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O Concílio de Trento (1545-1563), episódio central no movimento da Reforma Católica, tem sido considerado um marco de mudança no âmbito disciplinar da arquitectura. Embora a orientação fundamental do concílio tenha visado as questões dogmáticas da fé e os aspectos disciplinares do clero, também se consideraram as matérias relacionadas com a arte ao serviço do culto. Nomeadamente, em resposta à polémica desencadeada pela crítica protestante, o uso imagem surgiu reforçado de Trento como instrumento de persuasão e exegese da fé apostólica romana. Tal debate motivou o bem conhecido decreto tridentino que veio a originar, posteriormente, uma série de textos sobre o tema em Itália e na Flandres.

Ao contrário do que sucedeu com as artes figurativas, a literatura artística sobre a arquitectura religiosa não teve, porém, particular desenvolvimento. O que em parte se relaciona com a inexistência de questões polémicas que obrigassem ao debate e a fundamentação adequada por parte da Igreja Católica. Pelo que as instruções conciliares a respeito da arquitectura foram essencialmente genéricas, limitando-se, por exemplo, a recomendar a existência de baptistérios nas igrejas paroquiais, o cuidado particular com o altar-mor e a dignidade na exposição da Sagrada Eucaristia99.

Não obstante a falta de teorização, o período pós-conciliar caracterizou- se por uma reflexão de fundo, operada no meio eclesiástico, que transferiu o enfoque essencial da arquitectura para a «radicalização» do seu sentido

99 Scotti 1972, 57.

religioso100. Ou seja, a arquitectura passou a estar ao serviço do culto e a ser pensada para a participação devota dos fiéis, orientada por um código unívoco de leitura que determinou os repertórios construtivos.

A afirmação da posição doutrinal da Igreja, amadurecida ao longo do período tridentino, deu fôlego a um conjunto de novas exigências litúrgicas e funcionais que tiveram impacte directo na arquitectura eclesial. Assim, a valorização do culto eucarístico e da prédica determinou a preocupação fundamental com a visibilidade do altar-mor e a unidade do espaço interno da igreja. Tal preocupação conduziu não só a alterações significativas nos edifícios existentes – como a eliminação dos coros baixos e da tumulária nas naves e a introdução dos púlpitos –, como à pesquisa das mais adequadas soluções espaciais para as igrejas que se faziam de novo.

Este processo compreendeu, igualmente, a redefinição dos espaços litúrgicos, dos percursos, de recíprocas relações hierárquicas, com fim ao decoro do culto e à elevação moral dos fiéis. Como salienta Stefano della Torre, a reflexão sobre estas matérias efectuou-se, sobretudo, no período pós-conciliar e foi sistematizada e fixada, em particular, pelos instrumentos legislativos resultantes dos sucessivos concílios provinciais, sínodos diocesanos e visitas pastorais realizados nos países católicos101. Inspirados nos princípios tridentinos de decoro do ritual litúrgico e de austeridade moral, as arquidioceses e os bispados foram responsáveis pela elaboração de normas particulares à arquitectura, que visaram a reforma e uniformização das igrejas da sua jurisdição.

Tratou-se, pois, de uma alteração fundamental no domínio das responsabilidades do clero secular, que devia agora ter em maior atenção os edifícios do culto. Tal viria a concretizar-se através da realização regular (tanto quanto possível) das visitações pastorais, em parte com vista à fiscalização do

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Ceballos 1980, 635.

estado de conservação das construções e à determinação dos programas de obras a serem realizados. Uma política de controlo, desde muito cedo, praticada pelas ordens religiosas, que exercitavam uma forte influência sobre as imposições arquitectónicas das suas igrejas, e que agora se alargava (ou se pretendia alargar) à esfera secular102.

Ao nível formal, a expressão austera e racional, frequentemente associada à arquitectura da Reforma e atribuída ao espírito tridentino, teve também na sua origem razões pragmáticas. Razões condicionadas por uma intervenção reformadora, dirigida em diversas frentes e pelo enorme esforço económico exigido pela renovação dos edifícios. A par desta «tendência pauperística e desadornada», não deixaram de se realizar encomendas no sentido da magnificência. Aparentemente fora de tempo, a grandeza e sumptuosidade de uma obra ao serviço do culto divino emparelhava, na verdade, com o ideal tridentino da Igreja Triunfante, na mesma medida que a vertente modesta exaltava o da Igreja Militante. Sucedeu, por vezes, conviverem no mesmo edifício as duas modalidades expressivas, estabelecendo leituras hierarquizadas das diferentes partes das igrejas. Sobretudo, além do regresso a uma singeleza consentânea com os valores originais do Cristianismo, o que efectivamente se procurou foi o controlo de abusos e do desvio dos réditos destinados à gestão das dioceses e à prática da caridade para empresas artísticas promovidas pelo alto-clero, com vista à glorificação do seu estatuto pessoal, mais do que em benefício do culto e do ornato das suas igrejas103.

A arquitectura da Reforma Católica – especialmente no período pós- tridentino – constitui um campo plural de estudo, pela variedade de tendências e de soluções que compreendeu. Conviveram, em paralelo, o classicismo maduro que, como explicou Manfredo Tafuri, ensaiou o objecto arquitectónico como discurso autónomo, válido em si mesmo e independente do sistema de

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Ackerman 1977b, 151-52.

significados; o classicismo tridentino, que adoptou o sistema clássico e cristianizou as ordens; e o sintetismo, corrente identificada e valorizada por Sandro Benedetti, que se caracterizou por uma arquitectura marcada pela tal austeridade funcional e racional e que foi regulamentada para viabilizar a concretização dos planos, ou por se adequar à função de determinados edifícios ou à ideologia de pobreza das instituições, como sucedeu no caso dos colégios da Companhia de Jesus e dos conventos dos Carmelitas Descalços.

Neste quadro, incluem-se ainda outras realizações ligadas às tradições construtivas vernaculares, fundamentadas no saber empírico consolidado pela prática dos mestres construtores locais. Esta expressão, com pouca ou nenhuma relação com o partido do classicismo, teve particular relevância no espaço português, como demonstrou George Kubler a partir da introdução do conceito operativo de «estilo chão». Como sintetizou o mesmo autor:

«tanto o Maneirismo como a Arte Tridentina significam a inclusão de aspectos opostos: ornamentação excessiva e simplicidade austera; excesso emocional e disciplina rigorosa; uniformidade e variedade; liberdade e obediência – mas as realidades da tradição regional e as necessidades locais são obscurecidas pela rigidez classificante destas noções de estilo, que procuram transcender simultaneamente o regionalismo e as exigências de cada momento histórico»104.

Neste sentido, e sobretudo para o período em questão, importa atender não só às questões formais e estéticas propostas por artistas e arquitectos, como às razões concretas e funcionais a que os seus projectos procuraram dar resposta, ao debate sobre o sentido da arquitectura eclesial e o papel dos comitentes na discussão do programa105. A reorientação da historiografia segundo esta metodologia interpretativa, proposta e defendida por alguns dos mais conceituados historiadores da arquitectura, é fundamental para

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Kubler 1988, 59.

caracterizar e compreender a realidade complexa do período pós-Trento. E só a partir deste denominador comum se podem enquadrar e valorizar as diversas manifestações e soluções arquitectónicas. Como explica Della Torre, o enfoque deve centrar-se, pois, na Reforma Católica, mas «una riforma cattolica opera di una pluralità di soggeti e tendenze, e non riducibile all’opera e all’influenza dei soli indiscussi protagonisti»106.

Um excelente exemplo desta diversidade encontra-se na pesquisa do tipo ideal de planta de igreja desenvolvida na segunda metade do século XVI. A sua concepção resultou do debate coevo sobre as necessidades da liturgia, mas o seu protótipo encontra-se em propostas planimétricas ensaiadas desde o final do século XV. Surgiram, em simultâneo, modelos que cristalizaram essa solução agora perfeitamente adequada ao culto restaurado. Embora de modo menos sistemático e sem efeitos tão plurais, além dos planos das igrejas propriamente ditas, foram também considerados os seus anexos, em que a sacristia se incluiu, desejavelmente integrados de forma funcional e clara.

Um exemplo notável do Quattrocento no tocante à articulação dos espaços, que ilustra singularmente o início da renovação litúrgica no plano das igrejas e se tornou arquétipo desta solução ideal, foi há alguns anos atrás identificado por James Ackerman. Trata-se da planta de uma igreja de Florença, já desaparecida, atribuída a Giuliano da Sangallo e datável de 1480-90, caracterizada por nave única ladeada por capelas cripto-colaterais, cujos passadiços desembocam nas sacristias que flanqueiam a capela-mor. Este dispositivo foi, como se sabe, muito seguido nas igrejas do final do século XVI, permitindo o acesso às capelas da nave directamente da sacristia sem distrair a assembleia dos fiéis da celebração principal107. Por outro lado, a discrição das entradas e saídas da sacristia assegurava maior dignidade ao culto, sem vulgarizar a preparação e encerramento das cerimónias.

106

Della Torre 1997a, 420.

Também em Portugal se chegou ao espaço unificado, mas por outra via, indo buscar os referentes às realizações do período tardo-medieval e joanino. Em particular às igrejas de São Francisco de Évora, de Vilar de Frades, do colégio da Graça de Coimbra ou do convento de São Gonçalo em Amarante. Experiências espaciais que influenciaram, anos depois, os projectos das primeiras igrejas jesuítas, e de outras (re)fundações conventuais. Todavia, raramente os planos concretizaram a solução ideal que dispunha dos corredores dos lados da ábside para as sacristias ou como acesso a uma retro-sacristia, apresentando, por isso, casos excepcionais os das igrejas do Espírito Santo ou de Santo Antão-o-Novo e do convento de Jesus em Lisboa. Por outro lado, o mesmo tipo de planta foi, simultaneamente, usado em edifícios do classicismo ou do designado «estilo chão». Opostos nos partidos formais, o seu sentido original e o seu significado cultural são produto da mesma reflexão doutrinal sobre a arquitectura eclesial por parte dos encomendantes e dos agentes da Igreja.

Se esse debate foi mais fértil no seio das ordens religiosas – algumas destas aliás tendo desempenhado um importante protagonismo no impulso na Reforma da Igreja – o seu eco propagou-se nas altas instâncias do clero secular, por via dos seus representantes mais esclarecidos e cultos. A nomeação de antístites e de arcebispos tornou-se mais selectiva, escolhidos entre aqueles que tinham melhor formação e preparação para ocupar os cargos108. Os mais comprometidos com a Reforma empenharam-se, pois, na introdução dos decretos tridentinos, na reestruturação das dioceses, no controlo pastoral do clero e das populações e também no melhoramento das condições do culto nas igrejas. Foram diversas as frentes de acção, e daquela que interessa a este estudo chegou-nos o testemunho da reflexão procedida por via dos instrumentos legislativos publicados para o governo dos bispados, onde se forneceram instruções quanto à arquitectura e ornamentação dos espaços de devoção.

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