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Capítulo 1 Ser e tempo: a fenomenologia de Heidegger e o ser para a morte no

1.4 O ser-aí como ser para a morte

Em Introdução à filosofia, publicação de um curso ministrado na Universidade de Freiburg, nos anos de 1928 e 1929, Heidegger investiga as relações entre filosofia, ciência e visão de mundo a partir das teses ontológicas instauradas por sua analítica existencial. Nesse texto, precisamente no parágrafo 37 de sua segunda seção (2009, p. 344-362), o autor é incisivo acerca da negatividade27 imanente ao ser-aí, pronunciando sua indeterminação radical ou, se preferirmos, a nulidade primordial de sua determinação pela ausência de propriedades substanciais.

Na constatação da facticidade do modo de ser humano, o filósofo observa que o ser-aí não existe por sua própria decisão, estando, isto sim, desde sua origem lançado à existência. Além disso, a existência do ser-aí não é necessária, a saber, o ser-aí pode constantemente deixar de existir, não ser. Em outros termos, existindo em um universo permanente de possibilidades, o ser-aí abriga em si mesmo o ser e o não ser, a saber, sua essência de poder ser é indissociável do poder não ser.

A afirmação dessa nulidade intrinsecamente contida no poder ser decorre das reflexões desenvolvidas pelo autor em Ser e tempo, texto que nos oferece diversos caminhos para o exame do problema, bem como de suas intersecções com a tese do ser- aí como ser para a morte. Escolhemos como ponto de partida uma questão que perpassa

27 Muito embora, na sequência do capítulo, discorreremos sobre o sentido primordial da nulidade do ser-

aí, desde já é importante destacar que a negatividade mencionada não deve ser entendida como a carência de uma positividade prévia, original e ideal, mas sim como a nulidade originária do poder ser do ser-aí, existente no abismo formado pela intersecção de nada e ser.

os três primeiros capítulos da segunda seção do mencionado livro (2012, p. 653-908): O ser-aí é um ente que pode-ser-um-todo (Ganzseinkönnen)? A opção por fazer dessa questão a diretriz de nossa explanação justifica-se por sua revelação da nulidade como elemento imprescindível e fundamental da totalidade possível do ser-aí28.

Essa problematização deriva precisamente do caráter de poder ser do ser-aí, ente que tem em jogo o seu próprio ser, existencialmente projetado em possibilidades sempre além de sua imediata efetivação na realidade. Enquanto existe, o ser-aí é constantemente o ser-adiantado-em-relação-a-si, no qual, então, persiste o ainda não sendo, negatividade indissociável do seu modo de ser. Diferentemente dos entes que meramente subsistem enfeixados em propriedades imutáveis, o ser humano sempre é em seu ainda não, o que ele pode ser e o que ele possivelmente será, evidenciando-se, assim, uma aparente carência ou falta que acompanha o ser-aí ao longo de toda a sua existência.

Centrado na dinâmica de seu poder ser, o ser-aí jamais se completa, se com essa expressão entendemos a aquisição de conteúdos fixos e definitivos, que excluem as transformações e proscrevem as possibilidades. Posto que a incompletude do ser-aí, coincidindo necessariamente com seu poder ser, é a essência da existência humana, depreende-se que a supressão da falta apenas se realiza com a eliminação do próprio ser-aí em-o-mundo, sua morte, poder ser extremo em que se realiza a passagem para o não ser absoluto. Em um primeiro momento, portanto, tem-se a inclinação de declarar que a essência existencial do ser-aí contradiz um possível-ser-um-todo desse ente ou, pelo menos, que o modo de ser propriamente humano resiste à sua apreensão fenomênica em uma totalidade.

Neste ponto, Heidegger redimensiona o problema, interrogando em que medida é legítimo interpretar na esfera de um faltante a constante totalidade não fenomênica do ser-aí. Para tanto, pondera que habitualmente assumimos o faltante como sinônimo de uma parte que deveria estar reunida a algo e, no entanto, ainda não está junto dele. Essa definição de faltante concerne aos entes subsistentes e utensilares, que são ao modo de utilizáveis no mundo da ocupação e nos quais a soma total de suas partes suprime a falta e engendra a sua totalidade. Essa significação, porém, não se aplica ao ser-aí, pois este

28 Ao adotarmos a indagação sobre a possível totalização do ser-ai como vetor inicial para a explanação

em torno da nulidade do ser-aí, levamos em conta não apenas o fato de que o exame do tema requer a consideração da finitude humana, como também o aspecto de que nos remete diretamente ao pertencimento recíproco entre poder ser e poder não ser.

não é um ente intramundano utilizável, e seu curso, ao qual pertence essencialmente o poder ser, não se realiza como adição de partes sucessivas que, por fim, tornam-no completo. O ser-aí, como sabemos, é nuclearmente constituído por seu ainda não, sem o qual não há propriamente existência. Sua incompletude, então, não está em um elemento efetivamente real e separado de si, que a ele pode adicionar-se na promoção de sua totalidade.

Prosseguindo em suas reflexões, o filósofo pergunta se há outro ente ao qual o ainda não sempre lhe pertence, encontrando, inicialmente, o exemplo da lua (2012, p. 671-673), a qual, enquanto não é cheia, falta invariavelmente pelo menos um quarto. Essa parte que falta à lua cheia pertence sempre a ela, isto é, não se trata de algo do qual esteja objetivamente dissociado e com o qual poderá vir a se reunir. Nesse sentido, é razoável dizermos que à lua pertence o seu ainda não. Contudo, o ainda não da lua é experimentado exclusivamente no apreender perceptivo, em nossa recepção sensorial desse ente que, efetivamente, é constantemente uma totalidade. Do ponto de vista da realidade efetiva, nada falta à lua, que é, sempre, portanto, lua cheia – sua totalidade não comporta, de fato, um ainda não. Trata-se, dessa forma, de um caso diferente do ser-aí, uma vez que este, como constante poder ser, tem o vir a ser em seu si mesmo, sendo invariavelmente aquém de suas possibilidades.

Na sequência, Heidegger recorre ao exemplo do amadurecimento de um fruto que, do mesmo modo que o ser-aí, tem em si o vir a ser, o ainda não que lhe pertence (2012, p.673). A semelhança, porém, desaparece quando se observa que o fruto, ao atingir sua forma madura, completa-se em sua totalidade, sendo que o ser-aí, ao encerrar seu curso, não instaura todas as possibilidades de seu devir, não converte seu poder ser em realidade plena. Ao contrário, o findar do ser-aí coincide necessariamente com a subtração do seu poder ser, quer dizer, do seu ser-em-o-mundo.

Assim, o findar do ser-aí, ou melhor, a sua morte, ao invés de realizar as suas possibilidades, conferindo-lhe total positividade, consiste na impossibilidade insuperável de todas as suas possibilidades. A morte do ser-aí não significa a transição de um subsistente para a não subsistência ou mesmo para a completa subsistência; trata- se do final de um modo ser que, inevitavelmente perpassado pela nulidade em seu vir a ser, realiza a passagem para o não ser em sua plenitude. Se a morte implica a perda do aí do ser-aí, a experiência da passagem para a completa negatividade não lhe é acessível no âmbito de uma possível totalização. Seria possível, então, pergunta-se Heidegger, o

ser-aí experimentar ontologicamente a totalidade na morte dos outros (2012, p. 657- 667)?

A morte dos outros significa a mutação de um ente do modo de ser do ser-aí para o já não ser-aí, restando tão somente a subsistência corporal, a qual não circunscreve, todavia, a recepção do fenômeno pelos sobreviventes. O luto e a recordação, afinal, não se realizam no nível da simples ocupação com um utensílio, significando, em sentido diferente, o estar junto a ele, ou seja, o ser-aí de quem sobrevive, que é em sua facticidade com outros, é também com o morto. Com isso, revela-se que os sobreviventes experimentam a perda no luto e na recordação, mas não o fazem mediante o acesso direto ao findar do ser-aí que morre, o ser chegando ao final do morto, pois o ser-aí, substituível na diversidade de ocupações cotidianas, tem na morte sua experiência singular e intransferível, que deve ser assumida por si mesmo.

Feitas essas considerações, Heidegger extrai três teses acerca da morte, com as quais se delineia a concepção ontológica e existencial do ser-aí como ser para a morte: ao ser-aí pertence um ainda não; para o ser-aí, atingir o fim de seu curso incide em seu já não ser; e o findar do ser-aí abriga um modo de ser singular e insubstituível (2012, p. 649).

Entretanto, se ontologicamente o ser-aí é o ser para a morte, acolhendo-a existencialmente como sua possibilidade mais própria, certa e insuperável, no plano ôntico da facticidade cotidiana prevalece a impessoalidade da morte que, admitida como certeza empírica, não concerne propriamente a ninguém. Assumida como concretamente real e como fenômeno exterior ao ser-aí, a morte é concebida como acontecimento do qual é possível se desviar, encobrindo-se, assim, sua dimensão originária própria, a saber, sua possibilidade a cada instante, nulidade sobre a qual se sustenta o autêntico poder ser do ser-aí. Na morte onticamente absorvida na esfera fática, a angústia, como veremos adiante, disposição originária que, retirando a significatividade do mundo, coloca o ser-aí em face à sua possibilidade mais própria, é convertida no medo, reação à ameaça representada pelos entes intramundanos.