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2.6 O método científico e suas manifestações na formação do Historiador

2.6.4 A noção de temporalidade e a “tomada de consciência”

Bloch (2001, p. 55) coloca: “História, ciência dos homens”, mas acrescenta: “dos homens no tempo”. Na realidade, esse autor considera que nenhuma ciência pode se abstrair do tempo, ou seja, nenhuma ciência é atemporal. Entretanto, para muitas dessas ciências o tempo representa apenas uma medida. Mas na História, “o tempo é realidade concreta e viva, é o próprio plasma em que se engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade” (BLOCH, 2001, p. 55). Bloch exemplifica dizendo que o tempo, para a atomística, é dado fundamental, para geologia o tempo é dado histórico, para a História é um continuum e perpétua mudança. É da antítese desses dois atributos temporais da História que provêm os problemas da pesquisa histórica (BLOCH, 2001, p. 55).

Segundo Le Goff, no prefácio da obra de Bloch (2001, p. 135), o tempo da História oscila entre o que Fernand Braudel vai chamar a ‘longa duração’, e essa cristalização, que Bloch chama de momento, em vez de acontecimento, e a mediadora é a “tomada de consciência”:

O historiador nunca sai do seu tempo, mas por uma oscilação necessária, que o debate sobre as origens já nos deu a vista, ele considera ora as grandes ondas de fenômenos adaptados que atravessam, longitudinalmente, a duração, ora no momento humano em que essas correntes se apertam no poderoso nó das consciências.

Não é possível progredir para uma unificação da medida do tempo, por mais que se tente, pois o tempo da História escapa a uniformidade:

O tempo humano (...) permanecerá sempre rebelde tanto à implacável uniformidade como ao seccionamento rígido do tempo do relógio. Faltam- lhe medidas adequadas à variabilidade de seu ritmo e que, com limites, aceitem freqüentemente, porque a realidade assim o quer, apenas zonas marginais. É apenas ao preço dessa plasticidade que a história pode esperar adaptar, segundo as palavras de Bergson, suas classificações às “próprias linhas do real”: o que é, propriamente, a finalidade última de toda a ciência. (BLOCH, 2001, p. 153).

Uma das problemáticas entre os historiadores, e isso se generalizou para o senso comum, é o que Bloch chama de idolatria das origens. Ou seja, criou-se uma crença de que o começo explica. Por causa dessa crença, as ciências humanas muito se atrasaram em relação às ciências da natureza, e uma das causas, segundo Bloch, foi o evolucionismo biológico do século XIX, que parece supor um afastamento das origens. Por isso, ele alerta que filiação, origem não pode ser sinônimo de explicação, isso é uma ilusão dos antigos etimologistas. Com suas palavras, Marc Bloch diz:

Em suma, nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo do seu momento. Isso é verdade para todas as etapas da evolução. Tanto daquela em que vivemos como das outras. O provérbio árabe disse antes de nós: “Os homens parecem mais com sua época do que com

seus pais”. Por não ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do

passado às vezes caiu em descrédito. (2001, p. 60).

Já alguns devotos do imediato concebem o tempo presente como algo quase que totalmente do passado. Segundo Bloch, o presente, no infinito da duração, é algo que foge sem parar, algo que mal nasce e já morre (2001, p. 60). Qualquer ciência que pretenda ser ciência do presente se transforma abruptamente em ciência do passado. Agora, quando é empregada de maneira mais frouxa, pode- se dizer que “presente” é igual a passado recente. Mas isso ainda traz sérias dificuldades, pois a noção de proximidade exige precisão. Diante disso, vêm os desdobramentos em debates, em que se tenta definir o que é contemporaneidade. Comumente, a partir do século XIX, só o que era longínquo em medida de tempo era estudo da História, para os positivistas sobretudo.

Outros cientistas pensam ser perfeitamente normal estudar o presente humano, pois é este que está vivo. Somente sociólogos, economistas, publicistas e

jornalistas podem explorar o vivo. Os historiadores, para muitos que partilham dessa idéia, estudam o que já é morto, o que já está mofado. Mas nesse ínterim, coloca Bloch, as revoluções técnicas, para não dizer industriais e tecnológicas, geraram uma ampliação desmedida no intervalo de tempo psicológico entre as gerações (2001, p. 62). O exemplo que Bloch coloca é que o homem da era da eletricidade e do avião se sente muito, mas muito distante de seus ancestrais. Assim, esses mesmos homens concluíram que a ancestralidade, o passado distante, nada determinou em suas contemporaneidades. Na prática, essa idéia funciona da seguinte maneira: para “compreender os grandes problemas humanos do momento e tentar resolvê-los, de nada serve ter analisado seus antecedentes” (2001, p. 63).

Mas segundo Bloch, essa idéia de auto-inteligibilidade assim reconhecida no presente apóia-se em declarações, postulados. Uma é a crença de que nenhuma instituição um pouco antiga, nenhuma maneira de se conduzir tradicionalmente teria escapado às revoluções da modernidade. Mas isso é um erro, como pontua Bloch (2001, p. 63):

Ao se prolongar aqui o erro sobre a causa, como acontece quase necessariamente na ausência de terapêutica, a ignorância do passado não se limita a prejudicar a compreensão do presente; compromete, no presente, a própria ação.

E o que falar das tradições orais tão presentes e que ligam gerações? E as tradições escritas, que ligam pensamentos em transferência entre gerações que muito se afastam em séculos? Trata-se de um erro. No campo epistemológico, o próprio Bachelard coloca que o olhar para os conhecimentos do passado deve ser um olhar atento a erros, para que no presente a ciência progrida como conjunto de erros retificados. Em certa medida de intersecção, Bloch (2001, p. 65) coloca:

Entre as coisas passadas, enfim, aquelas mesmas – crenças desaparecidas sem deixar o menor traço, formas sociais abortadas, técnicas mortas – que, parece, deixaram de comandar o presente, vamos considerá-las, por esse motivo, inúteis a sua compreensão? Seria esquecer que não existe conhecimento verdadeiro sem uma certa escala de comparação. Sob a condição, é verdade, de que a aproximação diga a respeito a realidades ao mesmo tempo diversas e não obstante aparentadas.

Do mesmo modo, enfatiza Bloch que também de nada vale estudar o passado se nada se sabe do presente. Ou seja, o historiador também deve se interessar pelo vivo, aliás, diz Bloch (2001, p. 66) a apreensão do vivo é justamente

“a qualidade mestra do historiador”. Um erudito que menospreza a sua realidade e não se direciona aos acontecimentos ao seu redor, às pessoas, às coisas, esse nada tem de historiador. Em outras palavras, o historiador tem de ser um perito do seu presente, justamente porque o conhecimento do presente é muito importante para compreensão do passado, e não apenas o inverso. Nisso, a postura do historiador nem sempre será a mesma do que a ordem dos fatos conforme a linha do tempo tradicional. Começar de traz para frente, buscando as origens ou as causas dos fenômenos, é sempre correr o risco de buscar explicações pueris. Muitas vezes, faz-se necessário adotar o que Bloch chama de método regressivo, começar do mais conhecido, para o menos conhecido, independente de datas. Um método prudentemente regressivo é um dos legados de Bloch, embora tal herança esteja sendo mal explorada segundo Le Goff coloca no prefácio da obra (BLOCH, 2001, p. 25).

É desse modo que o historiador poderá pegar sua presa, “a mudança, entregar-se com eficiência ao comparativismo histórico e empreender a única história verdadeira... a história universal” (2001, p. 25). Le Goff diz que prefere, pegando uma expressão de Foucault, chamar de história geral. Daí, as três exortações de Bloch, segundo pontua Le Goff, algumas já mencionadas acima.

A primeira exortação é quanto à ignorância do passado que limita conhecimento do presente e compromete a própria ação do presente. A segunda é que o ser humano também muda, não só em seu espírito, mas até os mecanismos de seu corpo, é daí que vem a legitimidade de se estudar as mentalidades, como objeto da história, como também o estudo da história do corpo. No entanto, Bloch (2001, p. 65) deixa bem claro que: “Decerto é preciso, todavia, que exista na natureza humana e nas sociedades humanas um fundo permanente, sem o qual os próprios nomes ‘homem’ e ‘sociedade’ nada significariam”.

E a terceira exortação é que essa história ampla, profunda, longa, aberta e comparativa não pode ser realizada por um historiador isolado: “A vida é muito breve” (2001, p. 26). Ninguém dá conta, mesmo sendo especialista, de compreender tudo, mesmo em seu próprio campo de estudos. O ofício de historiador se exerce numa combinação do trabalho individual e do trabalho por equipes. Ou seja, o historiador precisará se contextualizar à sua comunidade científica, estar à disposição dela, e tê-la como referencia, seja para criticá-la ou receber a crítica, como afirma Bloch (2001, p. 68):

A vida é muito breve, os conhecimentos a adquirir muito longos para permitir, até para o mais belo gênio, uma experiência total da humanidade. O mundo atual terá sempre seus especialistas, como a idade da pedra ou a egiptologia. A ambos pede-se simplesmente para se lembrarem de que as investigações históricas não sofrem de autarquia. Isolado, nenhum deles jamais compreenderá nada senão pela metade, mesmo em seu próprio campo de estudos; e a única história verdadeira, que só pode ser feita através de ajuda mútua, é a história universal.

Uma ciência não se define somente por seu objeto em relação à temporalidade, mas também pelos seus métodos aplicados, pela natureza de seus métodos. Agora faz-se necessário discorrer sobre o método propriamente dito em História, no que tange suas especificidades.

2.7 O método crítico para a História: o valor da análise dos testemunhos para a