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Os acontecimentos de 25 de novembro de 1975 alteraram a correlação de forças em Portugal, tanto a nível civil como militar. A partir de então ocorreu a progressiva institucionalização da democracia, sobretudo depois da realização das eleições presidenciais e legislativas no primeiro semestre de 1976, que favoreceram a normalização das relações luso-brasileiras. O I Governo Constitucional (23.07.1976 – 23.01.1978) clarificou a política interna e externa, posicionando Portugal no campo Ocidental e como um país simultaneamente europeu e atlântico207. Desde esse momento, a ênfase nas relações com o Terceiro Mundo e com Bloco de Leste, que dominaram o período pré-constitucional, deslocou-se para a CEE e, em menor proporção, para o espaço da lusofonia. Aderir às Comunidades era fundamental por razões políticas – assegurar a transição para a democracia – e económicas – equilibrar os fluxos financeiros e modernizar a economia.

Esta inflexão diplomática, que veio moldar o Portugal democrático pós-25 de Abril, contribuiu para alterar a imagem do país junto dos seus parceiros internacionais. Como salientou o embaixador Vasco Futscher Pereira, depois de “um longo período de reserva” as autoridades brasileiras

206 O Estado brasileiro desempenhou um importante papel no estreitamento dos vínculos políticos e económicos

com África. Tendo o propósito de facilitar as exportações brasileiras de bens de capital e produtos de consumo duráveis, bem como o pagamento de serviços, o Governo brasileiro disponibilizou linhas de crédito a países como Angola, Moçambique, Senegal, Costa do Marfim, Gabão, Guiné-Bissau, Níger, Mali, Togo e Zaire. Outra medida relevante foi o posicionamento do Brasil dentre os cinco maiores participantes – com cerca de US$ 20 milhões – no Fundo Africano de Desenvolvimento, o que facilitava a presença das empresas brasileiras nos projetos financiados pelo Banco Africano de Desenvolvimento ou por ambas as entidades. A criação de trading companies, privadas e estatais, e de joint-ventures, aprofundou as relações com os países supracitados e alargou-as a novos parceiros como a Tanzânia, Mauritânia, Libéria, Marrocos, Sudão e Zimbábue. A partir de finais da década de 1970, e sobretudo na primeira metade dos anos 80, estes mercados africanos abriram-se às empresas brasileiras de prestação de serviços, especialmente àquelas voltadas para a construção de obras-públicas e de infraestruturas, exploração de petróleo, projetos agrícolas e prospeção mineral. Os países africanos beneficiaram da transferência tecnológica e de serviços brasileiros, e poderiam reduzir a sua dependência em relação aos tradicionais parceiros comerciais no hemisfério Norte. A aposta nas relações com o Brasil também tinha em consideração as baixas possibilidades de Brasília ingerir na política interna africana, por falta de meios e por opção estratégica. Ver: Santana, Ivo de (2004), A Experiência

Empresarial Brasileira na África (1970 a 1990), Salvador, Ponto e Vírgula, pp. 68 - 75.

207 Teixeira, Nuno Severiano (2004), “O 25 de Abril e a Política Externa Portuguesa”, Relações Internacionais,

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começavam a crer na “estabilidade política portuguesa”, estando “novamente dispostas ao diálogo”208. O interesse renovado de Brasília em normalizar o relacionamento com Portugal constituía uma oportunidade para relançar os vínculos bilaterais. A partir de 1976 passou a existir maior coincidência entre os vetores prioritários da política externa portuguesa e brasileira: a aproximação à CEE; a relevância atribuída aos países de língua portuguesa; a aposta na diversificação dos contatos diplomáticos. Esta tendência convergente permitiria não só ambicionar reequacionar as relações luso- brasileiras em termos mais concretos, perscrutando os seus limites e potencialidades, como procurar transpor a concertação bilateral para o plano multilateral.

O encontro bilateral agendado para dezembro de 1976, em Brasília, parecia vir a ser o momento em que se colocaria à prova a determinação e a capacidade das duas partes em reequacionar as relações luso-brasileiras em novos termos. A diplomacia portuguesa julgava pouco provável que as “tensões e incompreensões acumuladas pudessem diluir-se em pouco tempo” e, por isso, o objetivo seria atenuar as “reservas existentes” e criar uma “atmosfera de confiança”209. A embaixada do Brasil

em Lisboa tinha opinião semelhante. Considerava que o encontro bilateral “não se prestaria ao trato de matérias de carácter mais técnico” e sim ao “acerto de posições políticas” que no futuro poderiam permitir o “rápido avanço” das conversações210. Isto é, as duas diplomacias teriam que reequacionar as suas relações à luz das transformações políticas ocorridas em Portugal e no Brasil nos anos anteriores, nomeadamente: o processo revolucionário e a recente institucionalização da democracia, a descolonização, a possível adesão à CEE em Portugal; o início da liberalização democrática e a influência do projeto nacional-desenvolvimentista na orientação da política externa brasileira.

Nas semanas que antecederam a viagem do Primeiro-Ministro Mário Soares ao Brasil decorreram várias reuniões entre os membros mais destacados da comunidade portuguesa e funcionários do Itamaraty, com o propósito de trocar impressões acerca dos objetivos da visita. Por um lado, os emigrantes portugueses prestavam informações consideradas relevantes pela diplomacia brasileira; por outro, tendiam a colaborar com as autoridades locais, uma vez que tinham importantes interesses económicos a preservar no Brasil e que o regresso a um Portugal marcado por incertezas não constituía uma alternativa.

Parte da comunidade portuguesa não hesitou em manifestar o seu desconforto e mesmo alguma apreensão com a visita de Mário Soares. A 18 de novembro de 1976, o embaixador Francisco Negrão de Lima, cujas estreitas ligações com a comunidade portuguesa eram sobejamente conhecidas, foi

208 Telegrama enviado pela embaixada de Portugal em Brasília para o MNE sobre as novas perspetivas para as

relações luso-brasileiras, de 2 de fevereiro de 1976, p.1. AHDMNE – PEA 21/ 1976, n.º 33/ BRA/ 18, 1976.

209 Telegrama enviado pela embaixada de Portugal em Brasília sobre a viagem do Primeiro-Ministro Mário

Soares ao Brasil, de 24 de outubro de 1976, pp.1 - 3. AHDMNE – PEA 8/1977, nº33/BRA/9, 1976 - 7.

210 Telegrama enviado pela embaixada do Brasil em Lisboa para o MRE sobre a visita do Primeiro-Ministro

Mário Soares ao Brasil, de 26 de outubro de 1976, pp. 1 - 3. CPDOC/FGV – AAS mre/rb 19740523, Pasta III - 43 A 1.

65 recebido pelo Chanceler Azeredo da Silveira em Brasília. Ao longo da conversa, ficara evidente que Negrão de Lima pretendia “resguardar a posição ou a liberdade” das Associações Portuguesas ou Luso-Brasileiras de modo a que não fossem pressionadas a tomar parte nas cerimónias oficiais durante a estadia de Mário Soares no Brasil. O Chanceler Azeredo da Silveira recordou que o convite “fora fixado em resposta ao forte e insistente pedido do próprio Primeiro-Ministro português”, deixando Brasília sem alternativa, mas que a “intenção do Governo brasileiro era a de que a visita fosse correta, mas não excessiva”. Neste sentido, o Governo não esperava que as Associações cooperassem com as autoridades portuguesas, mas exigiria que elas se mantivessem “sempre identificadas com o Brasil, em cujo contexto estão inseridas”. As palavras de Azeredo de Silveira elucidam as baixas expectativas brasileiras quanto ao encontro bilateral e que naquele momento a prioridade nas relações com Lisboa era evitar que “os sobressaltos por que passou a vida portuguesa desde Abril de 1974 viessem a ser transmudados para o Brasil, através da injeção das distorções da sociedade portuguesa na enorme massa de cidadãos que constituía a chamada colónia portuguesa”. Em resposta, Negrão de Lima afirmou que era “intenção da colónia portuguesa, através do comportamento de seus líderes durante a visita, fazer sentir ao Primeiro-Ministro Mário Soares que ela (colónia) não possui quaisquer compromissos com o Governo português” 211.

O diálogo entre Azeredo da Silveira e Negrão de Lima permite inferir que parte dos emigrantes identificava-se com a posição das autoridades brasileiras favorável à “manutenção da colónia portuguesa do Brasil imune às vicissitudes do atual quadro político português”. Igualmente importante, é a constatação de que a visita de Mário Soares tinha implicações políticas para além da dimensão bilateral, repercutindo nos equilíbrios internos dos países. A “insistência” do Gabinete do Primeiro-Ministro em confirmar a realização da reunião bilateral ainda em 1976, apesar da embaixada do Brasil em Lisboa ter manifestado várias vezes que o calendário não era oportuno, foi interpretada pelo Itamaraty como decorrente da agenda política pessoal de Mário Soares. Para a diplomacia brasileira, com a visita a Brasília o Chefe do Executivo pretenderia ampliar a sua base de apoio junto aos sectores mais conservadores em Portugal, neutralizar a oposição portuguesa no Brasil, e sobrepor- se à contestação interna no PS212.

A 2 de dezembro, o diplomata João Paulo do Rio Branco, chefe do Departamento da Europa do MRE, reuniu-se com Manuel Teixeira e Abílio Diniz, respetivamente o dirigente e o proprietário do Grupo Pão de Açúcar, com presença no Brasil, em Portugal e em Angola. Na opinião de Manuel Teixeira o Executivo português teria três objetivos com a visita oficial: a) “confirmar o status especial das relações entre os dois países, procurando tratamento preferencial para Portugal em alguns aspetos do intercâmbio comercial”; b) a visita deveria repercutir favoravelmente junto aos sectores mais conservadores em Portugal; c) a viagem “realçaria a imagem pessoal de Mário Soares aos olhos da

211 Informação para o Sr. Presidente da República sobre as relações Brasil – Portugal, de 22 de novembro de

1976, pp. 1 - 3. CPDOC/ FGV – AAS.mre.d.1974.03.26.

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opinião pública portuguesa e internacional”. Por sua vez, Abílio Diniz observou que “as camadas mais abastadas da colónia manteriam uma atitude de indiferença ou semi-hostil à presença do Primeiro- Ministro” e que poderiam ocorrer esporádicas manifestações contrárias a Mário Soares por parte dos “retornados” ou de “emigrantes vindos para o Brasil no rescaldo da revolução de 25 de Abril” 213.

À medida que o encontro bilateral se aproximava, tornava-se claro que a sua importância seria eminentemente política. Nesse sentido, a visita oficial ao Brasil constituía uma oportunidade para o novo Governo português dissipar os receios remanescentes junto da opinião pública e da linha dura do regime brasileiro acerca da orientação ideológica do Partido Socialista e do rumo da política portuguesa. No Rio de Janeiro, Mário Soares viria a esclarecer o campo político em que se situava o PS ao afirmar: “Nós salvamos para a Europa, salvamos para o Ocidente, salvamos Portugal do comunismo”214. O passado de oposição ao gonçalvismo e o empenho do Primeiro-Ministro em

convencer os empresários portugueses radicados no Brasil a participarem na reconstrução do sector privado nacional concorriam para reforçar as suas credenciais democráticas. Apesar dos socialistas portugueses suscitarem reservas num país que há mais de uma década vivia sob uma ditadura de extrema-direita, acabaria por prevalecer em Brasília a ideia de que seria preferível haver em Lisboa um Governo próximo das democracias liberais europeias do que o possível regresso da extrema- esquerda ao poder. Em declaração à imprensa, o Chanceler Azeredo da Silveira enfatizou a importância do encontro ao afirmar que se tratava de um “teste muito importante” para o êxito das relações entre os dois países215. Discursando em nome da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido que apoiava o regime militar, o deputado Siqueira Campos observou que o “socialismo” implantado em Portugal, “sob a liderança do jovem Mário Soares”, era a “solução para o mundo Ocidental”216. O Primeiro-Ministro não só tinha conquistado simpatias no seio do Governo como contava com a cumplicidade das bases do regime.

Durante a estadia no Brasil, Mário Soares deslocou-se por várias cidades transmitindo a mensagem de que “o ciclo revolucionário em seu país estava encerrado e que a vida política caminhava para a normalidade”. Nos discursos que pronunciou, o Primeiro-Ministro procurou aproximar-se dos empresários brasileiros e portugueses, sobretudo daqueles que partiram após o 25 de Abril, bem como dos sectores mais conservadores da comunidade lusa. Assegurou que os contenciosos bilaterais seriam solucionados e que os investidores iriam encontrar um “Portugal democrático e estável, pronto para acolher de volta os que o abandonaram”. Para que não subsistissem

213 Notas sobre o encontro do Primeiro-Ministro Mário Soares com o Presidente Ernesto Geisel no Palácio do

Planalto, de 15 de dezembro de 1976, pp. 1 - 12. CPDOC/ FGV – EG.pr. 1974.03.00/2.

214 Diário de Noticias, de 21 de Dezembro de 1976, p.7.

215 Telegrama enviado pela embaixada de Portugal em Brasília sobre as declarações do Chanceler Azeredo da

Silveira, à imprensa sobre a visita do Primeiro-Ministro Mário Soares ao Brasil, de 27 de outubro de 1976, p.1. AHDMNE – PEA 8/1977, n.º 33/BRA/9.

67 dúvidas, Mário Soares quis que ficasse “perfeitamente claro que o Governo português está preocupado com a evasão de talentos e está vivamente interessado em reaver o concurso dos emigrantes mais bem dotados técnica e financeiramente”. Na avaliação do Itamaraty, a “inexistência de uma acolhida mais calorosa por parte da colónia portuguesa radicada no Brasil independia de qualquer medida dissuasória tomada pelas autoridades brasileiras”, mas das desconfianças remanescentes quanto ao Partido Socialista e ao futuro político de Portugal217. Com uma impressão diferente ficara o embaixador Vasco

Futscher Pereira, que em telegrama enviado para Lisboa salientou a “extensa e excepcional cobertura” feita pela imprensa brasileira da visita ministerial, que tinha “repercutido do modo mais favorável e positivo nos meios-brasileiros e da colónia”218.

No encontro entre Chefes de Governo de 1976, que também retomava as reuniões ministeriais anuais interrompidas em 1975, ambas as partes recuperaram algumas propostas avançadas em 1974, nomeadamente a de conferir maior realismo e eficácia ao relacionamento bilateral, desenvolvendo-o acima das vicissitudes políticas do momento e em convergência com o interesse nacional. Sobre as transformações ocorridas em Portugal, Mário Soares afirmou que “antes da Revolução portuguesa ninguém acreditava na Europa que ela pudesse ocorrer”. O próprio Primeiro-Ministro teria avisado com um mês de antecedência o Chefe do Governo britânico, Harold Wilson, de que o 25 de Abril era iminente, mas não recebeu a atenção que considerava devida. Afirmou, ainda, que “os americanos em Lisboa não conheciam ninguém”, e “nem os outros ocidentais” estavam a par de quem eram as forças da oposição. No que dizia respeito à radicalização à esquerda, Soares explicou que se tratou de “um período de terrorismo ideológico”, mas que após a eleição de Ramalho Eanes para a presidência da República e a formação do I Governo Constitucional a “situação estava estabilizada” em Portugal. No plano económico, o Primeiro-Ministro expôs que as “dificuldades datavam de antes de 74”, não fazendo qualquer referência ao argumento invocado pelos sectores conservadores, e sobejamente conhecido pela diplomacia brasileira, de que a situação se deteriorara substancialmente durante o período da deriva à esquerda.

Em Brasília sabia-se que as palavras de Mário Soares não eram exatas. Ao longo de 1973 e no princípio de 1974 o Itamaraty identificara Spínola e as Forças Armadas como prováveis atores das transformações políticas que estariam prestes a ocorrer. O protagonismo reclamado pelo Primeiro- Ministro era igualmente questionado pelas autoridades brasileiras uma vez que até finais de 1975 o Governo Geisel hesitava entre Mário Soares e Melo Antunes no momento de escolher qual seria o interlocutor privilegiado e mais apto para contrariar a radicalização à esquerda em Portugal. Por fim,

217 Notas sobre a visita do Primeiro-Ministro Mário Soares a São Paulo, ao Rio de Janeiro e a Bahia, elaboradas

pelo MRE, dezembro de 1976, pp. 1 - 5. CPDOC/ FGV – EG.pr.1974.03.00/2.

218 Na sua maior parte os contenciosos bilaterais relacionavam-se com as empresas nacionalizadas após o 25 de

Abril, que pertenciam na totalidade ou parcialmente a grupos brasileiros. Ver: Telegrama enviado pela embaixada de Portugal em Brasília para o MNE, de 24 de dezembro de 1976, p. 1. AHDMNE – PEA 9 (1977).

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as informações recebidas da embaixada em Lisboa e por meio da comunidade portuguesa residente no Brasil, inclusive, dos que haviam deixado Portugal após o 25 de Abril, responsabilizavam as tergiversações da revolução portuguesa pelas dificuldades económicas pelas quais passava o país219. Esta interpretação da origem dos males que afetavam Portugal era igualmente parcial e fortemente ideologizada, mas o contraste entre narrativas tão antagónicas do processo revolucionário facilitava ao Governo brasileiro desenvolver uma visão crítica sobre a realidade portuguesa.

A visita de Mário Soares ao Brasil em 1976 permitiu, sobretudo, reafirmar a confiança entre as duas diplomacias, o que se refletiu positivamente na opinião pública portuguesa e brasileira e concorreu para progressiva desideologização dos vínculos bilaterais. Fracassou no propósito de estabelecer um novo padrão de relacionamento, já que as transformações necessárias a essa mudança, como o incremento das trocas comerciais e o aprofundamento da cooperação, não se haviam ainda verificado. Nesse sentido, apesar de as duas diplomacias terem pretendido romper com o modelo de relacionamento bilateral esgotado, acabaram perpetuando uma das suas principais características: a incapacidade em consubstanciar as iniciativas adotadas220.

O encontro bilateral de 1976 não se repercutiu somente no âmbito da política externa, tendo reflexos no plano interno dos dois países. O PS esperava que a posição favorável do Governo conservador brasileiro em relação ao Executivo socialista contribuísse para a imagem de moderação do partido, permitindo que conquistasse a “confiança dos sectores de centro e de direita em Portugal” e consolidasse as suas “bases de apoio”. Para esses segmentos políticos, o “bom entendimento com o Brasil” representava o “aval para confiar nas atitudes e nas intenções socialistas”221. No que diz

respeito à parte brasileira, o empenho do Governo Geisel em estreitar os vínculos com Portugal, apesar das fortes críticas internas, contribuiu para o esforço de isolamento da linha dura do regime subtraindo-lhe gradualmente importância na formulação e execução do processo decisório. O apoio inequívoco ao Executivo socialista constituía um sinal de que a liberalização democrática seria irreversível e de que a política externa não era orientada por critérios ideológicos. Naquele momento, tanto o Governo brasileiro como os seus aliados ocidentais consideravam a presença do PS à frente do Governo como a melhor hipótese para a consolidação da democracia e para a permanência de Portugal no campo do Ocidente. Como observou o Estado de São Paulo, o “PM convenceu o Presidente, os Ministros e o sistema militar”, permitindo “reestabelecer um clima de confiança absoluta entre as autoridades dos dois países”. Todavia, segundo o diário, “é claro que se Soares cai ou o regime muda

219 Notas do encontro do Primeiro-Ministro Mário Soares com o Presidente Ernesto Geisel no Palácio do

Planalto, de 15 de dezembro de 1976, pp.1 - 12. CPDOC/ FGV – EG.pr. 1974.03.00/2.

220 Carvalho, Thiago de Almeida (2009), Do Lirismo ao Pragmatismo. A Dimensão Multilateral das Relações

Luso-Brasileiras (1974 – 1976), Lisboa, Instituto Diplomático, pp. 153 - 169.

221 Telegrama enviado pela embaixada de Portugal em Brasília sobre as repercussões na imprensa brasileira do

anúncio da visita do Primeiro-Ministro Mário Soares ao Brasil, de 13 de outubro de 1976, pp. 1 - 4. AHDMNE – PEA 8/ 1977, n.º 33/ BRA/ 9.

69 o Governo brasileiro recua de novo”. Assim, Mário Soares deixava o Brasil com uma “comunidade de imprensa cheia de boas intenções. O resto ficava sujeito aos riscos da sorte e do futuro”222.

A revolução e a transição para a democracia constituíram uma rutura na política interna e externa portuguesa, mas o seu impacto nas relações com o Brasil não foi suficiente para alterar, no imediato, o padrão de relacionamento bilateral. Com exceção da descolonização, que permitiu a reaproximação entre os dois países e facilitou a prossecução dos interesses brasileiros em África, prevaleceram os elementos de continuidade que há décadas caracterizavam as relações luso- brasileiras: ausência de substância política e económica e a retórica dos afetos, ainda que esta última tenha sido moderada. A insistência portuguesa em que o comunicado final do encontro desse a entender que se havia alcançado resultados concretos, diferenciando-o das reuniões celebradas durante o Estado Novo, revela que algumas práticas do regime anterior se mantinham. Isto é, o Executivo pretendia alçar as relações luso-brasileiras a um patamar que não correspondia à realidade e beneficiar politicamente no plano interno dos vínculos estreitos com Brasília. De acordo com a documentação brasileira, o Primeiro-Ministro português deixou claro que “gostaria que o Comunicado final fosse o mais concreto possível para diferenciá-lo bem dos comunicados declaratórios do passado”. O Itamaraty compreendeu que concomitante ao empenho em dar um novo impulso às relações bilaterais estava a agenda política pessoal de Mário Soares, que pretendia aproveitar a visita ao Brasil para afirmar a sua condição de estadista e a sua capacidade de operar a mudança. No entanto, a parte