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O ser para a morte diante da expansão contemporânea da impessoalidade

Capítulo 3 – O ser para a morte sob a primazia da técnica moderna

3.1 O ser para a morte diante da expansão contemporânea da impessoalidade

histórica do ser na contemporaneidade, bem como o conjunto de teses desenvolvidas no interior dessas ponderações, apontam incisivamente para o risco de perdição da essência humana, diagnóstico este efetuado a partir da constatação da absorção da humanidade no universo moderno da maquinação. Transformado em fundo de reserva e em matéria- prima disponível ao poder autônomo da técnica, o homem é arremessado ao nível dos entes simplesmente dados, destituído, portanto, do modo de ser especificamente humano.

Neste momento, então, interessa-nos confrontar a noção heideggeriana de ser- aí, densamente expressa na analítica existencial de Ser e tempo, com o primado da técnica na configuração ôntica da contemporaneidade, análise desenvolvida nos textos da segunda fase do pensamento de Heidegger. O ser-aí, convém reafirmar, é o modo de ser de cada ente humano em sua singularidade, a existência estruturada na confluência entre o poder ser e seu mundo fático, facticidade na qual se encontra primordialmente inserida e da qual recebe as diretrizes de suas possibilidades, quer dizer, o ser humano existe em um mundo não ao modo de um objeto situado em um recipiente; trata-se do existente que se efetiva no ente que sempre é, ou seja, na facticidade. Justifica-se, então, o cotejamento dessas diferentes perspectivas, pois enquanto ao ser-aí pertence a dimensão projetiva, o poder ser de cada ser humano em sua existência singular – em uma expressão sucinta, a liberdade do ente humano que escolhe a si mesmo em suas relações com o ser –, o primado da técnica somente requisita o homem sob o fluxo da vontade de poder. Sendo assim, estamos diante da seguinte questão: como o ser-aí é estruturalmente afetado sob a vigência da técnica moderna?

A resposta a essa questão nos conduz diretamente ao problema que orienta esta pesquisa, isto é, o exame sobre a persistência da temática da morte na segunda fase do pensamento heideggeriano, posto que as ponderações sobre as interferências da realidade moderna na estrutura existencial do ser-aí nos oferece o acesso à pergunta

acerca das intercorrências da maquinação contemporânea sobre a conceituação do ente humano como ser para a morte. Dito de outra forma, posicionar o ser-aí em face do domínio técnico do mundo implica o exame da pertinência da noção de ser para a morte na configuração cibernética da modernidade.

Marco Antonio Casanova, em seu já mencionado livro Nada a Caminho: impessoalidade, niilismo e técnica na obra de Martin Heidegger (2006), proporciona- nos as referências pertinentes ao cotejo do ser-aí com as reflexões heideggerianas em torno da técnica, especialmente a partir de seu exame da concepção de impessoalidade. Conforme registramos no primeiro capítulo deste trabalho, a noção de impessoal não se confunde com as denúncias, bastante correntes na sociologia e na filosofia contemporânea, da padronização dos seres humanos na atualidade regulada pelo consumismo e pelas tendências massificantes da cultura. Impessoalidade não é, para Heidegger, fenômeno exclusivo da civilização moderna. O impessoal possui raízes ontológicas em seu pertencimento estrutural ao ser-aí, constituindo-se no horizonte fático que modula as manifestações do poder ser. Esse caráter ontológico do impessoal recebe cuidadosa explanação de Casanova no primeiro capítulo de seu referido estudo, denominado Impessoalidade e existência (2006, p. 9-99).

Em seu segundo capítulo, Niilismo e cientificidade (2006, p. 101-189), o autor, situando-se sempre no círculo das reflexões filosóficas de Heidegger, dedica-se à investigação das feições específicas que a impessoalidade assume na era contemporânea, destacando a irrestrita expansão do impessoal na realidade atual. Acompanhando a apropriação heideggeriana da filosofia nietzschiana, articulada aos temas da técnica e do niilismo, Casanova identifica a extrapolação contemporânea da impessoalidade na culminação do percurso metafísico da subjetividade, em que a totalidade dos entes, nela incluída a humanidade, é alçada à condição de fundo de reserva permanentemente disponível à lógica da vontade tecnológica.

Sob esse prisma, nota-se, então, uma modificação significativa, pois, ao mesmo tempo que o estatuto ontológico da impessoalidade, a esfera do impessoal em que necessariamente o ser-aí existe, revela sua vinculação às relações entre o ente humano e o ser – sua imanência ao próprio ser-aí –, essa impessoalidade dilata-se continuamente na atualidade da técnica, da maquinação, do cálculo e do planejamento, ou seja, assume proporções inéditas. Não estamos diante de uma simples mudança quantitativa, mas sim

ante uma transformação qualitativa, que atinge diretamente o ser-aí, restringindo radicalmente ou, no limite, anulando, suas possibilidades existenciais.

É nesses termos que Marco Antonio Casanova pergunta: o que acontece, então, com o ser-aí? (2006, p. 155-156). Antes de apresentarmos a resposta elaborada por esse autor, cumpre recordar que constatamos, em páginas precedentes deste texto, que a impessoalidade fática e o poder ser são traços indissociáveis no ser-aí, tensionados na própria dinâmica existencial. Heidegger pensa a projeção sempre associada ao plano fático do impessoal, sem o qual estaríamos diante de um puro poder ser, uma conceituação abstrata que implicaria a sua contradição na negação efetiva de suas possibilidades. Entretanto, se o poder ser não se concebe sem a facticidade do impessoal, a abrangência irrestrita da impessoalidade produz a anulação das projeções existenciais, das escolhas possíveis e com as quais o ser-aí efetivamente existe.

Nesse sentido, Casanova afirma, consoantemente ao pensamento heideggeriano, que a absorção do homem pela vontade de poder e pela maquinação contemporânea, transformando a humanidade em fundo de reserva disponível à dinâmica da técnica, negou a expectativa nietzschiana de um além do homem emancipado, anunciado por Nietzsche como possibilidade de conquista da verdadeira humanidade e de elevação do ser humano como senhor da Terra. Ao contrário, o além do homem, de acordo com a interpretação heideggeriana, converte-se em mero instrumento da vontade de poder, com sua existencialidade proscrita na vigência absoluta do impessoal. O ser-aí, portanto, destituído da essencialidade de seu poder ser, encontra-se sob a ameaça de sua total supressão, a iminência da elisão de suas possibilidades no triunfo absoluto da impessoalidade (2006, p. 134-161).

A partir dessas considerações, Casanova lança nova questão: o que, afinal, leva o homem ao domínio da vontade de poder ou, em outras palavras, a transfiguração de sua existência para o plano supremo da impessoalidade? (2006, p. 178). Para essa pergunta, o autor oferece estimulante resposta:

[...] o impessoal acirra cada vez mais o seu domínio irrestrito porque nos desonera da responsabilidade pelo nosso poder ser mais próprio, porque nos assegura de nossas pretensas determinações quididativas e nos afasta do espectro angustiante tanto de nossa nulidade quanto de nossa finitude (mortalidade) radical, tornando possível a inserção sem travas no devir das ocupações medianas. (2006, p. 182).

Casanova vincula, então, a expansão contemporânea da impessoalidade à busca humana por uma estabilidade que nos afaste da angústia inerente à responsabilidade pelo poder ser que inevitavelmente acompanha o ser-aí, reafirmando, na sequência, a relação entre a supremacia fática irrestrita do impessoal e a considerável redução – no limite, anulação – do ser-aí como projeto. No seio dessa relação, interessa-nos sobremaneira a pertinente declaração de que a absorção do ente humano na maquinação impessoal contemporânea afasta-nos de nossa originária condição angustiante de ser para a morte. Neste ponto, emerge e elisão, na expansão da impessoalidade sob a vigência da técnica moderna, da tríplice articulação entre poder ser, angústia e ser para a morte, aspectos essenciais do modo de ser do ente humano em sua existência, o ser-aí. Conforme registramos no primeiro capítulo deste trabalho, no fenômeno da angústia o ser-aí é projetado para sua singularidade, suspenso ante o nada na destituição da significância de seus suportes fáticos, colocado em face da estranheza diante dos entes em sua totalidade. A angústia é a abertura para nosso poder ser mais próprio, confrontando-nos com nossa possibilidade extrema, impossibilidade de todas as outras possibilidades, a finitude do ser para a morte. Dito sumariamente, a angústia, descerrando o poder ser e o ser para a morte, suspende fenomenicamente a impessoalidade do mundo fático, ou melhor, confere relevo ao poder ser em detrimento da facticidade impessoal. Assim, na configuração ôntica contemporânea, com a larga estabilidade fática assentada na impessoalidade da mobilização técnica, dissipam-se e neutralizam-se a angústia, o poder ser e o ser para a morte.

Antes, porém, de prosseguirmos com essas considerações, é conveniente alinhavar a confluência da interpretação oferecida por Marco Antonio Casanova sobre o acirramento do impessoal na atualidade com alguns apontamentos realizados no segundo capítulo deste texto, procedimento este que nos oferecerá mais elementos para a análise da situação do ser-aí e do ser para a morte no âmbito da contemporaneidade. Para sermos mais diretos, estamos nos referindo precisamente à tese heideggeriana, exposta em seu texto A superação da metafísica (2008, p. 61-86), de que, sob o planejamento e o cálculo da maquinação moderna, manifesta-se uma espécie de instinto de super-homem – perspectiva bastante diferente da emancipação do além do homem proposta por Nietzsche –, cuja racionalidade plenamente submetida à pulsão de calcular equivale à disposição instintual dos animais em responder com comportamentos irrefletidos às solicitações de seu meio ambiente. Nesse contexto, para Heidegger, a

razão humana equipara-se à pulsão animal, convergindo super-humanidade e subumanidade na dominação de um mundo sem mundo.

3.2 Do homem formador de mundo ao mundo sem mundo da técnica moderna