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Entes humanos fabricados: a elisão do ser para a morte

Capítulo 3 – O ser para a morte sob a primazia da técnica moderna

3.5 Entes humanos fabricados: a elisão do ser para a morte

As apreciações contidas neste capítulo desenvolveram-se sob a perspectiva do confronto entre o ser-aí da analítica existencial e a configuração epocal da modernidade, perscrutando em que medida a primazia da técnica na realidade moderna afeta o ser para a morte. Com esse propósito – e sempre procurando nos situarmos no horizonte reflexivo heideggeriano –, explanamos sobre a notável dilatação da impessoalidade na era atual, sobre a convergência entre super-humanidade e subumanidade em um mundo sem mundo e, por fim, sobre a iminente fabricação de entes supostamente humanos na contemporaneidade. Estes não são aspectos paralelos da realização cibernética, tampouco elementos do real linearmente dispostos em uma sequência de causalidade. São, isto sim, essencialmente o mesmo: a manifestação do completo esquecimento do ser na metafísica moderna. Nesse destino histórico do ser, converte-se o ser humano em ente simplesmente dado e subsistente.

Um ente simplesmente dado e subsistente é evidentemente refratário ao poder ser, à angústia e à existencialidade, enfim, ao ser-aí como modo de ser especificamente humano, ao ente que possui uma compreensão preliminar do ser e que escolhe entre suas possibilidades inscritas em sua esfera de facticidade. Dissolve-se a distinção existencial entre autenticidade e inautenticidade, entre ser-aí angustiado e ser-aí declinado, proscreve-se a formação de mundo pelo ente humano em sua singularidade. Sob esse prisma, então, um ente humano simplesmente dado e subsistente encontra-se destituído de suas relações singulares com o ser, de sua existência enquanto projeto. Em termos incisivos, um ente humano simplesmente dado e subsistente não é propriamente humano, mas tão somente um ente simplesmente dado e subsistente. Dessa forma, o ser humano não existe; o ser para a morte não existe.

Assim, elegemos o tema da fabricação de humanos para finalizar essa exposição por o considerarmos como a mais densa e emblemática revelação desta

tendência contemporânea, conferindo plena visibilidade à neutralização do ser humano sob o primado da essência da técnica moderna. Sob o prisma filosófico heideggeriano, a produção tecnológica e industrial de entes supostamente humanos consiste na efetivação suprema de uma realidade em que o homem, nivelado aos entes em geral e transformado em mecanismo no dispositivo produtor da técnica, é maquinalmente requisitado como matéria-prima, fonte de energia e objeto de consumo. Na fabricação de entes pretensamente humanos – pretensamente pois, se fabricados, não são propriamente humanos –, removem-se os rastros da diferença ontológica e encobre-se totalmente a relação do ser humano com o ser.

Em nosso segundo capítulo, quando procurávamos acompanhar as digressões heidegerianas pelo interior da técnica moderna, apresentamos o comentário exemplificativo do filósofo acerca do rio Reno, tecido em seu texto A essência da técnica (2008, p. 20). Deparamo-nos, então, não mais com o rio seguindo seu curso natural, o rio revelado na intensidade da linguagem poética, mas sim com um objeto integrado aos dispositivos de geração de energia elétrica, com a paisagem artificialmente produzida pelo pensamento calculador na dinâmica da indústria do lazer, das férias e do turismo. Enfim, não se revela mais o rio em sua paisagem. O mesmo podemos dizer acerca do ser humano. Subtraída sua exsitencialidade em sua subversão em um ente artificialmente produzido, não encontramos mais o ente lançado em suas possibilidades, suspenso no pertencimento recíproco entre nada a ser, aberto em suas projeções e exposto à impossibilidade de todas as suas possibilidades: a morte. Enfim, não se revela mais o ser humano em suas relações com o ser, seu ser para a morte.

Sabemos, porém, que Heidegger, na segunda fase de seu itinerário filosófico, não mais investiga o ser a partir do ente que se pergunta pelo ser, não mais pensa o ser humano especialmente sob o ponto de vista do ser-aí singularizado, priorizando, agora, a busca da verdade do ser pelo reinício de um pensamento meditativo, além da metafísica, da ciência e da lógica. Nesse pensamento que se pretende além do cálculo imanente à supremacia da essência da técnica moderna, projeta-se o ser humano como pastor do ser, em sua relação de pertencimento ao ser. Dessa forma, como se revela essa essência humana pensada por Heidegger? Em que medida reaparece, com ela, o tema da mortalidade?

A pertinência dessas questões, assegurada pelo sentido da inflexão de pensamento da viragem heideggeriana, exprime-se inclusive sob o ponto de vista da

linguagem desde então assumida pelo filósofo, linguagem que se postula no movimento de superação da metafísica e com a qual se expande o espaço concedido a alguns termos nos escritos do filósofo, tanto quanto se restringem as menções a expressões antes consagradas em sua analítica existencial. No que tange diretamente aos questionamentos anunciados, torna-se útil a reprodução deste excerto original de Das Ding (A coisa), ensaio confeccionado pelo filósofo no ano de 1950:

Die Sterblichen sind die Menschen. Sie heißen die Sterblichen, weil sie sterben können. Sterben heißt: den Tod als Tod vermögen.Nur der Mensch stirbt. Das Tier verendet. Es hat den Tod als Tod weder vor sich noch hinter sich. Der Tod ist der Schrein des Nichts, dessen nämlich, was in aller Hinsicht niemals etwas bloß Seiendes ist, was aber gleichwohl west, sogar als das Geheimnis des Seins selbst. Der Tod birgt als der Schrein des Nichts das Wesende des Seins in sich. Der Tod ist als der Schrein des Nichts das Gebirg des Seins. Die Sterblichen nennen wir jetzt die Sterblichen - nicht, weil ihr irdisches Leben endet, sondern weil sie den Tod als Tod vermögen. Die Sterblichen sind, die sie sind, als die Sterblichen, wesend im Gebirg des Seins. Sie sind das wesende Verhältnis zum Sein als Sein52. (2000, p. 165).

Chamamos a atenção para as palavras Sterblichen e Menschen, articuladas na primeira frase do texto citado. Sterblichen, mortais, e não Sein zum Tode, ser para a morte; Menschen, homens, e não Dasein, ser-aí. Nos escritos da segunda fase de Heidegger alusivos à temática da morte, torna-se raro o uso da expressão Sein zum Tode e frequente a utilização de Sterblichen. Do mesmo modo, Dasein já não é o termo preferencial para referir-se ao ente humano, sendo agora recorrente o emprego de Mensch(en).

Essas substituições não se explicam por uma decisão estilística do filósofo; consideradas no contexto da viragem, Sterblichen e Mensch(en) nos transferem para uma dimensão além do Sein zum Tode e do Dasein, para uma dimensão além do ser-aí singularizado como ser para a morte. No pensamento do ser, die Sterblichen sind die Menschen, os mortais são os homens. E se o ser-aí, como ser para a morte, revela-se na

52 Na tradução de Emmanuel Carneiro Leão, lemos: “Os mortais são os homens. São assim chamados

porque podem morrer. Morrer significa: saber a morte, como morte. Somente o homem morre. O animal finda. Pois não tem a morte nem diante de si, nem atrás de si. A morte é o escrínio do Nada, do que nunca, em nível algum, é algo que simplesmente é e está sendo. Ao contrário, o Nada está vigindo e em vigor, como o próprio ser. Escrínio do Nada, a morte é o resguardo do ser. Chamamos aqui de mortais os mortais – não por chegarem ao fim e finarem sua vida na terra, mas porque eles sabem a morte, como morte. Os mortais são mortais por serem e vingarem no resguardo do ser. São a referência vigente ao ser, como ser.” (HEIDEGGER, 2008, p. 156).

nulidade de seu fundamento em sua remissão à reciprocidade originária entre ser e nada, os mortais que são os homens são a referência vigente ao ser e ao nada e, veremos, a essência humana em sua correspondência ao ser em sua verdade e em sua não verdade.

Mas, afinal, o que significa dizer que os mortais são os homens? Que sentido recebe a noção de essência humana na segunda fase do itinerário heideggeriano? Persiste, com a enunciação de que os mortais são os homens, o nível de relevância temática da morte no pensamento de Heidegger? Tais questões estão contempladas no próximo capítulo deste trabalho.