• Nenhum resultado encontrado

ANEXO 33: Matéria em CartaCapital – “Do Fora Temer ao Diretas Já”

2 OS USOS DA ARGUMENTAÇÃO

2.2 A NOVA RETÓRICA DE PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA

No prefácio da edição brasileira da obra Tratado da argumentação: a nova retórica, Fábio Coelho situa o leitor sobre o ponto de partida de Chaïm Perelman: o campo judiciário. O pressuposto de Chaïm Perelman, segue o autor, é baseado em não haver proposições verdadeiras ou falsas, somente verossímeis, sendo assim, as decisões em tribunais não resultariam de uma decisão cientificamente verdadeira, mas sim de um acordo sobre o mais justo e razoável entre as partes. Aqui, volta-se a questão de que se os seres humanos tivessem uma verdade cientifíca para tudo, não existiria a espontaneidade das relações sociais e, muito menos, a argumentação, visto que essa última trata sempre de assuntos que não se baseiam em evidências. A argumentação vive de acordos:

[...] a teoria da argumentação não pode se desenvolver se toda a prova é concebida como redução à evidência. Com efeito, o objeto dessa teoria é o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 4, itálico no original)

54

O resgate da retórica antiga na obra se dá em vários momentos como no que toca o que o convencimento, persuasão e a discussão, mas, principalmente, a questão do auditório. Nas palavras dos autores: “[...] é em função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 6, itálico no original). Em outros termos, os autores retomam a noção do orador se adaptar ao auditório para, assim, conseguir adesão à tese proposta.

No entanto, os autores pretendem ir além das discussões em praça pública e da boa oratória típica dos estudos da retórica antiga, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) se propõem, partindo do estudo das técnicas argumentativas, a analisar os “mecanismos de pensamento” presentes na argumentação. Desse modo, os autores – que acreditam que para todas as ocasiões se argumenta a partir das mesmas técnicas – não se debruçam sobre textos orais, mas escritos, como o discurso do político, do publicitário em jornais, do filósofo nos seus tratados.

Um dos primeiros conceitos que Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) trazem à tona é que o orador deve ter alguma qualidade para poder tomar a palavra e ter a atenção de seu auditório. Ora, o fato das mídias deterem atenção não é justificado somente por seu poder econômico, elas também têm a qualidade, como já visto nas páginas anteriores, de serem o lugar legitimado da informação e da tradução do saber esotérico de outros campos sociais para o saber popular. Dessa forma, o poder das mídias vai além de seu poder econômico, elas têm o poder institucional ao seu lado.

Para os autores, o orador conquistar a atenção do auditório não é somente condição prévia para a argumentação, mas sim uma condição que pertence a todo desenvolvimento da mesma, pois, como já destacado, é em função do auditório, isto é, da predisposição deste, que toda argumentação se desenvolve. E isso não é tarefa fácil, visto que o auditório “já não é, no final do discurso, exatamente o mesmo do início. Este último condicionamento só pode ser realizado pela adaptação contínua do orador ao auditório” (PERELMAN; OLBRECHTS- TYTECA, 2005, p. 26).

A tomada da palavra pelo orador é parte do “contato intelectual” entre ele e o auditório, isto é, da criação de uma “situação argumentativa” colocada pelos autores, na qual a linguagem é indispensável por seu efeito de estabelecer uma “comunhão dos espíritos”, em outros termos, pessoas que se colocam dispostas a participar da discussão de uma questão: “Para que haja argumentação, é mister que [...] realize-se uma comunidade efetiva dos espíritos. É mister que se esteja de acordo, antes de mais nada e em princípio, sobre a

55

formação dessa comunidade intelectual e, depois, sobre o fato de se debater uma questão determinada” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 16).

Esse “contato intelectual” da situação argumentativa nada mais é do que tanto o orador quanto o auditório se sentirem parte da argumentação, tendo esta última como objetivo a adesão às ideias do orador por parte do auditório:

O objetivo de toda argumentação, como dissemos, é provocar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento: uma argumentação eficaz é a que consegue aumentar essa intensidade de adesão de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação pretendida (ação positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles, uma disposição para a ação, que se manifestará no momento oportuno (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 50).

Porém, como se dá a formação dessa comunidade intelectual? Conforme os autores, por meio da construção, pelo orador, de um auditório presumido. Mas poder-se-ia perguntar como o orador presume esse auditório. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) respondem: por meio de um acordo prévio assentado nas normas sociais. Aqui, têm-se duas questões para discussão: a primeira, que pauta, mais uma vez, a importância do auditório para os autores; e a segunda, que pauta o meio pelo qual o orador presume o auditório.

Consoante à primeira questão, a primeira regra é que o orador, ao presumir os indivíduos que irá persuadir, faça-o de forma sistematizada e concreta, pautando a realidade psicológica e sociológica desse auditório: “A argumentação efetiva tem de conceber o auditório presumido tão próximo quanto o possível da realidade. Uma imagem inadequada do auditório, resultante da ignorância ou de um concurso imprevisto de circunstâncias, pode ter as mais desagradáveis consequências” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 22).

Os autores concedem tanta ênfase à ação do orador que afirmam que o auditório é, “preferivelmente”, definido como o conjunto de espíritos que o orador quer influenciar com a sua argumentação. E, ainda, que não importa, na argumentação, o que o orador entende por verdadeiro ou falso, mas sim o julgamento do auditório.

A segunda questão emerge: Como o orador presume esse auditório? É nesse momento que Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) colocam ênfase nas normas da vida social, na cultura. Segundo os autores, tudo o que o orador pode presumir do auditório se dá a partir dos discursos em sociedade, visto que é conjuntamente que os indivíduos constroem os marcos sobre o que é verdade ou não.

O estudo dos auditórios poderia igualmente constituir um capítulo de sociologia, pois, mais que do seu caráter pessoal, as opiniões de um homem dependem de seu

56

meio social, de seu círculo, das pessoas [...] com quem convive. [...] Cada meio poderia ser caracterizado por suas opiniões dominantes, por suas convicções indiscutidas, pelas premissas que aceita sem hesitar; tais concepções fazem parte da sua cultura e todo orador que quer persuadir um auditório particular tem de se adaptar a ele. Por isso a cultura própria de cada auditório transparece através dos discursos que lhe são destinados, de tal maneira que é, em larga medida, desses próprios discursos que nos julgamos autorizados a tirar alguma informação a respeito das civilizações passadas (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 23).

Aliás, segue os autores, foi por acreditarem que o que vale para um ouvinte particular valeria para um auditório universal que os antigos teóricos da retórica distinguiram três gêneros do discurso (deliberativo, judiciário e epidíctico) em função do tipo do auditório. Dessa forma, para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), os oradores podem conhecer o auditório a partir das funções sociais destes, funções estas delegadas pelas instituições sociais que fazem parte. Contudo, para os autores, a variedade de auditórios é “quase infinita” e isso apresenta problemas ao orador que quer se adaptar às particularidades dos mesmos. É por isso que, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteyca (2005), há o fomento de técnicas argumentativas que valham para todos esses auditórios, uma objetividade que subtraia os marcos históricos e sociais para que a argumentação seja aceita por todos.

É certo que o objetivo da argumentação é, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), a adesão dos espíritos; todavia, essa adesão pode ser conquistada somente a partir das qualidades do orador. A adesão deve ser a inclinação perante a verdade apresentada. Nesse momento, os autores opõem os termos debate e discussão. O primeiro seria, do ponto de vista erístico, a apresentação de teses defendidas por cada indivíduo, no qual todas as energias iriam para a defesa da sua própria tese e para a refutação da tese oposta. Já do ponto de vista heurístico, a discussão seria o momento no qual os indivíduos buscariam a solução para o problema. A discussão visaria à busca pela verdade, enquanto o debate o “triunfo da própria tese”.

A discussão, levada a bom termo, deveria conduzir a uma conclusão inevitável e unanimemente admitida, se os argumentos, presumidamente com mesmo peso para todos estivessem dispostos como que nos pratos de uma balança. No debate, em contrapartida, cada interlocutor só aventaria argumentos favoráveis à sua tese e só se preocuparia com argumentos que lhe são desfavoráveis para refutá-los ou limitar- lhes o alcance (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 42).

Para os autores, a distinção entre discussão e debate é, na prática, difícil de precisar e, além disso, são casos excepcionais, uma vez que, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca

57

(2005, p. 43), “no diálogo habitual, os participantes tendem, pura e simplesmente, a persuadir seu auditório com o intuito de determinar uma ação imediata ou futura”.

Os autores sugerem que há duas espécies de auditório: particular e universal. O primeiro seria restrito a um grupo de indivíduos; já o segundo seria todo o conjunto de seres racionais. Para os primeiros, como já visto, o orador se valeria da argumentação pela persuasão; para os segundos, da argumentação pela convicção. Na interpretação de Panke (2010, p. 42, itálico no original), Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) propõem “pensar o auditório como conjuntos. Existiria um conjunto maior, o auditório universal, e subdivisões, os auditórios particulares. Pode-se dizer que o auditório universal corresponde à humanidade como um todo, portanto, os argumentos que lhe são destinados valem para qualquer ser racional”.

Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 35), então, o auditório universal é aquele que versa sobre a razão, isto é, ao serem compreendidas as razões imediatamente se aderiria a elas: “Uma argumentação dirigida a um auditório universal deve convencer o leitor do caráter coercivo das razões fornecidas, de sua evidência, de sua validade intemporal e absoluta, independente das contingências locais ou históricas”. O auditório universal também é presumido pelo orador e, talvez, seja nesse momento que mais se mostre as suas próprias convicções, pois o orador constrói o auditório universal de acordo com a sua ideia dele. Sendo assim, inevitavelmente, a construção sobre o que é o auditório universal é datada e contextualizada de acordo com o momento em que ele foi pensado.

Nesse sentido, deve-se frisar que o auditório universal não se constitui em uma construção subjetiva — ele se relaciona a uma racionalidade intersubjetiva. Desse modo, a principal consequência de tratar o auditório universal como uma projeção do orador configura-se no fato de que a atribuição de racionalidade ou razoabilidade depende do tempo e do lugar. Assim, verifica-se que o conceito proposto afasta-se do ideal racionalista, ou seja, da compreensão de racionalidade como verdade ou como normas eternas e estáveis, desligadas da história, da cultura e da situação (JORGENSEN, 2012, p. 135).

Além de serem responsáveis pelo surgimento da nova retórica, Perelman e Olbrechts- Tyteca (2005) são reconhecidos pela gama de técnicas argumentativas que expõem. Os autores dividem as técnicas de acordo com o caráter dos argumentos. Para eles, existem os argumentos quase-lógicos, os argumentos baseados na estrutura do real e os argumentos que fundamentam a estrutura do real. Cada uma dessas categorias compreende técnicas argumentativas de autoridade, exemplo, analogia, reciprocidade, transitividade, comparação, entre outras, que Breton (1999), como veremos adiante, inspira-se.

58