outras formas: por que, ou para quem, teriam eles escrito seus relatos de vida? O problema da alfabetização e da aculturação esconde um outro problema: o do circuito de comunicação impresso e da função dos textos e dos discursos que passam por este canal. Esse circuito está nas mãos das classes dominantes e serve para promover seus valores e ideologia. (LEJEUNE, 2008, p.131)

A partir desta perspectiva, é possível compreender que o tratamento conferido pela imprensa às classes populares é permeado pelas mesmas práticas e discursos. O pobre e sua vivência são vistos e tratados de cima para baixo. O homem do povo “é imaginado no discurso jornalístico e romanesco das classes dominantes e nutre tanto seus sonhos (principalmente os camponeses), quanto seus pesadelos [...]”. (LEJEUNE, 2008, p.133). Constata-se, portanto, que o vivido por camponeses, operários e funcionários têm pouca ou nenhuma possibilidade de ser escrito e publicado apartado dos interesses das classes dominantes. Assim, no campo literário e na pesquisa científica, não houve, por longo tempo, interesse de audiência e de mediação em relação aos relatos de vida dos homens do povo.

A escrita como elemento de articulação do processo de inclusão-exclusão, de visibilidade e apagamento, norteou a investigação de Foucault, que estudou pequenos textos do século 16 e 17 tratando de:

Vidas que são como se não tivessem existido, vidas que não sobrevivem senão do choque com um poder que mais não quis que aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las, vidas que a nós não tornaram a não ser pelo efeito de múltiplos acasos, tais são as infâmias que eu quis juntar aqui alguns restos. (FOUCAULT, 2009, p.102)

Os textos estudados por Foucault demonstram que, mesmo que de alguma forma o homem popular tenha sido escrito, esta escrita aparece permeada pelo interesse do poder intervir sobre ela.

Momento importante, aquele em que uma sociedade atribuiu palavras, maneirismos e grandes frases, rituais de linguagem, à massa anônima do povo, para que possa falar de si mesmo – falar publicamente e sob a tripla condição de esse discurso ser dirigido e posto a circular no interior de um dispositivo de poder bem definido, de fazer aparecer o fundo até então quase imperceptível das existências e de, a partir dessa guerra ínfima das paixões e dos interesses, dar ao poder a possibilidade de uma intervenção soberana. (FOUCAULT, 2009, p.123)

O interesse do poder sobre os textos das classes populares aparece de outra forma nos estudos de Lejeune. Ele afirma que o circuito oficial de publicações na França se apropriou da fala popular ocasionando o sucesso de depoimentos transcritos ou reescritos de camponeses e artesãos. O autor afirma ainda que essa apropriação contribuiu para o fracasso de autobiografias e depoimentos de autodidatas escritos desde o início de 1900.

3.2 DIÁRIOS DO SÉCULO 20

As autobiografias permaneceram apartadas dos grandes textos literários até o alvorecer do século 20. O ‘século das memórias’ se abre ao universo narrativo centrado na primeira pessoa. Apesar disso, ao colocar a escrita a serviço dos pequenos dias do ser humano, os gêneros confessionais foram relegados à sombra como literatura íntima menor, como é possível constatar na fala de Paul de Man:

Tornar a autobiografia um gênero literário é elevá-la acima do status literário de mera reportagem, crônica ou memórias e conceder-lhe um lugar, embora modesto, entre as hierarquias canônicas dos maiores gêneros literários. Isso não se dá sem algum embaraço e, uma vez comparada à tragédia, ou épica