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CAPÍTULO I – DO ESTADO MUNDIAL AO DIREITO GLOBAL:

1.4 Conclusões Parciais

Buscou-se no presente capítulo expor qual a concepção de direito internacional para duas das principais teses da teoria geral do direito do século XX.

A Teoria Pura do Direito desenvolvida por Hans Kelsen tem como objeto de estudo a filosofia da ciência do direito, entendendo o direito como um sistema complexo e articulado de normas, que se relacionam através de regras estabelecidas anteriormente, conectadas pelo modo como são produzidas e de acordo com o previsto na norma fundamental. Importante lembrar que tal sistema, para este autor, há de ser livre de qualquer valor cultural ou ideologia (característica fundamental de uma teoria pura).

58 In A. C. WOLKMER. Pluralismo Jurídico – fundamentos de uma nova cultura no Direito. São

O paradigma kelseniano pode ser resumido na busca da análise estrutural do direito, em detrimento da análise funcional, como ordenamento normativo específico, em função do seu modo de sistematização e produção das normas. Kelsen desconheceu qualquer concepção do direito como instrumento de transformação social, como instrumento promocional interventor (dirigente) da ordem social. Sua teoria, de maneira paradoxal, revelou-se muito próxima da ideologia liberal vigente no início do século passado, uma vez que endossa o direito como instrumento protetivo-repressivo de condutas.

Fiel ao arcabouço de sua Teoria Pura e ao formalismo lógico, o pensador austríaco desenvolveu sua teoria de direito internacional. Para ele, direito internacional há de ser um complexo de normas que regula a conduta recíproca dos Estados. Defende que há de apresentar-se como uma ordem soberana pressuposta e coercitiva da conduta humana em busca da paz mundial (ao nosso entender, idêntica neste ponto à concepção de pax desenvolvida por Kant59).

Entretanto, não institui qualquer órgão de criação e aplicação de suas normas propriamente ditas, encontrando-se no começo de uma evolução que o direito

59Mencionemos, brevemente, o conceito de paz perpétua kantiano, muito bem resumido nas palavras de

Soraya Nour: “O direito, até Kant, tinha duas dimensões: o direito estatal, isto é, o direito interno de

cada Estado, e o direito das gentes, isto é, o direito das relações dos Estados entre si e dos indivíduos de um Estado com os do outro. Em uma nota de rodapé na Paz perpétua, Kant acrescenta uma terceira dimensão: o direito cosmopolita, direito dos cidadãos do mundo, que considera cada indivíduo não membro de seu Estado, mas membro, ao lado de cada Estado, de uma sociedade cosmopolita”. Cf., I. KANT. A Paz Perpétua de Kant, São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 54 –5. Este mencionado direito

cosmopolita é a terceira condição positiva de Kant para a paz, e é estabelecido a partir do princípio da igualdade originária, isto é, de que todos têm o mesmo direito sobre o solo, direito decorrente do direito à liberdade. Lembremos que, para Kant, o único direito inato, transmitido ao homem pela natureza e não por uma autoridade constituída, é a liberdade como autonomia (neste sentido, vd., H. BIELEFELDT.

Filosofia dos Direitos Humanos, São Leopoldo: Unisinos, 2000, p. 90). Um dos principais aspectos que

diferenciam o pensamento kelseniano da tese desenvolvida por Kant é a concepção de uma dignidade humana. Kant atribui à dignidade humana um caráter inestimável, uma vez que esta se diferencia do valor monetário ou mesmo do valor afetivo, por ser inegociável e imaterial. Segundo Heiner Bielefeldt, “a

inegociabilidade da dignidade implica em exata igualdade de dignidade humana, mesmo que haja diferenciação social por prestígio ou posição. A busca por igualdade encontra seu fundamento ético na conscientização dessa dignidade humana, que se sobrepõe a todas as posições” Vd., Op. Cit., p. 84. Portanto, observa-se que a teoria kelseniana é pouco compatível à concepção de direito moderno desenvolvida por Kant, escorada em uma filosofia da moral e na dignidade do indivíduo.

estatal já percorrera. Suas normas são frutos de tratados ou de costumes, logo, intermediadas pelos membros da comunidade internacional: Estados-nação. Da mesma maneira, inexiste qualquer instância que decida o litígio através de um processo juridicamente regulado. A diferença entre Direito nacional e Direito internacional é apenas relativa: ela consiste, em primeiro lugar, no grau de centralização ou descentralização. O direito nacional é uma ordem jurídica relativamente centralizada.

Sua teoria apresentou a tese do monismo com primazia do direito internacional sobre o estatal. Para Kelsen, existe uma unidade cognoscitiva do direito no qual o direito internacional e direito estatal formam um conjunto unitário de normas simultaneamente válidas, no qual cada sistema encontra seu fundamento de validade no outro. Assim, Kelsen escreve que não existe nenhuma fronteira absoluta entre o direito nacional e o direito internacional.

A evolução jurídica é no sentido de abolir a imaginária linha divisória de direito internacional e ordenamento jurídico estatal, pois o último termo será a comunidade universal do Estado Mundial Federal, unidade organizacional jurídico- global hermética (livre de influências externas ao sistema jurídico), dotada de poder de polícia, submetida a um parlamento mundial e a uma Corte Judicial mundial. Kelsen tem o direito internacional como meio de conteúdo ilimitado à construção de um governo da Sociedade em nível mundial, ou seja, de um direito universal. Neste ponto, retomamos a crítica de que o modelo proposto por ele simplesmente transpõe a dimensão do modelo estatal para o global, sem propor qualquer alteração ao modelo unitário.

A sociedade pós-moderna é, entretanto, identificada pela pluralidade do global, em contraposição ao monopólio jurídico estabelecido pela teoria positivista. A

crise do monismo jurídico, a qual embasa a teoria atual do direito, é fato na medida em que este modelo jurídico não mais se presta a dar soluções eficazes para as demandas e anseios desta nova sociedade emergente e que difere bastante daquela sociedade para a qual o atual modelo foi originariamente concebido, ou seja, a burguesia.

Com a globalização, o Estado-nação passou a perder espaço relutando contra o surgimento de estruturas normativas ultra-fronteriças concorrentes ao seu ordenamento, que relativizam a soberania e comprometem o monopólio da força de coação. É nessa estrutura que se desenvolve na teoria geral do direito a concepção do direito como um sistema flexível no qual o fechamento necessário ao sistema é harmonioso à sua abertura para o ambiente. Tal alternativa à crise do Estado-nação é a Teoria Social Sistêmica.

O direito chamado de global se escora na coordenação de normas elaboradas através de grupos especializados na constituição do pluralismo jurídico espontâneo, concebido de forma independente do direito institucional estatal, viabilizando a convivência de uma economia de mercado global com medidas relacionadas ao bem-estar social. O direito outrora produzido nos “centros” abre espaço para aquele construído na “periferia”, na sociedade organizada, nos diferentes focos, para atendimentos de diferentes anseios sociais, sob uma nova ótica paradigmática.

As relações inter-sistêmicas são substituídas por relações complexas e instáveis, típicas da especialização funcional. Tal especificidade transpassa qualquer construção política ou econômica. O direito global, através da sociedade civil, autocontrola os efeitos de contingência e complexidade.

Todas as concepções estudas mostraram-se adequadas à realidade social em que se inseriam, exigindo adaptações na medida em que o mundo vai mudando. Na

forma como tem sido predominantemente concebido, o direito internacional mostra-se cada vez mais utópico, mas não por isso deixa de abrir novo horizonte de possibilidades para a construção de um mundo melhor.

Conforme ressaltado, vivemos hoje processos globalizantes fragmentados da sociedade civil, em relativa independência da política, na concepção do direito global pluralista, impulsionado por processos sociais e econômicos. A teoria dos sistemas considera como sociedade mundial o conjunto da pluralidade autônoma de sistemas sociais auto-referenciais interligados, acoplados estruturalmente, porém não diretamente determinados por ordens externas. Assim, pluralismo jurídico é a coexistência de diferentes processos comunicativos, de diferentes discursos jurídicos.

Dedicaremos ao estudo desta sociedade mencionada no capítulo seguinte. Trabalharemos com concepções históricas da sociedade civil a fim de apontarmos uma possível vertente global da sociedade civil, palco do fenômeno contemporâneo do pluralismo jurídico no qual agentes sociais que compartilham preocupações esforçam-se para alargar a militância dos direitos humanos para além dos limites territoriais dos Estados-nação e dos demais clássicos atores internacionais.

Por fim, a concepção pós-moderna de direito global pluralista, por encampar a sociedade civil como um dos agentes transformadores do direito, torna-se premissa para o desenvolvimento de nossa dissertação. Pretendemos demonstrar que os direitos humanos, para serem interculturalmente concebidos e superarem o modelo hegemônico ocidentalmente imposto a diferentes culturas, necessitam de um pluralismo jurídico do tipo democrático participativo. Trazemos mais uma vez o pensamento de Antonio Carlos Wolkmer para sintetizar que “é na perspectiva paradigmática do Pluralismo Jurídico de tipo comunitário-participativo e com base num diálogo intercultural que se deverá definir e interpretar os marcos de uma nova concepção de direitos humanos”60.

60 In A. C. WOLKMER. Pluralismo Jurídico, direitos humanos e interculturalidade. SEQÜENCIA –

CAPÍTULO II – SOCIEDADE CIVIL: EM BUSCA DE UMA