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O problema filosófico da morte: perspectivas na segunda fase do itinerário de

Capítulo 2 A segunda fase do pensamento filosófico de Heidegger: o

2.6 O problema filosófico da morte: perspectivas na segunda fase do itinerário de

Explanamos, ao longo deste capítulo, sobre as tendências delineadoras do pensamento de Martin Heidegger em sua segunda fase, que persiste em sua investigação em torno do problema do ser, agora não mais, porém, pelo viés da analítica existencial, na qual sobrevém o ser-aí, mas sim pela humanidade identificada na clareira do ser em suas destinações históricas. Adquire prioridade, então, o curso histórico da metafísica, entendida por Heidegger como a reflexão filosófica que, perguntando-se

conceitualmente pelo ser, declina crescentemente para a esfera ôntica, em um processo que atinge seu paroxismo no pleno esquecimento do ser. E, simultaneamente a essa digressão pelo interior da metafísica, sobrevém a possibilidade um outro início do pensamento, exterior à metafísica e essencialmente destinado ao restabelecimento da correspondência humana às reinvindicações originárias da abertura do ser.

Registramos, então, que a consumação do abandono do ser, cujas raízes modernas reportam-se à subjetividade filosófica sistematizada nas teses de René Descartes e ao prestígio alcançado pelo conhecimento científico, realiza-se na crítica radical de Nietzsche aos fundamentos da filosofia, da cultura e da civilização ocidental, em um movimento de pensamento que, para Heidegger, não excede os parâmetros da metafísica, sendo, isto sim, sua conclusão e sua saturação. Com Nietzsche, o esquecimento do ser plenifica-se na recusa à própria pergunta pelo ser, à medida que a totalidade dos entes, em seu constante devir, é entendida como a única dimensão da realidade – a clássica oposição metafísica entre ser e devir resolve-se, no pensamento nietzschiano, pela supressão do plano suprassensível e pela absolutização do plano ôntico, mobilizado no devir.

Heidegger identifica as noções nietzschianas – niilismo, transvaloração dos valores, eterno retorno, vontade de poder, além do homem – em linha de continuidade com a moderna tradição filosófica, com a qual se configura a modernidade regida pela primazia da técnica. Sob a essência da técnica moderna, a totalidade dos entes, incluída a humanidade, é concebida como permanente fundo de reserva disponível à exploração. Nesse universo técnico e cibernético, o além do homem converte-se, na realidade, em matéria requisitada para a mobilização de energia, ou seja, sua essência de um ente que se relaciona preferencialmente com o ser é posta sob o perigo da aniquilação, tornando o ente humano semelhante a todos os demais entes, ao aproximá-lo de um ente simplesmente dado.

Entretanto, salientamos também que, no esgotamento da metafísica e na configuração técnica da realidade, persiste, segundo Heidegger, a hipótese de uma restituição da humanidade, em seu pertencimento ao ser, pelo recomeço conduzido por um pensamento distinto das reflexões balizadas pela lógica, pela filosofia e pela ciência, um pensamento capaz de resgatar a reciprocidade originária entre homem e ser em seu velamento e desvelamento. O caminho para o pensamento do ser inclui, como veremos,

o dizer poético que expõe a humanidade na abertura da linguagem em seu pertencimento ao ser.

Essa exposição não pretendia compor uma apresentação completa da segunda fase do itinerário filosófico de Heidegger, mas sim percorrê-la para apontar as diretrizes a partir das quais é possível o exame do tema central desta tese, a saber, as transformações atinentes à temática da morte nas reflexões heideggerianas posteriores à prioridade concedida, em Ser e tempo, à analítica existencial. Ao acompanharmos momentos significativos do pensamento heideggeriano a partir de meados da década de trinta, identificamos duas vias centrais nas reflexões de Heidegger, direções intrinsecamente interpenetradas e ambas referentes ao problema filosófico do ser: a incursão pelo percurso histórico da metafísica e o esforço por sua ultrapassagem na restituição dos vínculos primários entre ser e pensamento.

Com o delineamento desses caminhos da reflexão heideggeriana, encontramo- nos em condições de posicionar convenientemente o exame temático da morte no segundo período da filosofia de Heidegger, quer dizer, identificando as vias centralmente constituídas pelo filósofo em busca da verdade do ser, formulamos as seguintes interrogações atinentes ao tema da morte :

● Em que medida o perigo contemporâneo que assola a essência da humanidade, sob a vigência da técnica moderna, constitui-se em ameaça ao ente humano interpretado no âmbito da analítica existencial, no interior da qual se explicita o ser-aí como ser para a morte?

● Em que medida a possibilidade de restabelecimento da humanidade em suas relações com o ser, superando-se, assim, a metafísica e a primazia moderna da técnica, confere importância ao tema da mortalidade humana?

A primeira questão, situada na esfera da interpretação heideggeriana da metafísica, procede da constatação de que, em Ser e tempo, a noção de ser para a morte não se desenvolve como aspecto acessório ou complementar do ser-aí, sendo, isto sim, característica fundamental do modo de ser finito e especificamente humano. E justifica- se ainda pelo fato de que a analítica existencial, embora destituída, nos textos da segunda etapa das reflexões heideggerianas, de sua condição de ponto de partida para a investigação acerca do sentido do ser, jamais é renegada por Heidegger.

A segunda questão lida diretamente com a menor ou maior importância do tema da morte na chamada viragem do pensamento de Heidegger. Caso se observe

pouca relevância dessa temática na exploração heideggeriana das possibilidades de restauração das autênticas relações entre humanidade e ser, será necessário, então, analisarmos as razões de tal fato. Em direção diferente, caso se registre a nuclearidade da noção de morte na proposta de restituição da humanidade como clareira do ser, será preciso cotejarmos essa concepção de mortalidade com a anterior conceituação do ser- aí como ser para a morte, examinando suas semelhanças e diferenças, assim como avaliando-as no contexto do itinerário filosófico de Heidegger.

Desenvolveremos, portanto, os próximos capítulos deste trabalho em torno dessas interrogações orientadas pela temática da morte na segunda etapa do percurso filosófico de Heidegger.