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A sacristia na Instructionum Fabricae de Carlo Borromeo: a exemplaridade do caso do arcebispado de Milão

No século XVI, a sacristia é uma área com tradição reconhecida na história da Igreja. Carlo Borromeo dedicou-lhe um capítulo inteiro (XXVIII) da Instructionum Fabricae, et Supellectilis Ecclesiasticae. Qualquer igreja, fosse de que tipo fosse, devia dispor de uma sacristia, anexo cuja importância fundamenta com uma referência às origens e tradição da arquitectura cristã: «Así pues en toda iglesia de cualquier género constrúyase una sacristía, que los antiguos alguna vez llaman cámara e igualmente secretario, lugar naturalmente donde se ocultaba el sacro ajuar»138. A sacristia deveria ser ampla e proporcional à igreja que servia, considerando o estatuto desta – catedral, colegiada ou paróquia –, o número de ministros e a dimensão do tesouro.

Em igrejas mais ilustres e frequentadas era justificável a construção de duas sacristias: uma destinada ao capítulo e ornamentos do coro, e a outra reservada aos capelães e demais ministros, além dos restantes paramentos e alfaias. Uma divisão funcional que, de resto, remontava ao século V, com a sua localização preferencial próxima da capela-mor. O que não é esquecido por Carlo Borromeo. O arcebispo italiano considerava aconselhável alguma distância entre ambas, de forma a permitir a realização ordenada da procissão do sacerdote e demais ministros da sacristia para o altar «como es de antigua costumbre, con el anuncio del misterio».

O mesmo critério determinava que a entrada da sacristia estivesse voltada «en línea recta no a la capilla mayor (…) sino al lugar público, es decir, al centro de la iglesia». Em igrejas paroquiais e em outras inferiores, a localização da entrada e a distância em relação à capela-mor podiam ajustar-se por questões

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Borromeo 1985 (1577), 77. Para facilitar a leitura, usei a tradução de Bulmaro Reys Coria, publicada pela Universidade Nacional Autónoma de México, baseada na edição dos tratados de arte dirigida por Paola Barocchi (Borromeo 1962). As citações seguintes referem-se ao mesmo capítulo, pp. 77-82.

de comodidade – desvio normativo sempre dependente da autorização do bispo a que aquelas estavam sujeitas. Em qualquer caso, a construção da sacristia devia ser orientada de forma a nunca tapar a iluminação do presbitério.

As páginas seguintes são dedicadas aos aspectos da construção e do provimento da sacristia. É dada importância à questão do controlo de um ambiente seco e ventilado que garantisse a conservação dos ornamentos da igreja guardados no espaço («Del sitio y ventanas de la sacristía»). Nesse sentido, é recomendada a orientação da sala para nascente e sul como a mais favorável para o efeito, na medida em que são os lados que recebem mais luz. Deviam ser rasgadas, pelo menos, duas janelas e, se possível, posicionadas em lados opostos «y sobre todo por el lado derecho y por el izquierdo a fin de que, teniendo por donde salga el aire, su lugar no sea húmedo, ni uliginoso». Também a cobertura abobadada ou artesoada é considerada a melhor para a conservação de um ambiente seco e arejado.

Quanto ao pavimento, Borromeo aconselha o uso da madeira, aplicada de maneira a que não ficasse directamente sobre o piso por razão da humidade. As instruções são, a este respeito, bastante precisas e técnicas:

«Tenga el pavimento no construido con tablas, sino de éste modo: el cual constando por debajo de pequeñas bóvedas, constrúyase todo ampliamente abovedado, algo más alto desde el suelo, donde se puede, a causa de la humedad, para que los indumentos sacros no se pudran o corrompan a causa de la humedad del lugar o del sitio. Para la cual cosa provéase más cautamente que lejos de ahí se aparte la tierra amontonada por fuera junto a la pared, así como las goteras que producen la humedad; además, luego cúbrase el suelo con cascajo y consolídese con ripios y con cal».

A segurança da sacristia é, igualmente, alvo das preocupações do cardeal Borromeo. Para a garantir, era necessário que as janelas fossem protegidas com grades fortes e seguras, ou mesmo grades duplas, e fossem «de obra de vidrio y

de red», como as da igreja. As portas deveriam ser sólidas, providas de fechadura firme, tranca e boa chave. A seguir à porta, sugere a colocação de uma guarda mais leve para impedir a entrada e a vista do interior, que por meio de um sistema de pesos se fecharia por si e onde se podia abrir um janelo gradeado para efeitos de comunicação com quem se dirigisse à sacristia. Na prática, a separação entre a área reservada da sacristia e o espaço público da igreja podia ser intermediado por uma ante-sacristia, solução que teve maior aplicação que o duplo sistema de portas proposto por Borromeo.

Seguem-se, então, as instruções relativas aos elementos individuais que integravam a sala: a imagem sagrada e altar, o oratório, a tábua das orações, o lavabo, e as tipologias de mobiliário. A sacristia, sendo um anexo relacionado com a celebração da liturgia, devia expor em lugar destacado uma imagem sagrada ou mesmo um altar (se a dimensão da sala o permitisse) frente ao qual os sacerdotes se pudessem paramentar: «un altar o mesa o armario que presente la forma de altar, preparado con una cruz, cubierto con candelabros y un mantel; ante el cual los sacerdotes que van a celebrar se vistan con los sacros vestidos». Este critério enfatizava a sacralidade do acto da paramentação, estando subjacente a esta instrução uma chamada de atenção aos celebrantes para a importância dos gestos, que não deviam cair na rotina e no esquecimento. Essa interiorização do papel de representantes de Cristo junto da assembleia dos fiéis requeria, obrigatoriamente, um momento de reflexão e meditação. E é com esse intuito que um outro dispositivo teria de ser considerado nas sacristias – o oratório ou altar. Distinto da peça anterior, o oratório constituiria uma pequena divisão – em lugar decente – dentro da sacristia onde o sacerdote se podia (e devia) recolher interiormente para meditar e orar. O oratório devia considerar um pequeno altar com um crucifixo ou outra imagem santa e um escabelo para se ajoelhar. Se demasiado exígua ou estreita, a sacristia devia, ao menos, considerar um local apropriado para o efeito, onde se colocasse o genuflexório e uma imagem sobre uma peanha. Este espaço teria, no

entanto, de ser coberto com tela ou pano, a fim de salvaguardar o seu carácter reservado. Em qualquer dos casos, teria de existir nesse compartimento uma tábua onde estivessem escritas as orações preparatórias para o sacrifício da missa.

Outra peça-chave da sacristia era o lavabo para a ablução ritual das mãos antes e após o ritual litúrgico. Dada a condição técnica deste elemento, as instruções de Carlo Borromeo são particularmente minuciosas, como em relação a outros de igual requisito, informando os leitores acerca da construção da estrutura de alimentação e escoamento da água. O lavabo devia ser construído em pedra sólida, com uma bacia côncava para receber a água saída do reservatório (aquamanil). O bacio teria um ralo para o escoamento da água direccionada para uma cisterna subterrânea. Borromeo teve em atenção as fábricas de fracos réditos, as quais podiam não suportar os custos da construção de um lavabo. Para estes casos, aconselha pendurar-se na parede um recipiente com uma tampa, de onde a água fluísse de forma suficiente para a ablução, e por baixo uma bacia. Recomenda ainda que o lavabo fosse construído com elegância e integrado (na totalidade ou em parte) num nicho semicircular aberto na parede, de forma a não transtornar a circulação na sacristia. Por fim, uma toalha limpa devia estar disposta num toalheiro («una obra o instrumento torneado») situado na proximidade do lavabo.

Em relação ao mobiliário, Carlo Borromeo distingue cinco tipologias diferentes, que descreve com pormenor, inclusivamente fornecendo as medidas necessárias para a sua concepção adequada. O armário para paramentos e ornamentos seria construído em nogueira e teria dimensões amplas (dois côvados e cinco polegadas de altura, cerca de metro e meio), com gavetas («cajitas movibles») largas e variadas consoante a variedade de cores dos indumentos. É sublinhada a necessidade de se conservarem os paramentos estendidos, bem distribuídos e com ordem. Outros armários, na contiguidade deste, serviriam para arrecadar, de forma simples e cómoda, uns as alfaias do

culto – cálices, pátenas, corporais, purificadores, velas, etc. – e outros as peças para lavar. O número de armários deste género devia ser proporcional ao número de ornamentos e alfaias do culto, sendo que todos deviam ser fechados por batentes «confeccionadas pulida y distintamente, con cerrojos y con llaves igualmente distintas».

A segunda tipologia constituía um sistema de roupeiro, com cabides suspensos em correias com polias onde se expunham ou penduravam os paramentos quando necessário. Seguem-se os armários livreiros «con estructura que armonice con los de más arriba prescritos». Seriam três para ordenar, respectivamente, os livros dos salmos e do canto litúrgico; o tombo com os livros de direito, arquivos e escrituras da igreja (na falta de uma sala de arquivo); e, tratando-se de uma igreja paroquial, os livros de registo de baptizados, confirmações, casados e defuntos, bem como a legislação eclesiástica (decretos pontifícios, éditos episcopais, decretos pastorais do bispo, entre outros). No caso de o número de livros não justificar a existência de armários diferenciados, podia ter-se na sacristia apenas um, desde que compartimentado no interior por secções temáticas. Qualquer um dos armários-livreiro seria devidamente cerrado com fechadura, por motivos de segurança.

Nas sacristias mais insignes, reservava-se um armário distinto para os ornamentos ricos. Teria quatro metros e setenta e seis centímetros de altura (sete côvados) e um metro e trinta e seis centímetros de profundidade (dois côvados), sendo a largura definida de acordo com a proporção do espaço. Dividido em dois níveis, o primeiro (com cerca de um metro e trinta centímetros de altura) receberia gavetas e o segundo, mais estreito, funcionava como guarda-roupa onde se penduravam as vestes sacras. Esta tipologia corresponde ao arquétipo de armário que mobilou, de uma maneira geral, as sacristias italianas, sobretudo a partir do século XVII.

Finalmente, o quinto e último tipo de móvel descrito destinava-se a arrecadar os paramentos dos ministros do coro, estando por isso indicado para

catedrais e colegiadas. Poderiam ser arcas colocadas na sacristia, e, neste caso, deveriam ser construídas e dispostas de maneira a funcionar como bancos (arquibancos) por ocasião das reuniões capitulares, referência que sugere ser a sacristia também um espaço indicado para funcionar como sala do capítulo.

Além da sacristia, poderia haver, sobretudo em igrejas paroquiais e colegiais, uma divisão bem fechada para arrecadar peças de grande dimensão ou de uso não quotidiano, nomeadamente esquifes, os candelabros maiores de ferro, cenotáfios, vasos para os óleos, varas, escadas, vassouras, enxadas, pás, bases de cruzes, utensílios de limpeza, e outros objectos do género. Deste modo se garantia o decoro devido na igreja e na sacristia, deixando-as visivelmente libertas de elementos inapropriados e de qualquer impedimento139.

A Instructionum Fabricae considera, como se viu, capítulos próprios destinados a tipos específicos de igrejas, principalmente os oratórios privados e os conventos femininos, cuja regulamentação carecia de atenção específica que garantisse o controlo apropriado das práticas cultuais em contextos de natureza particular. Nesse sentido, qualquer oratório onde se realizasse o sacrifício da missa, mesmo que pequeno, devia dispor de uma sacristia e para o efeito resume algumas das indicações dadas para as igrejas em geral: «adjunta a la capilla mayor, la cual, donde se puede, mire hacia el mediodia; y sea amplia de acuerdo con la magnitud del oratorio, y provista con el ajuar y las demás cosas que sean necesarias»140.

No respeitante às casas conventuais femininas, Borromeo, restringe a sacristia ao essencial para a preparação do ministro: seria pequena, com um oratório e um altar destinado à paramentação dos sacerdotes, uma vasilha para a ablução das mãos situada numa parede que não confinasse com o mosteiro e

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Capítulo XXIX. «Del lugar donde se guardan las andas y las demás cosas de este género». Borromeo 1985 (1577), 82-83.

140

Capítulo XXX. «Del oratorio, donde alguna vez se debe hacerse el sacrificio de la Misa». Borromeo 1985 (1577), 83-84.

uma armário. «Y además de esto, nada».

O autor define, também, normas para a protecção da clausura:

«En tal edificación cuídese aquello, que cualquier cosa de la obra, ya sea ventana, ya rueda, u otra, no se haga de tal suerte, de donde pueda verse u oírse al monasterio de las monjas. Y por eso, la pila de agua que se coloca en la sacristía exterior para lavarse las manos, no tenga absolutamente algún tubo o canal, por el cual se acarrea o se vierte allá de otra parte. Y no se haga ningún edificio en la parte superior, a donde de algún modo pueda haber entrada para las monjas mismas»141.

No âmbito da Instructionum Fabricae, em termos formais, a sacristia é um dos últimos anexos considerados na análise das igrejas, apenas seguido pelo oratório. Em todo caso, não deixava de constituir uma unidade distinta das anteriores, como a igreja e o mosteiro das monjas, que respeitavam aspectos construtivos e vivências particulares do culto. Nesse sentido, considerando como conjunto os capítulos I a XXIX, o da sacristia ocupa cerca de 7,6% das instruções destinadas às fábricas das igrejas, equivalente, por exemplo, ao capítulo das relíquias ou ao do confessionário, que ocupam na obra sensivelmente o mesmo número de páginas. Muito maior atenção é dada ao baptistério (18%) e às capelas e altares menores (15,4%), em cujos capítulos se escrutinam todos os aspectos e pormenores destas áreas, situadas próximas do topo da hierarquia das partes da arquitectura eclesial. Se se considerar que o culto das relíquias e dos santos, bem como as matérias da confissão resultaram de preocupações expressas no Concílio de Trento, a importância dada por Carlo Borromeo à sacristia a par destas questões deve ser lida não só a partir da associação do espaço ao ritual litúrgico e à garantia do decoro do culto, como às origens primitivas do anexo e à tradição da arquitectura eclesial cristã.

141 Borromeo 1985 (1577), 89-90.

A sacristia é, na verdade, uma divisão cuja origem recua à Antiguidade Tardia: as basílicas cristãs dispunham de uma sala, designada secretarium, destinada a funções de audiência do bispo ou de preparação dos actos litúrgicos142. Inicialmente, localizavam-se no nártex das basílicas e só partir do século V se aproximam da área da cabeceira das igrejas. São Paulino de Nola (†431), numa carta dirigida a Severo onde descreve a reedificação da Basílica de São Félix em Itália (401-403), menciona dois secretaria adjacentes à ábside, com funções distintas: um servia a preparação do ofício divino, e outro a guarda dos livros litúrgicos143 – Salmos, Evangelhos, Epístolas e Missal. São Paulino alude ainda a um outro espaço ligado ao secretarium – o salutatorium, onde os fiéis podiam fazer ouvir as suas súplicas ao bispo.

Esta é a primeira referência à localização da sacristia próxima do altar, como conviria à liturgia cristã, mais do que no nártex. A transferência do secretarium para a área da abside sacralizou o espaço e conferiu-lhe a gravidade ritual da abertura e encerramento das celebrações litúrgicas. No século seguinte, o secretarium passou a integrar um dos momentos da liturgia da missa papal, sendo o espaço onde o papa se paramentava com as vestes trazidas de Latrão antes de seguir em cortejo, pela nave, para o altar da celebração144.

Ao referir-se aos «antigos» e às designações primitivas de camara e secretarium, Borromeo evoca esta tradição recuperada pela arqueologia cristã empreendida no seu tempo. Desta forma, fundamenta a importância simbólica da sacristia que reside por trás da dimensão funcional do espaço que mais o ocupa.

As Instruções de Borromeo foram, um ano depois, resumidas para integrar o Regimento dos Visitadores Apostólicos, definido no quinto sínodo

142 Zocca 1949, 1601. 143 Righetti 1955, I 442. 144 Coelho 1926-1930, II 72-73.

diocesano de Milão realizado em 1578145. Com isso se garantia que os oficiais das visitações tomavam em atenção os principais aspectos a registar na inspecção das igrejas, não só materiais como relativos ao cumprimento do ritual particular ao espaço. Neste campo, a sacristia teve especial relevo, listando-se os elementos que devia conter: um armário ou roupeiro; os ornamentos, alfaias e utensílios deviam cumprir com as formas e medidas prescritas no segundo livro da Instructionum fabricae; o oratório em lugar recolhido para o recolhimento do sacerdote e com respectivas tábuas de orações; as folhas com as orações da paramentação; uma tábua na parede com os gastos das igrejas; o livro de registo das missas; uma guarda antes da porta principal com fecho «automático» e janelo gradeado. Curiosamente, não se fala no lavabo, prescrevendo-se apenas que houvesse uma jarra com uma toalha pendurada para a lavagem das mãos antes e depois da missa. A norma já de si bastante pragmática é reduzida e simplificada aos elementos considerados fundamentais, contornando-se a minúcia e a descrição exaustiva da Instructionum com a referência à obra, para a qual se remetia em caso de necessidade.

Em nenhum caso, a Instructionum Fabricae considera a propósito da sacristia quaisquer questões formais ou estéticas, como sejam as relativas à planimetria, proporções ou partido decorativo. As recomendações limitam-se aos aspectos essenciais e úteis para orientação dos bispos e oficiais nas visitações pastorais das dioceses e das próprias fábricas paroquias. Os problemas associados à materialização do projecto, à forma e ao plano, à disposição e organização do espaço e à sua decoração eram deixados ao critério dos mestres- de-obras e oficiais mecânicos e, quando financeiramente possível, aos arquitectos e artistas contratados para as empresas de maior alcance artístico. Naturalmente, sempre sob a orientação dos encomendantes e/ou dos responsáveis das fábricas, devidamente informados dos aspectos funcionais explanados no texto do arcebispo de Milão, e mesmo até da dimensão simbólica

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Acta Ecclesiae Mediolanensis II, Decreta generalia Visitatoris Apostolici in Synodo Dioecesana Mediolanensi quinta [1578], col. 1185. Cfr. Barochi 1962, LXXX-LXXI n. 89.

do espaço, a da sua sacralidade, cuja leitura se encontra subentendida.

O centro das preocupações de Carlo Borromeo sobre a sacristia, como de resto para a generalidade das áreas eclesiais, era garantir a eficácia da liturgia, sendo fundamental para o cumprimento desse objectivo centrar-se na economia dos espaços relacionada com a sua finalidade funcional: o culto e o decoro.

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