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A sacristia nas Constituições Sinodais e Visitas Pastorais: o caso português e o contexto ibérico

Constituições Sinodais

O destino e a função da Instructionum Fabricae de Carlo Borromeo e das Acta Ecclesiae Mediolanensis foi o mesmo das predicativas divulgadas nas constituições sinodais portuguesas publicadas após o Concílio de Trento. Estas tiveram por base os decretos conciliares publicados no nosso país logo em 1564, por iniciativa do cardeal D. Henrique e do arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Se exceptuarmos as referências às imagens e relíquias sagradas, os decretos tridentinos são, como se viu atrás, omissos nas questões da arquitectura. Pelo que, nas constituições sinodais, tal como na obra de Carlo Borromeo, se considerou a integração de instruções gerais que normalizassem o ritual católico recém-restaurado, bem como os seus objectos e os seus edifícios. Não só nas sés e paróquias, como ainda nos mosteiros e abadias da visitação diocesana.

A consideração dos aspectos materiais relacionados com a ordenação das igrejas fundamentou-se nas preocupações com a liturgia celebrativa, o zelo pelas alfaias e paramentos, e a identificação de usos sagrados, por oposição aos profanos, que normalizavam a utilização dos espaços. Nestes instrumentos jurídico-pastorais, como explica José Pedro Paiva, existe «uma tendência clara para sacralizar cada vez mais os locais e objectos de culto, estabelecendo uma ligação entre espaços e comportamentos sagrados e profanos»146. Tendência que se verifica, igualmente, na atenção dada aos anexos das igrejas. Muito em particular à sacristia, para a qual se vão identificando, paulatinamente, os elementos estruturadores da sua utilização e vivência.

146 Paiva 2000b, 14.

Inicialmente, nas constituições sinodais portuguesas, a principal função atribuída a esta sala foi a da guarda dos ornamentos, combinada com questões de limpeza e conservação dos objectos do culto litúrgico. Preocupação, na verdade, temporã, recuando ao segundo quartel de Quinhentos, com as Constituições de Évora (1534), Lisboa (1537) e Braga (1538), onde se reprova a «com quanta negligência e descuido se trata as vestimentas: ornamentos: e livros das igrejas que servem ao culto divino»147. Inicialmente, as medidas promulgadas para controlar a manutenção dos ornamentos diziam respeito à limpeza regular das alfaias e paramentos e, só depois, à disposição de mobiliário para a sua guarda:

«uma arca boa grande e bem fechada e limpa ou duas se uma não bastar: ou armários da mesma maneira (…) E recolherão todas as vestimentas: cálices e galhetas: missais e castiçais: nas arcas ou armários que para isso hão-de estar ordenados na sacristia ou igreja: tudo bem concertado e a bom recado»148.

Estas directrizes repetem-se nas constituições dos vários bispados, segundo as mesmas fórmulas, ao longo de quase todo século XVI. Na verdade, só a partir de 1585, com a ordenação das constituições do Porto e de Coimbra, se introduzem outras considerações sobre o decoro do culto.

Uma outra matéria, sobre a qual também desde cedo surgem disposições, refere-se à preparação para a celebração eucarística, necessariamente realizada em ambiente reservado e de silêncio para a adequada predisposição do espírito. O silêncio introspectivo é favorecido e determinado

147

CS Lisboa 1537, 69v. De acordo com Silva Dias, as CS publicadas nas primeiras décadas do século XVI reflectem as orientações no sentido da Reforma da Igreja preconizadas no V Concílio de Latrão (1512-17): «Merecem especial destaque em todas elas, como reveladoras de uma tendência, os preceitos ordenados à morigeração da clerezia, à residência dos priores nos benefícios, ao respeito dos lugares sagrados e à intensificação do culto. A publicação das Constituições é um indício seguro de que as mentalidades começavam a mudar». Dias 1960, 73 (sublinhado meu).

pela mesma fórmula normativa que se renova nas constituições de Coimbra (1548), Lamego (1563), Goa (1568) e Porto (1585).

«E como quer que a sacristia seja deputada para os sacerdotes que hão- de celebrar e limpar suas consciências. Mandamos que os clérigos e pessoas que nela estiverem, assi na nossa Sé como nas outras: estejam em silêncio e com toda a honestidade: e não falem mais que o necessário com voz honesta e baixa»149.

Também nas de Miranda (1565), Leiria (1601), Viseu (1617) e Braga (1639) é dada a mesma orientação, mas noutros termos. A sacristia passa, então, a ser um espaço regulado em termos comportamentais e rituais, proibindo-se expressamente práticas profanas ou de natureza inapropriada: «E não farão nela juramentos por nenhuma coisa que seja». Neste sentido, o acesso tornava-se restrito, com o encerramento das suas portas aos leigos: «E não consentirá entrar algum leigo dentro da dita sacristia, salvo levando algum recado: o qual dado logo se sairá. Ou havendo de ministrar alguma coisa que então poderá nela estar enquanto for necessário»150.

Por seu turno, a preocupação com a harmonização do calendário litúrgico e com o cumprimento das missas e obrigações determinou uma solução prática: a disposição em lugar conveniente, normalmente na sacristia, da chamada «tábua das obrigações», onde se listavam as missas, capelas perpétuas e aniversários que cada igreja estava obrigada a celebrar: «E nas ditas Igrejas haverá uma tábua que estará pendurada na Sacristia, ou em outro lugar conveniente, em que estejam escritas de boa letra as missas de obrigação que há na dita Igreja, ou mosteiro, e assim alguns aniversários, ou encarregos, se os aí houver»151. 149 CS Coimbra 1548, 52-52v. 150 CS Coimbra 1548, 52-52v. 151 CS Porto 1585, 76v.

A natureza das instruções sinodais foi-se tornando, progressivamente, mais complexa a partir do último quartel de Quinhentos. A preocupação com os actos rituais de preparação do celebrante para o sacrifício da Missa foi alargada à paramentação e às orações que deviam ser rezadas nesse processo. Neste sentido, os caixões ou arcazes aparecem como o lugar na sacristia onde se devia realizar o revestimento dos sacerdotes, por razões bastante práticas, já que a profundidade do seu tampo permitia estender e dispor os paramentos de forma organizada. Os móveis deviam ser de boa madeira e bem lavrados, a fim de neles se guardarem os ornamentos e se despirem e vestirem sobre eles os que houvessem de dizer a missa152. O acto da paramentação devia obrigatoriamente ser acompanhado pelas orações associadas a cada peça de vestuário, acentuando o sentido de meditação e de interiorização. A fim de ajudar o cumprimento desse ritual, realizado antes e após a missa, é sugerida a exposição das orações em «tábuas» colocadas na sacristia e explicado o significado profundo do acto da paramentação, especialmente nas Constituições do Porto de 1585:

«E terá o sacerdote antes da missa recolhimentos para considerar que quando celebra, representa a pessoa de Jesus Cristo nosso Senhor, e oferece diante da divina majestade de Deus a seu filho misteriosamente, como ele se ofereceu invisível na árvore da vera Cruz, e que o há-de receber, e depois de celebrar terá estas, e outras semelhantes considerações: porque é cousa digna de grande repreensão ir a celebrar nos desassossegos, e inquietações do mundo, e logo sem mais consideração, tornar-se a elas.

E para ajudar em alguma parte a dispor os sacerdotes para tão alto mistério, mandamos que em todas as Igrejas matrizes haja uma folha, que mandamos imprimirem que estejam as orações ordenadas para antes, e depois da missa, e para dizer o sacerdote revestindo-se, a qual

152 CS Coimbra 1591, CS Lamego 1639.

estará na sacristia, ou lugar, onde costuma revestir-se posta em uma tábua, de modo que a possam ver, e ler facilmente os que houverem de celebrar»153.

A individualização de elementos tão particulares à sacristia como o lavabo, o estrado e o espelho, em reforço do cuidado com a paramentação, só ocorre, porém, nos instrumentos sinodais publicados a partir do segundo quartel de Seiscentos. A ablução das mãos foi, geralmente, um gesto sugerido pela ordenação de uma toalha de linho de duas varas para o efeito, mencionada desde as constituições da diocese coimbrã de 1521. Mas, de resto, não se fazia menção ao lavabo ou lavatório.

Este só surge referido nas constituições de Seiscentos, facto que não tem necessariamente que ver com a inexistência dos representativos lavabos de pedra nas sacristias portuguesas ao longo do século XVI. Simplesmente não seriam dados como peças determinantes e obrigatórias, podendo talvez ser substituídos por um jarro e uma bacia de água às mãos, tendo em conta os custos avultados da construção de um lavabo de pedra (que pressupunha um sistema de alimentação e de escoamento de água).

De modo que as Constituições da Guarda de 1621 são, efectivamente, as primeiras a fazerem referência ao «lavatório», seguidas pelas de Portalegre (1632), Elvas (1635) e de Lamego (1639). Desejavelmente, agora deviam ser «lavatórios de pedra, ou de estanho, para os padres lavarem as mãos, antes de dizerem missa, com toalhas para limpar as mãos, tantas que se possam pôr duas cada semana»154.

Em complemento do mobiliário, surgiram também indicações relativas a outras peças adicionais: o estrado de madeira colocado junto aos arcazes por razões de conforto e «um espelho em lugar conveniente, para que nele se

153

CS Porto 1585, 75.

possam ver os sacerdotes se saiam compostos ao Altar»155. A disposição de um espelho pendurado garantiria, por princípio, a correcção e dignidade da apresentação dos celebrantes perante a assembleia dos fiéis, porque «a tão alto ministério, e sacrifício, não só se requere a limpeza espiritual para se celebrar com a decência devida, se não também a corporal de mãos, rosto, e roupas sacerdotais»156. A gravidade que devia caracterizar a saída da sacristia para o altar foi mesmo sublinhada nas Constituições de Leiria e de Lamego, as quais instruem os sacerdotes a deixarem a sala «com muita gravidade, e modéstia, com os olhos baixos», «com a decência, autoridade, e compostura, que convém, a dizer Missa»157.

Em face do exposto, constata-se, de uma maneira geral nas Constituições Sinodais portuguesas de 1521 a 1640, a prevalência de formulários repetitivos quanto ao espaço da sacristia, limitados a características muito estritas, e de resto pouco estruturados e dispersos. A identidade da sala evolui, no quadro da legislação diocesana, de forma muito lenta, mas em virtude, sempre, da necessidade de garantir o decoro e dignidade do culto e da generalização do Missal Romano. (Ver Tabelas 1 e 2)

Neste particular, a função do espaço é determinada e condicionada especificamente pela sua relação com as celebrações realizadas na igreja. Quaisquer aspectos formais e tipológicos são secundarizados, não havendo instruções relativas a plantas e localizações preferenciais, disposição e organização do espaço ou eleição de partidos decorativos. Refira-se, aliás, que de todas as constituições diocesanas, do início do século XVI ao XVIII, apenas as ordenadas para o bispado de Coimbra (1591) revelam apreensão com a inexistência da própria sacristia: «não havendo Sacristia, se mandará fazer

155 CS Elvas 1635, 92v. 156 CS Elvas 1635, 92v. 157 CS Leiria 1601, 49; CS Lamego, 1639, 303.

Aspectos materiais 1ª referência Referências seguintes Limpeza e conservação

dos ornamentos

Coimbra 1521 Évora 1534, Lisboa 1537, Braga 1538, Porto 1541, Coimbra 1548, Algarve 1554, Angra 1560, Lamego 1563, Miranda 1565, Goa 1568, Porto 1585, Viseu 1617, Guarda 1621, Portalegre 1632, Elvas 1635, Lamego 1639, Braga 1639

Referência à sacristia Évora 1534 Lisboa 1537, Braga 1538, Porto 1541, Coimbra

1548, Algarve 1554, Viseu 1556, Angra 1560, Lamego 1563, Évora 1565, Miranda 1565, Goa 1568, Porto 1585, Funchal 1585, Coimbra 1591, Leiria 1601, Viseu 1617, Guarda 1621,

Portalegre 1632, Elvas 1635, Lamego 1639, Braga 1639

Mobiliário (arcas e/ou armários)

Évora 1534 Lisboa 1537, Braga 1538, Porto 1541, Coimbra 1548, Algarve 1554, Viseu 1556, Angra 1560, Lamego 1563, Évora 1565, Miranda 1565, Goa 1568, Porto 1585, Funchal 1585, Coimbra 1591, Leiria 1601, Portalegre 1632, Elvas 1635, Lamego 1639, Braga 1639

Toalha para ablução das mãos (de duas varas de linho, estopa ou olanda)

Évora 1534 Lisboa 1537, Braga 1538, Porto 1541, Coimbra 1548, Viseu 1556, Lamego 1563, Évora 1565, Miranda 1565, Goa 1568, Porto 1585, Funchal 1585, Coimbra 1591, Guarda 1621, Portalegre 1632, Elvas 1635, Lamego 1639

Mobiliário (caixões) Coimbra 1591 Viseu 1617, Guarda 1621, Portalegre 1632,

Elvas 1635, Lamego 1639, Braga 1639

Mobiliário (armário embutido) Guarda 1621 Aspectos construtivos da sacristia Guarda 1621

Lavabo Guarda 1621 Portalegre 1632, Elvas 1635, Lamego 1639

Espelho Guarda 1621 Elvas 1635, Lamego 1639

Estrado junto aos arcazes

Guarda 1621 Lamego 1639

Portas seguras Guarda 1621 Portalegre 1632

Casa de serviço Guarda 1621 Portalegre 1632

Tabela 1| Constituições Sinodais portuguesas, de 1521 a 1639: Referências aos aspectos materiais e aos elementos das sacristias.

Aspectos do ritual 1ª referência Referências seguintes Regulação de

comportamentos: silêncio e controlo de entradas

Coimbra 1548 Lamego 1563, Miranda 1565, Goa 1568, Porto 1585, Coimbra 1591, Viseu 1617, Braga 1639

Paramentação sobre o arcaz

Coimbra 1591 Lamego 1639

Tábua das missas e obrigações

Lamego 1563 Évora 1565, Goa 1568, Porto 1585, Funchal 1585, Coimbra 1591, Elvas 1635, Lamego 1639, Braga 1639

Tábua de orações Porto 1585 Coimbra 1591, Leiria 1601, Viseu 1617, Guarda

1621, Portalegre 1632, Lamego 1639, Braga 1639

Saída da sacristia para o altar

Coimbra 1591 Leiria 1601, Lamego 1639

Visitação da sacristia Coimbra 1591 Guarda 1621, Portalegre 1632

Tabela 2| Constituições Sinodais portuguesas, de 1521 a 1639: referências aos aspectos do ritual relacionado com o espaço da sacristia.

logo»158. No entanto, ao considerar a sacristia e seu provimento, o nível de detalhe foi reduzido ao essencial e não se procedeu a uma enumeração exaustiva. Decisão que é justificada no próprio texto das constituições, relegando para os visitadores a atenção ao restante159.

As instruções são, por isso, muito gerais funcionando como ponto de referência para os responsáveis das Fábricas. A formação da tipologia da sacristia, em Portugal, está longe de se encontrar na legislação sinodal, que mais parece constituir a formalização sintética de uma identidade alcançada por protótipos e modelos experimentados e alcançados pela via da arquitectura.

Neste contexto, existe porém um caso de excepção. Trata-se das Constituições do Bispado da Guarda, ordenadas em 1621, em que o ponto dedicado às sacristias, enquadrado no capítulo «Da Edificação, e Reparação das

158

CS Coimbra 1591, 110v.

Igrejas, Ermidas, e Mosteiros», constitui o texto mais completo a respeito da tipologia no universo das constituições sinodais portuguesas. Não só se determina ali a existência de sacristias, como se tecem considerações sobre a sua localização e orientação, além da respectiva construção, iluminação, mobiliário e portas.

Assim, recomendavam, especificamente para as igrejas conventuais, que houvesse «Sacristias capazes, segundo o número dos Ministros, e qualidade das Igrejas», ou seja, a dimensão e proporção do espaço seria determinada não só pelo número de celebrantes dos ofícios divinos, como pelo estatuto hierárquico das igrejas. Deviam ser edificadas «de maneira, que não tirem a luz à Capela mor, ou Igreja, ou em distância do Altar mor, que se possa ir delas para ele processionalmente»160, justificando-se assim a proximidade e a relação com o presbitério.

Encomendava-se, igualmente, às Fábricas que fizessem as sacristias «de abóbada, ou forradas, e outro sim lajeadas, ou ladrilhadas, e caiadas, como das Igrejas, e Capelas fica dito», mostrando preocupações práticas com a edificação do espaço que não devia desmerecer a das próprias igrejas. Impunha-se ainda que estivessem orientadas a nascente ou poente, de forma a facultar a luz necessária a um ambiente seco, que contribuísse para a conservação dos paramentos e alfaias. «Frestas de grades de ferro fortes, e seguras» e «boas portas com fechaduras, e chaves» eram outros cuidados a ter em conta, dada a necessidade de segurança do tesouro ali arrecadado.

Nas Constituições da Guarda, mencionam-se ainda duas tipologias distintas de mobiliário: os caixões (arcazes) «bastantes, bem lavrados, de boa madeira, com fechaduras, e chaves, em que estejam os Ornamentos, e livros pertencentes ao Ofício Divino de cada Igreja»; e o armário embutido «com fechadura, e chave, feito na parede, forrado de madeira, em que estarão os

Cálices da Igreja, e em que se recolherão os Cofres dos Corporais, e caixas das Hóstias».

Menciona-se, também, e pela primeira vez, o anexo complementar à sacristia, uma sala destinada a arrecadar peças do serviço das igrejas: «Nas Igrejas, que para isso tiverem possibilidade, haverá uma casa acomodada junto à Sacristia, ou ao Baptistério, com porta, fechadura, e chave: a qual estará sempre fechada, e nela se guardarão as cousas de madeira, e ferro, e outras do serviço da Igreja».

A proximidade do texto sinodal da Guarda à Instructionum Fabricae de Carlo Borromeo é bastante evidente. Como vimos, o arcebispo milanês prescreveu similarmente preceitos quanto à localização e orientação da sacristia, à sua relação com a capela-mor, ao cuidado com a luz e conservação dos ornamentos contra a humidade e a aspectos construtivos do interior. Indicações que coincidem, por vezes textualmente, com as que encontramos nas Constituições da Guarda, até mesmo na definição de um anexo para a guarda de objectos de maior dimensão ou de serventia inferior da igreja, libertando a sacristia para a sua justa função.

Esta ocorrência, isolada nos textos sinodais, resulta seguramente da influência da obra de Borromeo, usada como ponto de partida para uma versão simplificada e resumida, mas igualmente incisiva nas questões práticas seleccionadas. As Constituições Sinodais do Bispado da Guarda foram revistas, terminadas e publicadas em 1621 pelo bispo D. Francisco de Castro, mas a compilação das mesmas havia resultado do sínodo realizado a 29 de Junho de 1614 presidido pelo seu antecessor, D. Afonso Furtado de Mendonça.

O prólogo relata que, para o efeito, D. Afonso «com muito zelo, e vigilante cuidado, não perdoando ao trabalho pessoal, com assistência, e conselho de pessoas de grandes letras, e prudência, ordenou, e fez de novo estas Constituições (…) depois vistas, e examinadas em uma junta para isso ordenada,

49| Annales Ecclesiastici, Cesare Baronio, tomo III, 1592.

50 | Constituições Sinodais do Bispado da Guarda, 1621.

51| Portada das Constituições Sinodais do Bispado de Viseu, 1617.

52| Constituições Sinodais do Bispado de Portalegre, 1635.

de procuradores do Cabido, e Clero, pessoas de muita experiência»161. De facto, neste particular, já foi anotado o conselho para a estruturação da obra de D. Francisco Suárez (1548-1617), teólogo jesuíta espanhol, conhecido ao tempo por «Doctor eximius et pius»162.

A escolha da data para a realização do sínodo não foi ao acaso, sabendo- se corresponder o dia 29 de Junho ao dos Apóstolos São Pedro e São Paulo (como aliás se refere no Prólogo) colocando as Constituições no alinhamento das origens do Cristianismo e sob o patrocínio de figuras chave da fundação da Igreja. Daí, os mesmos apóstolos surgirem na gravura de pendor erudito que compõe a folha de rosto da publicação. Um recurso iconográfico também presente nas Constituições de Viseu de 1617, onde se representam São Teotónio – patrono da diocese que fora prior da Sé e um dos fundadores do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra – e São Carlos Borromeu, figura tutelar da Reforma Católica e recentemente canonizado em 1610.

Nas Constituições da Guarda, São Pedro e São Paulo figuram com os seus atributos sobre pedestais, num enquadramento arquitectónico clássico pontuado nos extremos por duplas pilastras coríntias e no topo por urnas. O entablamento é interrompido por dois anjos tenentes que sustentam uma cartela onde figura a Virgem e o Menino sobre uma nuvem e o crescente lunar. Em baixo, outra cartela com as armas de D. Francisco de Castro.

Apesar de o tipo de enquadramento da folha de rosto das Constituições da Guarda ser um recurso comum a algumas outras publicações de nível equivalente, não deixa de ser interessante notar a semelhança com a portada dos Annales Ecclesiastici de Cesare Baronio, cuja composição formal e elementos iconográficos – salvo pequenas diferenças e a substituição da representação da «Igreja Triunfante» pelo brasão do bispo – parecem ter inspirado a das Constituições Sinodais da Guarda, e estas depois as de Portalegre.

161

«Prologo», CS Guarda 1686 (1621), 2.

Estas Constituições consideram-se, bem como as de Viseu (1617), «um texto exemplar das políticas de reforma católica, são modelos de erudição, inauguram uma nova estrutura dispositiva das matérias e serviram de paradigma à de Lisboa de 1646, do Algarve de 1674, de Lamego de 1683 e às do Porto de 1690»163. Nomeadamente, nas questões relativas às matérias da arquitectura e do provimento das igrejas. O capítulo da sacristia ilustra a tendência geral que se vinha desenhando nos instrumentos sinodais publicados desde encerramento do Concílio de Trento e que aqui encontrou a sua melhor tradução textual.

Além da preocupação com as imagens e as relíquias – assinalada pela historiografia portuguesa desde o estudo de Flávio Gonçalves164 –, regista-se uma progressiva atenção em torno de aspectos gerais da arquitectura eclesial, como também de questões contratuais que englobam qualquer obra das fábricas. O que não é imediatamente evidente a partir da leitura das orientações para o espaço da sacristia (que, como afirmei, são na generalidade abreviadas e dispersas), mas que se torna claro a partir da análise da geral estrutura das igrejas. Para as quais são dadas indicações sobre elementos-chave do culto (tais como, o local do Santíssimo Sacramento, baptistério, capela-mor, altares, púlpito, adro, confessionários, sinos, …)165. Esta mudança sensível deriva seguramente da posição tridentina a respeito da arte: uma «arte ao serviço da Igreja», objectivando a reforma, assegurando o decoro do culto e fortalecimento da comunidade cristã. Tal predisposição tinha consequências directas na orientação do controlo pastoral exigido aos bispos a seguir a Trento, realizado