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DA ESCRITA ÍNTIMA À AUTOPUBLICAÇÃO VIRTUAL

3.3 À SOMBRA DO HOMEM

3.3.3 Três ordens do feminino

Gilles Lipovetsky analisa a presença da mulher na história a partir de rupturas contempladas (ou categorizadas) em três ordens do feminino. A primeira mulher (reclusa, domesticada, perigosa, propriedade do homem) seria, para Lipovetsky (2000), a imagem depreciada, e a mais extensa, da história da humanidade. A partir do século 16, surge a segunda mulher, enaltecida pela beleza. Fragilizada e idealizada pelo amor romântico, ela continuaria subordinada, ocupando papéis autorizados pela classe masculina dominante.

10 O episódio conhecido como Bra-Burning, ou A Queima dos Sutiãs, reuniu cerca de 400 ativistas do WLM (Women’s Liberation Movement) contra a realização do concurso de Miss America em 7 de setembro de 1968, em Atlantic City, no Atlantic City Convention Hall, logo após a Convenção Nacional dos Democratas. A ‘queima’, efetivamente, não aconteceu.

O movimento feminista propiciou, segundo Lipovetsky (2000), a emergência da 'mulher indefinida', a Terceira Mulher. Com isso, o filósofo francês prenuncia o fim possível das predefinições com o surgimento da ‘sujeita de si’, contudo,

[...] o modelo da terceira mulher não coincide de modo algum, é preciso sublinhar, com o desaparecimento das desigualdades entre os sexos, especialmente em matéria de orientação escolar, de relação com a vida familiar, de emprego, de remuneração. (LIPOVETSKY, 2000, p. 238)

A ‘terceira mulher’ encontra eco nas palavras de Spivak quando, ao falar da crítica feminista, a autora infere que “uma imagem da mulher está em questão – uma imagem cuja predicação mínima como algo indeterminado já está disponível à tradição falocêntrica” (2010, p.10). Esta 'imagem disponível' possibilita uma noção do masculino sob rasura, não mais como definidor magno, mas agora carregado de subterfúgios e artifícios discursivos. Apesar de muitas vezes se mostrar escancarado, sem meias palavras. Esta seria uma explicação possível para o fato de que, no mercado de trabalho e na política, “a presença marginal das mulheres no topo da pirâmide é um fenômeno universal, fortemente marcado, tão manifesto no setor público quanto no setor privado: quanto mais se sobe na escala hierárquica, menos há mulheres” (LIPOVETSKY, 2000, p.265).

Diante do conhecimento desta polarização, vale aqui arriscar um caminho dialético entre Beauvoir, Carolina, Bourdieu e Lipovetsky. Mesmo diante das conquistas públicas e privadas, da dominação masculina ser discutível, não se pode abandonar totalmente a tese do segundo sexo de Beauvoir. Negar a mulher indefinida redundaria numa escolha falaciosa. Assim, a proposta viável é pensar que, num país de dimensões continentais, marcado pela desigualdade social, subexistem as três ordens do feminino propostas por Lipovetsky.

Em alguma medida, resiste um segundo sexo em rasura e em confronto com as reorganizações discursivas da ‘dominação masculina’ apresentada por Bourdieu. Dito de outro modo, muitas mulheres contemporâneas, chefes de família, líderes políticas e profissionais de carreira desfrutam do status de pós-mulher indefinida de Lipovetsky. Outras mulheres ainda convivem e são modeladas pelo arcaico, subordinadas à condição de segundo sexo, seja pela subjugação ‘meramente’ simbólica seja pela imposição da lei do mais forte (a cada duas horas uma mulher é

assassinada no Brasil11). A moldura masculina que traça o desenho ideal de

comportamento é a mesma que define o lugar da mulher na sociedade e na mídia. Uma vez que os estereótipos sexuais resistem mais na base do que no topo, as tarefas de execução permanecem mais marcadas pelos clichês sexuais do que as funções superiores. Afinal, fica-se menos surpreso de ver uma mulher ocupando a função de chefe de Estado do que a de pedreira ou encanadora; uma mulher dirigente de empresa espanta menos do que uma mulher pintora de construção (LIPOVETSKY, 2000, p.275).

Exemplo desta situação, o relato de Márcia Cristina da Silva, mestre de obras carioca, que teve sua história de vida publicada pela Sou Mais Eu, demonstra que, mesmo nas profissões de base, a figura feminina sofre as pressões impostas pelo masculino modelar.

Numa obra, não há diferenças entre os sexos. Isso é o que eu preciso provar todos os dias na minha profissão. Trabalho há cinco anos na construção civil. Comecei como apontadora, controlando a produção e o serviço dos peões [...] Adoro o ramo da construção civil desde os meus 8 anos, quando meu pai, que era pedreiro, começou a me levar para o trabalho dele. [...] Meu chefe pediu para eu segurar o choro porque obra era lugar de homem. Mostrar fraqueza é inadmissível. Fiquei com raiva ao ouvir essas palavras, mas me deram um objetivo: provar que mulheres também podem mandar numa obra. (SOU MAIS EU, Ed. 222, 2011, p.14)

O estudo de Lipovetsky data a primeira década dos anos 2000. A distância no tempo não torna sua fala menos atual, afinal, a ruptura parcial da centralidade masculina em alguns setores sociais, inclusive na política, propiciou que, em 1o de

maio de 2013, o discurso da presidente Dilma Roussef, veiculado em rede nacional de rádio e televisão, fosse iniciado com a saudação: "trabalhadoras e trabalhadores brasileiros". A cena protagonizada por uma mulher seria impossível há algumas poucas décadas. O discurso da chefe de Estado, certamente incômodo, estabeleceu uma inversão e uma inclusão. Sobre a inversão: o substantivo feminino precede o masculino. Sobre a inclusão: o discurso se dirige distintivamente às trabalhadoras e não somente aos trabalhadores como uma massa indiferenciada e masculina.

11 A cada duas horas, uma mulher é assassinada no País: Dados constam do Mapa da Violência de 2012 e mostram que, em uma lista de 87 países, o Brasil é o sétimo que mais mata. [...] Na maioria dos casos, o assassino é o namorado, marido ou ex-companheiro, que mata dentro de casa, após já ter cometido pelo menos um ato de agressão. [...] As estatísticas mostram que, seja qual for a idade da mulher, quem a agride mora em sua casa ou faz parte de sua família. Até os 9 anos, ela é vítima dos pais de sangue ou criação. Quando se torna adulta, corre o risco de ser espancada pelo marido ou ex. E, já idosa, acaba maltratada pelos próprios filhos. (FERRAZ, 2012)

O enunciado e sua enunciadora indiciam avanços que não podem ser negados, principalmente no topo da pirâmide. “Quanto mais aumenta a parcela de manipulação dos símbolos e do imaterial, mais os estereótipos enfraquecem, quanto mais se afirma a materialidade dos processos de produção, mais os mecanismos sexistas dominam” (LIPOVETSKY, 2000, p.275).

Assim, a condição subalterna da mulher é mais presente e forte para além do topo das empresas, das organizações e instituições políticas. É na base social que o domínio do masculino resiste, o que permite a afirmação de que as mulheres representadas pela Sou Mais Eu pertencem a este universo onde as pressões sexistas persistem.