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A neutralização do ser-aí na confluência entre super-humanidade e

Capítulo 3 – O ser para a morte sob a primazia da técnica moderna

3.3 A neutralização do ser-aí na confluência entre super-humanidade e

Nesse mundo sem mundo, vive a super-humanidade, alusão explícita ao além do homem nietzschiano, a humanidade pós-metafísica anunciada por Nietzsche como protagonista da transvaloração de valores a partir de si mesma, sob a contínua superpotencialização da vontade de poder. Segundo Heidegger, conforme antes esclarecemos, esse além do homem não se constitui exatamente como pleno proprietário dos entes em sua totalidade; ao contrário, absorve-se na contemporânea configuração técnica da vontade de poder – vertida em vontade de vontade –, sendo que a subjetividade pleiteada na origem da metafísica moderna, que concebe homem e mundo, respectivamente, como sujeito e objeto, conclui-se no arrebatamento da humanidade requisitada pela essência calculadora da técnica. Desse modo, então, a super-humanidade, aproximando o homem à condição de um ente simplesmente dado, converge para a subumanidade, posto que o super-homem ou sub-homem – afinal, são o mesmo – destitui o ente humano de sua livre relação com o ser, de sua abertura para o ente enquanto tal na sua totalidade, do ser-aí como projeto formador de mundo.

48 Neste momento, são importantes algumas ponderações. Inicialmente, é imprescindível evitar, mais uma

vez, a confusão entre as expressões ocultamento do ser e ocultamento da diferença ontológica. Quanto à primeira, refere-se à ambiguidade incessante ao velamento e desvelamento do ser – o ser permanentemente se desvela em seu velamento –, constitutiva da própria diferença ontológica em sua insuperável enigmaticidade. Quanto à segunda, concerne ao esquecimento da diferença ontológica, que se inicia nas origens da metafísica e que se completa em sua saturação, com o abandono explícito da pergunta sobre o ser. Além disso, o encobrimento da distinção ontológica não aponta para uma suposta ausência de vigência do ser – esse esquecimento do ser é, de acordo com a filosofia heideggeriana, uma destinação histórica do ser mesmo. Em A superação de metafísica, o filósofo é claro ao dizer que, no mundo sem mundo, persiste a vigência do ser, porém sem vigor próprio (2008, p.80).

Em A superação da metafísica, mencionando o deserto significacional instaurado pelo completo esquecimento do ser, Heidegger exprime nas seguintes palavras a identidade contemporânea entre super-humanidade e subumanidade:

É no meio desse vazio e abandono que o homem, ávido de si mesmo, encontra como única saída para salvar a subjetividade no super- homem o consumo dos entes no fazer da técnica, a que também pertence a cultura. Subumanidade e super-humanidade são o mesmo. Pertencem uma à outra, da mesma maneira que no animal rationale da metafísica, o “sub” da animalidade e o “super” da ratio estão acoplados em uma correspondência. (2008, p. 80).

Examinando essa convergência moderna entre super-humanidade e subumanidade à luz das teses comparadas em Os conceitos fundamentais da metafísica, identificamos a subumanidade dessa super-humanidade em condição semelhante àquela contida na tese intermediária, o animal é pobre de mundo, uma vez que o sub-homem moderno é privado das características que definem a possibilitação da formação de mundo – o manter-se ao encontro obrigatório, a integração e o desentranhamento do ser –, unificados no projeto originário. Essa privação o aproxima da pobreza de mundo do animal, que, como observamos, comporta-se impulsionalmente mediante perturbações estabelecidas no círculo desinibidor de seu meio ambiente. Do mesmo modo que o animal vive suas relações com os entes circundantes sem, contudo, experimentar o acesso ao ente enquanto tal, isto é, um vínculo autêntico e compreensivo com o ser, o super-homem responde às requisições da realidade técnica sob o completo silêncio da distinção ontológica, sem conquistar o acesso ao ente em seu ser; assim como o animal é absorvido, em suas ligações com o meio circundante, pelo outro, pelos entes de seu círculo, o sub-homem é enredado pela totalidade constituída pela configuração técnica de um mundo sem mundo.

Compreende-se, neste momento, a asserção heideggeriana da equivalência entre razão humana e pulsão animal, a partir da referida confluência entre super- humanidade e subumanidade. O comportamento animal consiste no ser impelido por pulsões orgânicas fixadas em seu círculo de desinibições, algo bastante distinto, como anteriormente destacamos, da assunção de atitude do homem na abertura para a manifestação do ente em sua totalidade. Sob a maquinação e o planejamento da técnica moderna, a razão humana se reduz aos procedimentos de cálculo processados na

dinâmica da sucessão integrada de disponibilidades requisitadas pela realidade da superpotencialização do poder.

Conclui-se, assim, que essas ponderações acerca do mundo que não se faz mais mundo e de seus temas correlatos – convergência entre super-humanidade e subumanidade; simetria entre razão humana e pulsão animal; conversão do ente humano em fundo de reserva; a subumanidade como condição de um ente simplesmente subsistente – corroboram o que antes identificamos sob o enfoque do alargamento do domínio da impessoalidade na sociedade moderna, a saber, o ser-aí, privado da essencialidade de seu poder ser, situa-se sob a severa ameaça de sua total supressão na contemporaneidade.

Depreende-se, então, a resposta para o problema que nos concerne centralmente, isto é, acerca da condição do ser para a morte sob a vigência da maquinação técnica: com a radical neutralização do ser-aí, sob a absolutização do devir ôntico da realidade, oculta-se a existência do ser humano em sua essência de ser para a morte.

O entendimento dessa conclusão é facilitado pela indicação de alguns dos aspectos delineadores do ser-aí como ser para a morte – detalhadamente expostos no primeiro capítulo desta tese. Localizamos o ser para a morte na nulidade primordial do ser-aí, entendida em sua ausência originária de propriedades substanciais e em sua existência não necessária, ou seja, o ser-aí é um existente em um horizonte finito de possibilidades, sendo-lhe imanentes o poder ser e o poder não ser. Nessa negatividade essencial do ser-aí, revela-se o modo de ser do ente humano como o ser-adiantado-em- relação-a-si, permanentemente mobilizado por seu ainda não. Para o ser-aí, a morte não diz respeito à conversão de um ente subsistente para a esfera da não subsistência; é, isto sim, sua possibilidade extrema e insuperável, impossibilidade de todas as suas possibilidades. Revelam-se, assim, as teses que permeiam a concepção ontológica do ser-aí como ser para a morte: ao ser-aí pertence um ainda não; para o ser-aí, atingir o fim de seu curso incide em seu já não ser; e o findar abriga um modo de ser singular e insubstituível.

No ser-aí como ser para a morte, são essenciais os fenômenos da culpa e do apelo, ambos remissivos à disposição fundamental da angústia. Constatamos que o ser culpado imanente ao ser-aí reside em sua nulidade originária – o não ser fundamento de um ser determinado por um não, ser fundamento de uma nulidade –, ou seja, sendo

essencialmente um poder ser e, contudo, sem ter decidido previamente por sua existência, o ser-aí existe sempre aquém de suas possibilidades, no declínio da facticidade. O ser-aí, então, existe necessariamente culpado ante seu poder ser mais próprio. O apelo, enviado pelo ser-aí, destina-se ao ser-aí, a saber, trata-se da convocação procedente do ser-aí angustiado para que o ser-aí declinado no impessoal da facticidade – desviado, portanto, de seu poder ser originário –, realize a assunção de sua radical indeterminação, sua essência como possibilidades.

A partir dessa convocação da consciência, a interpelação que o ser-aí angustiado envia ao ser-aí declinado, emerge o ser resoluto, que desperta da perda de seu si mesmo na impessoalidade e tende ao seu poder ser próprio – movimento que não implica, evidentemente, sua desvinculação da realidade fática, imanente ao ser-aí, mas a conquista da autêntica escolha do seu ser. Esse fenômeno, que projeta o ser-aí na nulidade do ser fundamento, implica a abertura do poder ser até o final, isto é, revela-se o ser para morte no ser-aí que encontra sua nulidade extrema e apropria-se de sua estrutura ontológica existencial.

A interpelação é lançada mediante o estranhamento radical da angústia para o ser culpado mais próprio. Fenômeno existencial originário do ser-aí, a angústia se manifesta na suspensão de vínculos entre o ser-aí e o mundo. Dito de outro modo, na disposição fundamental da angústia o mundo é destituído de qualquer significância, colocando o ser-aí na abertura do nada. Dessa forma, a angústia suspende a familiaridade do ser-aí com os entes intramundanos, familiaridade esta que caracteriza a cotidianidade mediana na impessoalidade. A angústia não se confunde com o medo, pois o ser-aí não se angustia com os entes particulares que estão no mundo, quer dizer, não há propriamente um quê da angústia. A indeterminação do diante de quê da angústia é, isto sim, a irrelevância originária de todos os entes intramundanos, aberta no ser-em-o-mundo como tal, quer dizer, o ser-aí se angustia com o mundo enquanto tal, na revelação do nada.

A disposição fundamental da angústia projeta radicalmente o ser-aí no interior de suas possibilidades, proporcionando-lhe a abertura ao poder ser como ser livre para a possibilidade de a si mesmo escolher, a liberdade inscrita em sua finitude. Na singularização desse pleno poder ser, o ser-aí é lançado ao paroxismo de sua nulidade, sua possibilidade extrema, a possibilidade que, efetivada, remove definitivamente o poder ser: a morte.

Nesses termos revela-se o ser-aí como ser para a morte, perspectiva ontológica delineada no desenvolvimento da analítica existencial e significativamente distinta da morte absorvida na esfera ôntica da facticidade. Na impessoalidade fática do ser-aí declinado, a morte é acolhida como certeza empírica, privada, contudo, de sua dimensão originária existencial e acolhida como contingência que não se refere propriamente a ninguém. Entendida como concretamente real e assimilada enquanto fenômeno incidental e exógeno ao ser-aí, a morte é onticamente conceituada como acontecimento do qual é possível se desviar, ocultando-se, com isso, sua fenomenalidade fundamental e própria, a saber, sua possibilidade constante e iminente, nulidade sobre a qual paira o originário poder ser do ser-aí em sua existencialidade.

Portanto, na destinação histórica contemporânea do ser, consumação da metafísica que concede relevo único à realidade ôntica em seu devir, a morte é predominantemente acolhida sob esse prisma de pura incidentalidade empírica, abstraída de sua essencialidade ontológica no ser-aí como ser para a morte. No mundo sem mundo, no qual o ser-aí é tendencialmente suprimido na extrapolação da impessoalidade em detrimento de seu poder ser, bem como transmutado em ente puramente subsistente, disponível, como todos os demais entes, ao cálculo maquinador e explorador da técnica, o ser para a morte é expatriado pela superpotencialização do poder49. Em linhas gerais, se o ser para a morte repousa sobre as relações entre o ente humano e o ser, no poder ser do ser-aí, o encobrimento dessa condição existencial do ser humano é pressuposto pela radical neutralização do modo de ser especificamente humano, promovida pela primazia conferida ao plano ôntico pela realidade e pelo pensamento modernos.

Em sentido rigoroso, o ocultamento do ser-aí como ser para a morte é pontualmente identificado na análise das relações entre angústia, poder ser e impessoalidade, focalizadas sob o prisma da configuração da realidade sob a vigência

49 É importante assinalar que aquilo que afirmamos acerca da impessoalidade é igualmente válido para a

morte apreendida no nível ôntico. Anteriormente, destacamos que a impessoalidade é imanente ao ser-aí em sua dinâmica existencial, ou seja, possui base ontológica, sendo que a mudança qualitativa, na sociedade moderna e no esgotamento da metafísica, verifica-se na ilimitada expansão do impessoal, restringindo-se drasticamente o ser-aí como projeto. Na mesma perspectiva, a elaboração ôntica da morte não é acontecimento circunscrito a determinada época da história da humanidade, sendo, isto sim, expressão necessariamente presente no ser-aí em todas as suas épocas, vinculada à condição do ente humano como ser para a morte. Na atualidade, porém, essa concepção ôntica da morte, em consonância com o domínio absoluto da impessoalidade, autonomiza-se diante do ser para a morte. Com o ser para a morte plenamente encoberto no desterro do próprio ser-aí pela vigência da técnica, a certeza empírica e impessoal da morte apresenta-se como perspectiva exclusiva da mortalidade. Em linguagem incisiva, a morte é vertida em mero findar de um ente.

da técnica moderna. O fenômeno da angústia, afinal, retira o ser-aí de sua impessoalidade, suspendendo-o entre o ser e o nada, o poder ser e o poder não ser, remetendo-o, assim, à sua condição de projeto, sobrelevando o poder ser que constitui a abertura para sua possibilidade irremovível – impossibilidade de todas as suas possibilidades –, a morte. Em contrapartida, o alargamento da impessoalidade é sinônimo de retração do poder ser do ser-aí, arrebatando o ente humano em uma estabilidade fática refratária à disposição fundamental da angústia. Compreende-se melhor, dessa forma, a posição de Marco Antonio Casanova, para quem o domínio irrestrito da impessoalidade fática deriva da estabilização para a qual atrai o ser humano, subtraindo-o de seu poder ser, ou seja, de sua angustiante nulidade e finitude – negando, assim, sua condição originária de ser para a morte.

Transposta para o confronto com o contexto enunciado pelas noções declaradas em A superação da metafísica – super-humanidade e subumanidade; equivalência entre pulsão animal e razão humana; mundo que não mais se faz mundo –, a existencialidade do ser para a morte encontra o mesmo destino: seu ocultamento. Na conversão do ente humano à privação de mundo, da assunção de atitude ao comportamento maquinal, da acessibilidade ao ente enquanto tal ao enredamento pela totalidade que delimita as ligações, o ente humano vive em condição de subumanidade, afastado de seu poder ser e de sua existencialidade como ser para a morte.

A expressão mundo sem mundo, contudo, pode sugerir uma objeção à asserção de que o ser para a morte encontra-se encoberto sob o esquecimento da diferença ontológica. Esboçamos essa contestação nos seguintes moldes: se a angústia, fenômeno em que se explicita o ser para a morte, implica a suspensão da facticidade do ser-aí na não significatividade do mundo, não estaríamos, no caso dessa disposição fundamental, diante de um mundo sem mundo? Expressa de outro modo, a questão é: a suspensão da facticidade, com a qual a angústia retira o ser-aí da impessoalidade e o lança à negatividade primordial de seu poder ser, não é o mesmo que o mundo sem mundo da realidade moderna? E, admitida essa hipótese, na constituição ôntica desse mundo sem mundo não persistiria desencoberto o ser para a morte?

Na citação seguinte, extraída de Ser e tempo, quando Heidegger trata da disposição fundamental da angústia, encontramos as respostas para esses questionamentos:

No diante-de-quê da angústia torna-se manifesto o “não é nada nem em parte alguma”. O caráter recalcitrante do nada e em parte alguma do interior-do-mundo significa fenomenicamente: o diante-de-quê da

angústia é o mundo como tal. A plena não-significatividade que se anuncia no nada e em parte alguma não significa ausência-de-mundo, mas, ao contrário, que o ente do interior-do-mundo é em si mesmo tão desimportante que, sobre o fundamento dessa não-significatividade de o-que-pertence-ao-interior-do-mundo, o mundo, unicamente em sua mundidade, ainda se impõe. (2012, p. 523).

Observamos, dessa forma, que a não significatividade do mundo, desvelada na angústia, e o mundo que não mais se faz mundo, sob a vigência da técnica contemporânea, não são apenas expressões dessemelhantes; mais do que isso, são fenômenos contrários, reciprocamente excludentes.

Na angústia, como antes afirmamos, o ser-aí é afastado de sua cotidianidade mediana, da facticidade e da impessoalidade, ou seja, é retirado de sua familiaridade com os entes intramundanos, então expostos em sua irrelevância. Envolvido pela angústia, o ser-aí transcende o nível ôntico da realidade – desprovido, então, da significância própria da existência declinada – e se dirige ao seu poder ser si mesmo, suspenso no mútuo pertencimento entre ser e nada. Nessa disposição originária, as relações entre o ente humano e o ser sobrevém ao primeiro plano da existência, desvelando a constituição fundamental do ser-aí como ser-em-o-mundo. A angústia do ser-aí ultrapassa a circunscrição ôntica do ente intramundano, oferecendo a abertura do mundo como mundo. Assim, o ser-aí se angustia como o mundo enquanto tal, com o ser-em-o-mundo, situado além dos referenciais fáticos que cotidianamente orientam sua existência. Angustiado, o ser-aí não compreende a si pela impessoalidade fática do mundo, singularizando-se, desse modo, em seu ser possível, poder ser em-o-mundo. Singularizado em seu poder ser, o ser-aí está angustiado com a liberdade e a responsabilidade de ser si mesmo em-o-mundo.

Essa diferença entre a não significatividade do mundo, proporcionada pela disposição fundamental da angústia, e a ausência de mundo é reforçada por Michel Inwood no verbete intitulado Mundo e entes como um todo, contido em seu Dicionário Heidegger:

Em certos HUMORES, notavelmente a angústia, coisas cotidianas perdem sua significação: “A familiaridade cotidiana entra em colapso. Dasein foi individualizado, mas individualizado como-ser-no-mundo. Ser-em entra no ‘modo’ existencial do ‘não-estar-em-casa’” [...]. Dasein já não está mais em casa no mundo, embora nunca tenha

cessado de ser no mundo; ele não o poderia fazer sem cessar de ser Dasein. (2002, p. 121).

Portanto, a angústia não suspende o mundo como tal; ao contrário, neutraliza o ente intramundano e o declínio fático da impessoalidade, abrindo o mundo em seu ser para o ser-aí enquanto projeto essencialmente negativo – sem nenhuma determinação quididativa. Fenômeno oposto se verifica na destinação histórica da técnica como provocação, no mundo sem mundo que estende a impessoalidade na maquinação, encobrindo o poder ser do ser-aí na sua conformação à subumanidade. Se a angústia projeta o ser-aí em sua relação com o ser, no mundo sem mundo o ente humano é enviado para a subsistência, um ente entre todos os entes simplesmente dados, ignorando-se sua abertura para o ser.

Reforçam-se, assim, as afirmações anteriores de que no mundo sem mundo não há angústia, de que no mundo sem mundo não há ser-aí, de que no mundo sem mundo não há ser para a morte. No mundo sem mundo o homem torna-se ente disponível para a composição técnica, converte-se, segundo Heidegger, em A superação da metafísica (2008, p. 82), na mais importante matéria-prima, material humano passível de ser produzido artificialmente nas fábricas contemporâneas.