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DA ESCRITA ÍNTIMA À AUTOPUBLICAÇÃO VIRTUAL

3.3 À SOMBRA DO HOMEM

3.3.4 Mulheres Consoantes

Quase na mesma época em que a feminista Beauvoir formula textos polidos por uma educação fina e burguesa, sua contemporânea, Carolina Maria de Jesus, escreve também sobre a condição feminina marginal. Enquanto a francesa fala de cima, a brasileira fala de um lugar social desvalorizado e de um espaço físico degradado, a favela do Canindé.

A voz de Carolina equaliza o tom da marginalidade feminina com o que ela tem de mais grave e real. A diferença de lugar de enunciação entre Carolina e Beauvoir não as distancia em termos de crítica ao masculino dominante. Carolina também percebe uma História que valoriza os ‘grandes homens’. “Quando eu era menina [...] só lia os nomes masculinos como defensor da patria” (JESUS, 2010, p. 55). As limitações de escrita, resultantes de uma condição social menor(izada), não afetaram ou impediram que o pensamento da negra favelada e da filósofa branca se encontrassem para tecer a crítica à sociedade modelar que subtraiu a mulher da História.

No Quarto de Despejo, Carolina de Jesus, ao se comparar com mulheres casadas da favela, descortina questões sobre as quais Beauvoir teoriza. Carolina reconhece o papel de destaque dos homens nos livros e, apesar de na infância ter sonhado mudar de sexo, revela-se consciente da condição menorizada da mulher. Carolina, que é chefe de família e cria seus filhos sem pai, sente orgulho por não viver sob o domínio masculino:

Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas têm marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade. Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E elas, têm que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. À noite quando elas pedem socorro eu tranqüilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tábuas do barracão eu e meus filhos dormimos sossegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam a vida de escravas indianas. Não casei e não estou descontente. Os que preferiu me eram soezes e as condições que me impunham eram horriveis (JESUS, 2010, p.16-17).

O relato autêntico (e polêmico para a época) traz para a realidade da mulher pobre brasileira nuances do discurso fundador de Beauvoir. Ambas tecem a crítica do sujeito dominante masculino, que secundarizou, e ainda secundariza, a mulher em diferentes aspectos sociais. Assim, apesar deste estudo falar de outro tempo e outro lugar, o masculino ainda é central. Política, trabalho, moda e mídia são ainda focos de domínio do masculino.

[...] não se trata de uma problemática simbólica – no sentido da teoria freudiana, que interpretava certos símbolos como sendo fálicos e outros maternos – e sim de algo que está no próprio coração da produção da sociedade e da produção material. Eu qualifico o devir feminino por se tratar de uma economia do desejo que tende a colocar em questão um certo tipo de finalidade da produção das relações sociais, um certo tipo de demarcação, que faz como que se possa falar de um mundo dominado pela subjetividade masculina, no qual as relações são marcadas pela proibição desse devir. Em outras palavras, não há simetria entre uma sociedade masculina, masculinizada, e um devir feminino. (GUATTARI; HOLNIK, 1996, p.73).

Guattari e Holnik reiteraram o mesmo tipo de pensamento de Beauvoir. Ninguém nasce mulher, torna-se mulher, sendo que este tornar-se, este devir, ocorre sob a chancela de uma sociedade masculinizada e não masculina. Hoje, é possível afirmar com certa folga que o devir feminino encontra novas barreiras. Os discursos sectários ganharam arestas atenuantes. Nos interstícios, nas subintenções, nas exclusões e menorizações de uma sociedade androcêntrica sobrevivem determinismos sexistas. Neste sentido, Bourdieu, ao tematizar a constância da eternização da arbitrária dominação masculina, afirma que:

[...] a questão da permanência ou da mudança [...] da ordem sexual é, de fato, a importação e a imposição desta alternativa ingênua e ingenuamente normativa que levam a perceber, contra toda evidência, a constância relativa das estruturas sexuais e dos esquemas através dos quais elas são percebidas como uma maneira condenável e imediatamente condenada, falsa e imediatamente refutada [...] de negar e de condenar as mudanças desta situação. (BOURDIEU, 2010, p.5)

Ainda sobre a relação de permanência ou mudança do domínio masculino, Bourdieu complementa que:

A maior mudança está, sem dúvida, no fato de que a dominação masculina não se impõe mais com a evidência de algo que é indiscutível. Em razão, sobretudo, do enorme trabalho crítico do movimento feminista que, pelo menos em determinadas áreas do espaço social. Conseguiu romper o círculo do esforço generalizado, esta evidência passou a ser vista, em muitas ocasiões, como algo que é preciso defender ou justificar, ou algo de que é preciso se defender ou justificar. (BOURDIEU, 2010, p.106)

Em Guattari e Holnik, a mudança de perspectiva dura entre feminino e masculino pode ser revolucionada a partir de uma compreensão de posições em condição de devir, de tornar-se. Esta ideia não inverte a relação de poder mas rompe com antigas estruturas e agrega possibilidades intercambiantes de gênero, raça e classe:

A ideia de devir está ligada à possibilidade ou não de um processo se singularizar. Singularidades femininas, poéticas, homossexuais, negras, etc., podem entrar em ruptura com as estratificações dominantes. Para mim, esta é a mola-mestra da problemática das minorias: é uma problemática da multiplicidade e da pluralidade, e não uma questão da identidade cultural, de retorno ao idêntico, de retorno ao arcaico. (GUATTARI; HOLNIK, 1996, p.74).

A aposta num estado de transição conduz a reflexão desta pesquisa para o campo aberto do ‘tornar-se mulher’, que na contemporaneidade aponta para uma constituição contínua. É perceptível aqui que identidades fluidas, fora do eixo feminino-masculino, são as mais aceitáveis, visto que se constituem, sem se fechar, na noção de processo, passagem, movimento. Delimitar, encerrar, uma noção de mulher seria aceitar estados estáticos que 'per-fazem' uma mulher menorizada, subalternizada.