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DA ESCRITA ÍNTIMA À AUTOPUBLICAÇÃO VIRTUAL

3.5 VIRTUDE DA VIRTUALIDADE: A MENORIZAÇÃO DO AUTOR

3.5.5 Blogs Femininos

Em Mass Culture as Woman: Modernism’s Other, Andreas Huyssen (1986) afirma que, desde o século 19, a cultura de massa é associada às mulheres enquanto a arte, a verdadeira arte, é uma prerrogativa masculina. Em grande parte do século 20, é perceptível a manutenção desta perspectiva do feminino subjugado através de uma representação depreciativa. Contudo, é preciso perceber que, a exemplo do que foi abordado anteriormente, com o advento da internet publicável, os polos de emissão e recepção foram rompidos. Agora, as mulheres são prosumidoras. Podem tomar frente às representações do feminino e romper com as restrições no campo das artes, e da escrita, impostas por uma sociedade patriarcal que construiu historicamente a equívoca ideia da inferioridade intelectual feminina. Os blogs são espaços de expressão e de construção de si (SIBILIA, 2003), a partir dos quais ecoam discursos pessoais que foram há muito tempo inibidos pelos meios de comunicação de massa (LEMOS, 2002).

A necessidade de reagir contra o antigo, o patriarcal, levou muitas mulheres, nos seus blogs, à autoconfissão, e ao resgate da memória pessoal, o que também reflete a memória política do seu tempo, criando uma nova história das mentalidades. (LOBO, 2007, p.67)

O resgate do caminho percorrido por elas no campo da literatura e do jornalismo neste capítulo preparou campo para discutirmos o empoderamento do sujeito feminino através da escrita em blogs pessoais. “O movimento dos blogs permite tudo isso: o conteúdo das mensagens trocadas depende de cada um e de todos nós. A nova ética ruma para a libertação utópica que esse veículo pode proporcionar às mulheres” (LOBO, 2007, p.123). Além de uma política do feminino, é possível ler esta nova ética, considerada a partir do diário virtual, como uma

possibilidade de auto-representação. Assim, os textos rápidos e curtos dos diários virtuais se constituem, como observa Schittini (2004), biografemas ou unidades mínimas de biografia.

Nos blogs, os biografemas, compostos pelo próprio eu e não por um biógrafo, constituindo-se de textos curtos, pessoais, [...] tudo isso com um estilo próprio. Ao mesmo tempo, estes blogs ou autobiografemas compõem insights ou fluxos da consciência típicos de um diário redigido na primeira pessoa. (LOBO, 2007, p.53)

Mais do que um rompimento das barreiras de gênero, o blog amplia as possibilidades de representação de mulheres de diferentes estratos sociais. Assim, as limitações de raça, credo e domínio de uma variedade prestigiada de língua caem por terra. “Essa retomada do elo da intimidade perdida permite inventar um novo discurso, próprio e independente da barreira dos estereótipos e comandos sociais” (LOBO, 2007, p. 67).

Assim, com a escrita de si nos diários virtuais, a mulher deixa de ser objeto da representação e passa a se dizer, a falar sobre si, a ser o sujeito do texto tanto em termos gramaticais quanto em termos identitários. Para Contardo Calligaris,

O sujeito que fala ou escreve sobre si [...] não é o objeto (re)presentado por seu discurso reflexivo, mas tampouco é o efeito, por assim dizer, gramatical de seu discurso. Falando e escrevendo, literalmente, ele se produz. Narrar- se não é diferente de contar uma vida. Ou debruçar-se sobre sua intimidade não é diferente de inventar-se uma intimidade. O ato autobiográfico é constitutivo do sujeito e de seu conteúdo. (CALLIGARIS, 1997, p. 49)

A escrita nos blogs é fonte importante de engendramento identitário. “É através da linguagem que o ser humano se constitui como sujeito e adquire significância cultural” (LOBO, 2007, p. 51). No caso dos blogs femininos a questão de uma identidade feminina de escrita é de suma importância para esta pesquisa.

[...] as mulheres estão se confessando publicamente. Isto é uma grande novidade diante dos séculos de repressão feminina. É a ruptura da noção de proibição dessa nova geração de mulheres. Elas criam seus próprios limites. Além disso, os diários na internet têm aspecto teatral e narcisista, que está representado pela tela do computador. A tela é um espelho para a mulher. Outra peculiaridade é que os blogs representam uma comunicação imediata. A instantaneidade da comunicação, o que Jameson Fredric chama de ontologia do presente, está inserido nessa mídia. (LOBO, 2008)

Isabel Ventura, depois de estudar os objetivos e a linguagem de cinco blogs femininos portugueses afirma que os diários virtuais:

São atos políticos porque contam, partilham e reivindicam um determinado espaço que assume uma identidade de gênero. Não se pode dizer que as mulheres têm um papel mais intimista do que os homens. Não há grandes distinções, mas sim, motivações individuais. Usam os blogs para assumir um papel político, ainda que inconsciente, ao adotarem uma posição. No fundo é uma forma de dar recados, de comunicar. O blog hoje é um acesso a um espaço público que, apesar de ser limitado, é ilimitado ao mesmo tempo. (VENTURA apud OLIVEIRA, 2009, p.65)

Para as mulheres, depois de séculos de repressão, de apagamento, a internet tem sabor de libertação. Lobo (2007) afirma ainda que a caligrafia caprichada dos diários antigos, que tanto orgulhava as famílias burguesas, foi substituída por uma escrita apressada, digitada noite adentro.

“Weblogs constituem uma conversação massivamente descentralizada onde milhões de autores escrevem para a sua própria audiência” (MARLOW, 2004, p.3). É possível afirmar que a liberdade da internet possibilita a constituição de identidades autorais. As mulheres se tornam autoras na medida em que encontram na internet um lugar de escrita e de publicação, além de uma audiência com a qual dialogam.

Mesmo que estejam em suas casas, à noite, após um dia de trabalho ou de dedicação aos afazeres domésticos, ela consegue, pela tela do computador, ir a outros lugares. Surge a figura de uma escritora que pode pertencer a diferentes camadas sociais e, assim, se expressar a partir de diferentes ‘locais e qualidades’ de escrita. “A hipertextualidade arranca a escritora do mundo privado do diário tradicional e a lança no meio público-privado do blog. Nessa travessia do espaço local para o sideral, há também uma mudança ideológica e política” (LOBO, 2007, p.71). Na esfera política, poderíamos dizer que não há uma modalidade de escrita privilegiada. Todas as escritas ganham espaço na virtualidade. Esta virtude da virtualidade permite que em qualquer lugar do mundo, a partir de todos os lugares sociais, homens e mulheres minimamente alfabetizados ou com alto grau de escolaridade, possam tecer e publicar autonarrativas virtuais.

Na virtualidade, a mulher escreve em primeira pessoa. É autora de textos com os 'erros e acertos' que somente a escrita identitária contém. A autenticidade "[...] a autenticidade [...] não se pode lê-la superficialmente porque ela se revela em detalhes que os olhos não captam com facilidade” (ALVAREZ, 2006, p.106). Assim, a superfície do 'erro' é a matéria do jornalismo e das Belas Letras. A profundidade dele se remete à linguagem naturalizada que traz as marcas da existência de quem a escreveu. A linguagem dos blogs (BLOOD, 2000) atribui uma voz distinta e uma personalidade aos

diários virtuais e aos seus autores. Em busca desta voz que se revela através da escrita é que se dá a análise comparativa do próximo capítulo.

CAPÍTULO 4