• Nenhum resultado encontrado

A ONU e as teorias contemporâneas das relações internacionais

CAPÍTULO III – POR UMA SOCIEDADE CIVIL GLOBAL LIVRE DE

4.5 A ONU e as teorias contemporâneas das relações internacionais

Acreditamos que a ONU funciona tendo como base a teoria neo-realista das relações internacionais. Por sua vez, a participação dos Estados-partes na instituição pode ser explicada pela teoria neo-institucionalista. Por fim, o engajamento da sociedade civil relatado no primeiro capítulo da dissertação é norteado pelo pensamento construtivista200. Vejamos a descrição de tais teses, bem como as razões para estas afirmações.

A ONU, apesar de todas as dificuldades e desafios que enfrentou ao longo de sua existência, ainda desempenha um papel significativo no imaginário coletivo. Para

200 Vale ressaltar que uma teoria, seja ela qual for, nunca é suficiente para explicar a totalidade dos

tanto, pouco importa que a eficácia e a efetividade do sistema estejam debilitadas. Afinal, a ONU constitui a primeira tentativa bem sucedida de agremiação pacifista de Estados, pressupõe uma universalidade e prega por igualdade material entre todos os Estados-membros e, posteriormente, seres humanos. Poderíamos dizer que o seu mote é de cunho idealista, porém seu funcionamento tem um fundo realista, e aí está a disparidade a que nos referimos.

Conforme anteriormente referido, as teorias realistas e idealistas, ao longo do tempo, vão sendo questionadas e os pensadores das relações internacionais são levados a buscar outras teorias para o modo de operação do sistema internacional do qual as organizações internacionais efetivamente fazem parte. Como explicar que um Estado, egoísta e interessado em seus ganhos próprios, está disposto a cooperar no âmbito internacional? Como ignorar a pressão que outros atores não estatais fazem na tomada de decisões do Estado? Como relacionar os movimentos sociais globais com o cenário da política internacional? Ou, ainda, como considerar o elemento poder? Estas e outras questões são determinantes para o aprofundamento do debate teórico que se coloca a partir de então.

Tanto a teoria neo-realista como a teoria neo-institucionalista (ou neoliberal) têm, como sistema de análise, o Estado, em sua atuação doméstica e externa. É ele o ator principal e determinante no sistema internacional. Ainda que se admita a influência de outros atores, conforme defendemos em nosso trabalho, também é ele quem detém o poder decisório final.

Ambas as teorias são abordagens neo-clássicas: em vez de se concentrarem na natureza humana como foco de interpretação, propõem-se construir suas teses através de métodos científicos. Baseiam-se no movimento behaviorista das ciências sociais

(que provocou, nos anos 60 do século passado, uma revolução no comportamento em geral) e crêem na análise objetiva calcada em técnicas. Não se trata de uma análise interpretativa, mas explicativa, preditiva. Este é o principal aspecto de divergência com os clássicos (realistas e idealistas) que apostavam na natureza humana como abordagem analítica.

Para compreender esta nova fase do debate teórico, é necessário entender o conceito de interdependência. A primeira faceta do termo, a interdependência complexa, é cunhada nos anos 60 do século passado por Robert Keohane e Joseph Nye Jr., e denota uma nova ordem no sistema internacional201.

Os Estados já não são os únicos atores determinantes no palco internacional. Com a intensificação dos fluxos de capitais e a aceleração da produção capitalista, empresas transnacionais, organizações não governamentais e a sociedade civil (atores de caráter diferenciado) passam a ter um papel mais ativo na tomada de decisões e influenciam fortemente os Estados neste processo (o contrário também ocorre, em uma dinâmica de ação e reação).

Esses, mencionemos, continuam a desempenhar o papel final e fundamental, pois continuam a ter o monopólio do poder decisório, mas agora suas ações devem ser pensadas tendo em vista os novos atores.

A interdependência assimétrica202, por sua vez, é entendida como correlação e conexão entre ações. Uma ação deve ser pensada até as suas

201Sobre Interdependência Complexa, ver R.KEOHANE-J.NYE JR. Power Interdependence. Nova Iorque:

Longman, 1989, pp. 3-22.

202Na teoria Neo-institucionalista das Relações Internacionais, tal tema é amplamente abordado por: R.

KEOHANE, After Hegemony: Cooperation and Discord in the World Political Economy, New Jersey: Princeton University Press, 1984; O. YOUNG. International Cooperation: Building Regimes for

conseqüências, o que faz com que a demanda por cooperação entre Estados cresça, pois fornece maior segurança nas ações.

É preciso atentar para a questão do poder: a interdependência traz, também, uma desigualdade de poder, introduzindo, outra vez, a questão de ganhos relativos, valorizados pela vertente realista, e ganhos absolutos, enfatizada pelos idealistas.

No neo-institucionalismo, vertente que surge a partir dos idealistas, a interdependência é vista como promotora de relações globais mais intensas e constantes. Para que haja ordem neste processo, demandam-se regimes, ou seja, uma institucionalização. Os atores (Estados, que sofrem interferência dos demais atores não estatais) são racionais e pretendem cooperar neste ambiente institucionalizado não porque crêem na natureza humana e na promoção do bem comum como chave para a paz, mas porque têm interesses nacionais próprios que podem ser mais bem atendidos se houver cooperação entre eles.

A institucionalização seria a solução para problemas coletivos, pois moldaria o comportamento dos atores ao estabelecer regras e normas, funcionando como um incentivo à cooperação: redução de custos de transação e do grau de incerteza converge expectativas e facilita o alcance dos interesses individuais. Além disso, ao cooperarem, os Estados mostram-se como colaboradores e não traidores do sistema internacional. Para o pensamento neo-institucionalista, a perspectiva é de ganhos absolutos, em contraposição ao defendido pelos realistas.

Em relação ao poder, os neo-institucionalistas defendem que a circulação de informação por meio das instituições é a principal variável para a compreensão do

Natural Resources and the Environment. Ithaca: Cornell University Press, 1989; e R. KEOHANE- J. NYE JR.. Power Interdependence, Nova Iorque: Longman, 1989.

sistema internacional. As relações de poder são absolutas, cada Estado busca acumular recursos de poder. As instituições têm, assim, um papel crucial em facilitar a cooperação.

Vemos esta teoria como adequada para explicar a atuação dos Estados nos Comitês temáticos da ONU, bem como nas Conferências: os atores desejam que a anarquia dê lugar à ordem, que seus interesses próprios sejam atendidos, que sua imagem perante os demais seja benéfica e que o sistema seja mais transparente e previsível. Todos os Estados se preocupam com uma publicidade positiva acerca de suas políticas de direitos humanos203. A participação ativa em Comitês especializados em temas econômicos e sociais é, dessa forma, valorizada.

Com relação ao neo-realismo, a variável central resume-se ao poder. Entretanto, para os teóricos neo-realistas, a interdependência faz com que a estratégia de cada Estado passe a depender da ação de outros atores. Em outras palavras, ela aumenta a desconfiança e as variáveis de influência no sistema internacional. Este novo cenário, de constrangimentos do poder estatal, força os atores em busca de maximização de seu poder e coordenação de posições, e acabam por incorrer em precária cooperação. Preocupam-se, ainda, com a distribuição dos ganhos no quadro internacional, pois isto é determinante para o aumento de seu poder e, conseqüentemente, da sua capacidade de exercer influência no sistema. Cada Estado objetiva estar em uma posição superior na hierarquia de poder do sistema internacional.

203 A violação dos direitos humanos pode gerar situações politicamente constrangedoras no âmbito

internacional e, justamente o risco disso acontecer serve como significativo fator para a proteção dos direitos humanos (power of embarrassment). Daí a preocupação de enfrentar a publicidade de suas condutas, de manter uma boa imagem para a sociedade internacional. Os Estados, assim, vêem-se compelidos apresentar justificativas a respeito de suas práticas.

No pensamento neo-realista, porém, as organizações internacionais afetam apenas marginalmente a possibilidade de cooperação, pois reproduzem a estrutura desigual do sistema internacional (de balança de poder), não criando um ambiente isonômico calcado em regras e normas efetivas. Desse modo, a presença dos Estados em órgãos internacionais pode ser explicada como estratégia para manutenção deste poder. Os Estados não necessariamente crêem no propósito da institucionalização.

A nosso ver, é este o mote estrutural da ONU, que simula uma cooperação, todavia, concentra-se na distribuição de ganhos e de poder entre as potências. Na verdade, para os neo-realistas, ao revisar a clássica concepção realista, as instituições internacionais servem como forma de aumentar a possibilidade de ganhos relativos/área de influência, reconhecendo certa importância a estas.

O construtivismo, ao contrário das teorias relatadas acima, baseia-se em uma interpretação sociológica (das idéias), tomando forma a partir dos anos 80 do século XX. Ganha força no pós Guerra Fria, quando se torna mais difícil identificar interesses (neo-institucionalismo) e distribuir o poder (neo-realismo) na nova ordem mundial. O trabalho construtivista tenta desmistificar os conceitos de anarquia e de interesse nacional. Seu foco não é no Estado, mas no indivíduo. Crêem que as instituições são depositárias de regras construídas socialmente e denotam a percepção dos indivíduos de como gostariam que os outros se comportassem.

A idéia central é a de que os agentes e a estrutura são mutuamente constitutivos, e o comportamento do indivíduo passa por um processo de construção e reconstrução social, com o surgimento de novas variáveis que influenciam o

comportamento (processo de sociabilização)204. O papel da percepção da realidade, dos valores e da identidade é essencial.

As normas são implementadas a partir de valores compartilhados, que surgem no processo de sociabilização. A cooperação, portanto, vem da convergência de valores e da construção social de uma identidade comum (“comunidade epistêmica”), proveniente do processo de sociabilização. Assim, idéias, valores, normas e crenças devem ser consideradas de forma central nas explicações sobre o funcionamento do sistema internacional.

No construtivismo, os Estados são influenciados pelas várias percepções de atores domésticos e a preocupação central é com as diferenças de interpretação da realidade. As instituições internacionais só existem se os atores se assemelham e têm a mesma percepção sobre estas. Em outras palavras, é preciso haver identidade entre atores para que a institucionalização da cooperação exista.

Para intelectuais construtivistas, as organizações internacionais têm um papel fundamental, podendo mudar a definição de interesses e identidades dos Estados e de outros atores. As instituições, assim, não se limitam a constranger o comportamento dos Estados ou a modificar a gama de opções disponíveis para os mesmos: realizam também sua própria transformação.

A expansão da atuação da sociedade civil global pode ser interpretada como sinal de falência das estruturas internacionais previstas na teoria neo- institucionalista, “pois o crescimento dessas organizações [da sociedade civil

204 Por esta mútua constituição, os construtivistas negam-se a ver seu pensamento como uma teoria, já que

este termo pressupõe imobilidade. Ao contrário, os pensadores preferem considerar que se trata de uma nova agenda de pesquisa, permeável às mudanças sociais.

organizada] testemunharia uma grande desilusão com a habilidade das instituições públicas internacionais para resolver problemas intra ou interfronteiras” 205.

Parece-nos que o setor da sociedade que efetivamente crê nos comitês e conferências temáticas da ONU, considerando-os elemento essencial para a construção dos direitos humanos internacionais, pautar-se-ia pelo pensamento construtivista. Os indivíduos que apóiam tais órgãos vêem-se como importantes definidores de políticas. Compartilham valores, constituindo-se como uma comunidade epistêmica clássica206.

Para estes novos atores, a ação dos Estados-membros é fortemente influenciada pelas suas percepções. Em outras palavras, é a própria sociedade civil, ao criar e recriar um ambiente de convergência de valores e de leitura da sociedade, que dá eficácia e efetividade aos Comitês. Nesse sentido, trazemos o depoimento de Tom Biggs, em entrevista a Liszt Vieira:

“(...) as ONGS podem ser poderosas aliadas para a mobilização do apoio e interesse público para o trabalho da ONU e na introdução de idéias e políticas inovadoras. Em retorno, tais organizações esperam ter uma influência crescente nos procedimentos da ONU. Uma das mudanças significativas decorrentes desta ação foi o reconhecimento de ONGs nacionais como apropriadas para se cadastrarem na ONU (entrevista

205L. VIEIRA. Os Argonaltas da Cidadania. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 142.

206 Neste sentido, Elisabeth Prügl afirma sobre a atuação dos movimentos feministas que: “Defenders of

international institutions find in global rules and international bureaucracies a potential source of women´s equality. Detractors distrust global visions of gender equality and gender-mainstreamed institutions, seeing in them mechanisms to co-opt feminist agendas while comenting gender hegemonies”

in International Institutions and Feminist Politics. Brown Journal of World Affairs. volume X – Issue 2 – winter/spring 2004, pp. 70 e 71. Disponível em: <www.watsoninstitute.org/bjwa/

pessoal realizada na CDS da ONU, em Nova York, em abril de 1998)”.207

Nos órgãos da ONU relacionados aos direitos humanos, a maior parte das decisões seria influencia pelo que está acontecendo nos movimentos sociais organizados em ONGs, mesmo que estas tenham poucos poderes formais208. Tal prática porventura superaria o déficit democrático existente na organização e oxigenaria a legitimidade da instituição.

Entretanto, como veremos no próximo capítulo, evidências empíricas desmentem esta percepção, reforçam a teoria neo-institucionalista e, quiçá, a neo- realista. Verificaremos que os poderes das recomendações, em termos gerais, são relativamente limitados209, deixando muito a desejar quanto à máxima implementação das Convenções em maneira geral.

Nossas hipóteses, de que a presença dos Estados nos comitês de temáticas econômico-sociais coloca-se em função de seus interesses individuais, e a de que o sistema da ONU concentra-se na manutenção do poder entre as potências (estrutura anacrônica e não condizente com a realidade atual, mas pouco possível de ser mudada, pois vai de encontro com os interesses das grandes potências) são reforçadas também ao analisarmos os dados reais no capítulo seguinte.

207 Op. Cit., p. 120.

208 Vale lembrar que o art. 70 da Carta das Nações Unidas, ao tratar da atuação do Conselho Econômico e

Social, refere-se a possibilidade de “consulta com organizações não-gorvernamentais envolvidas com

questões que estivessem dentro de sua própria competência”.

Importante relembrarmos que quando a ONU e outras agências internacionais foram criadas o pensamento funcionalista se apresentava presente e em debate nas academias de relações internacionais. O funcionalismo é tese relacionada ao pensamento de David Mitrany210 (logo adaptada, por Ernst B. Haas211, para neofuncionalismo e assim aceita, mundialmente, como “substituta”) e à criação do sistema de agências do Pós-Guerra. Seu alicerce ideológico está ligado ao normativismo como forma de controle à política externa dos Estados, estabelecendo uma conexão entre cooperação e segurança internacional. Assume que toda a humanidade tem um interesse comum no bem estar público, em setores pontuais como saúde, educação, transporte, comunicação etc.

Diferentes sistemas de governança internacional deveriam substituir o controle e função de setores especializados até então nas mãos dos Estados, que atuam de maneira desconexa sobre temas técnicos comum ao mundo. A máxima de que “a forma deve seguir a função” foi adotada como palavra de ordem do pensamento funcionalista em busca de um inédito tecnicismo apolítico.

Principal exemplo do funcionalismo pode ser extraído do próprio ato de criação da ONU: a estruturação da organização em três conselhos, com diferentes “funções”; a criação de agências especializadas como a Organização Mundial da Saúde, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual ou mesmo a UNESCO, que legalmente são tidas como agências funcionais nas quais as comissões diretoras não

210 Cf. The Functional Theory of Politics, Nova Iorque: St. Martin's Press, 1975.

211 Cf. Beyond the Nation-State functionalism and international organization, Stanford: Stanford

University Press, 1964 e Scientists and World Order: The Uses of Technical Knowledge in

seriam compostas por representantes governamentais, mas sim por especialistas (atores centrais do modelo) gabaritados no tema212.

Decorrência do tecnicismo proposto do funcionalismo, da construção de valores comuns, da interação, foi o spill over (transbordamento) da cooperação institucional existente nas agências especializadas para a arena da política. No cenário funcionalista o bem-estar da população é abandonado pelos Estados para passar a ser garantido através da cooperação internacional, permitindo a construção do “sistema de paz” idealizado por David Mitrany. Seu funcionamento dar-se-ia através de um aprendizado coletivo e da administração tecnológica avançada. Este sistema não apresentaria ameaça ao poder soberano estatal, pois a transferência da soberania ocorreria na parcela limitada ao temático proposto.

Os benefícios propostos pela teoria funcionalista podem ser resumidos na capacidade de abandonar o interesse nacional na cooperação, algo que somente especialistas poderiam realizar em temas específicos, concentrando em aspectos técnicos. Da mesma forma, as questões que estão por trás dos conflitos mundiais (como fome, doenças, pobreza etc.) poderiam ser erradicadas através do trabalho funcionalista em busca da cooperação. Assim, o funcionalismo permite a compreensão da realidade institucional das organizações internacionais. A perspectiva dessa corrente do pensamento será importante para analisarmos algumas das propostas de reforma da ONU expostas a seguir.

212 Prova incontroversa do caráter funcionalista da Organização pode ser obtida no próprio texto

institucional divulgado no site brasileiro da ONU, in verbis: “A missão da ONU parte do pressuposto de

que diversos problemas mundiais – como pobreza, desemprego, degradação ambiental, criminalidade, Aids, migração e tráfico de drogas – podem ser mais facilmente combatidos por meio de uma cooperação internacional. As ações para a redução da desigualdade global também podem ser otimizadas sob uma coordenação independente e de âmbito mundial, como as Nações Unidas”. Disponível em:

4.6 Em busca de alternativas de legitimidade: fortalecendo o sistema das Nações