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Aspectos elementares do Relatório do Painel de Pessoas Eminentes nas

CAPÍTULO III – POR UMA SOCIEDADE CIVIL GLOBAL LIVRE DE

4.6 Em busca de alternativas de legitimidade: fortalecendo o sistema das

4.6.1 Aspectos elementares do Relatório do Painel de Pessoas Eminentes nas

O Coordenador Chefe dos trabalhos salientou a atual importância de trabalhar este ponto da interação com a sociedade civil, visto que tal discussão está configurada em um cenário mundial de transição, no qual predominam a participação e influência de atores não estatais que desenvolvem novos traços da singular democracia do século XXI e modelam a compreensão multilateral da humanidade.

Assim sendo, o Painel acredita que o compromisso entre a sociedade civil e as Nações Unidas não é uma opção, mas uma necessidade essencial para desenvolver (“atualizar”) o papel da Organização, possibilitando identificar as prioridades globais e as tarefas a serem realizadas no século XXI. Destaca-se, também, que tal Painel foi uma

216Vd., P. KENNEDY. Op. Cit., p. 276.

importante oportunidade para a ONU trabalhar a relação entre a pluralidade de atores globais, que não são compreendidos como uma ameaça aos governos, mas ao contrário, possibilitam revigorar o poder intergovernamental.

Segundo o trabalho realizado, a opinião pública é chave essencial para as políticas e ações do poder governamental, mas, além disso, é fator essencial para assegurar a não erosão do multilateralismo.

O relatório parte da análise dos principais desafios e mudanças globais que afetam as Nações Unidas a respeito da sociedade civil e do multilateralismo. Fica claro que a questão não é como que a ONU gostaria de mudar, mas como a organização deve acompanhar o compasso das mudanças da humanidade (globalização, aumento da porosidade das fronteiras nacionais, novas tecnologias de comunicação, aumento do poder da sociedade civil e da opinião pública, crescente insatisfação das tradicionais instituições democráticas, descentralização, entre outros, que implicam na utopia do governo global).

Enquanto substância da política, a democracia vem rapidamente se globalizando, ao contrário do processo político, principalmente porque seus mecanismos e instituições tornam-se fracos e obsoletos. Constata-se que ficam restritos apenas a um nível local de atuação.

Durante suas discussões, o Painel trabalhou com quatro paradigmas principais: (i) tornar a ONU uma organização com “olhar externo”; (ii) abraçar a pluralidade de atores globais; (iii) conectar o local com o global; e (iv) ajudar a fortalecer a democracia (enfatizando a democracia participativa e a responsabilidade mais profunda das instituições públicas globais).

Foram sugeridos os seguintes tópicos como elementos mais relevantes de reformas, sustentados nos supracitados princípios:

(i) Afirmação do papel de convocador (convening role) das Nações Unidas: criação de uma rede global de políticas que promova o debate e coordene projetos de soluções diretas de problemas (“fostering multi-constituency processes”) no qual a Organização exerça o fundamental papel de mediadora/provocadora. Em outras palavras, frisa-se a necessidade de a ONU trabalhar com uma coligação de capacidades complementares e especificas, formando uma rede integrada, flexível e inovadora, gerando e gerenciando a circulação de informações mais eficientes e melhor colocadas para identificar e combater diretamente os problemas globais; O Secretariado Geral deve inovar e mediar tais redes, utilizando os mais modernos meios de comunicação para realizar consultas públicas o mais abrangentes possível. Concomitantemente, a ONU deve modificar o uso do mecanismo de conferências temáticas globais218, visto que é mais vantajoso e estratégico trabalhar os aspectos locais de cada situação e informar a opinião pública local, formando uma grande rede com os demais. Sobre o mesmo ponto, o Painel recomenda que as audiências públicas passem a ser utilizadas como estudo do alcance das alterações geopolíticas propostas pela ONU, contribuindo na qualidade de instrumento de calibragem. Assim, integrar audiências públicas para determinar e corrigir as metas globais. Trata-se de

218 Conforme dispõe o Relatório: “Member States have little appetite, however, for more such events,

seeing them as costly and politically unpredictable. They also see the fifth – and tenth-year anniversary conferences as repeating the same ground as the original conference, with few new results – even, in some cases, weakening previous agreements and commitments. And they resent how civil society and others use the opportunity to castigate them for failing to act on their promises”.

uma medida técnica, preocupada mais com a implementação do que com a formação de novas metas e políticas globais;

(ii) Investimento nas políticas de parcerias a fim de alcançar metas globais (especialmente com o setor privado), isto é, remover as restrições contra representantes não governamentais (assegurados apenas por convites ou como ouvintes) entre outros casos de acesso aos fóruns deliberativos, criando distintos tipos de fóruns usados em diferentes épocas estabelecendo um ciclo de debate global não apenas com as autoridades governamentais. Para manter um sistema de parcerias, o Secretário-Geral, juntamente com a aprovação dos países membros, deve: estabelecer uma unidade de desenvolvimento de parcerias organizado por uma comissão especializada a serviço das Nações Unidas, fornecer treinamento das parcerias para os governos e periodicamente rever as políticas de parcerias. Segundo a análise do Painel, a iniciativa privada é a chave da política das parcerias.

(iii) Reforço das contribuições da sociedade civil em nível estadual/local, sobretudo para que sejam atingidas as Metas do Milênio. Trata-se da prioridade de focar os problemas, bem como o processo de interação. O Grupo de Desenvolvimento das Nações Unidas219 deve assegurar que a liderança, a coordenação e a parceria do Estado sejam colocadas em prática para desenvolver as metas da ONU em níveis local e global. O nível local compreende em construir consensos locais visando às metas da organização, fornecer todo suporte possível para conseguir as Metas do Milênio e assegurar a rede de integração com o nível global, bem como suas deliberações. O nível global compreende o fundo de suporte para as

operações locais, o fortalecimento de parcerias não governamentais de cooperação e, sobretudo assegurar, a coordenação da rede;

(iv) Fortalecimento do Conselho de Segurança, por meio da atribuição de funções à sociedade civil. Os membros do Conselho de Segurança devem fortalecer o diálogo com a sociedade civil, com o apoio do Secretário-Geral. Para tal, devem melhorar o planejamento e a efetividade da “Arria formula” (mecanismo informal de consulta já existente, porém pouco democrático e inclusivo), tornando-o mais formal por meio de maior intercâmbio com especialistas e atores (vítimas) do assunto (seja custeando suas viagens para as reuniões, como os ouvindo localmente);

(v) Interação da ONU com representantes eleitos em níveis locais. As Nações Unidas devem freqüentemente encorajar debates entre os parlamentares dos Estados-partes sobre os problemas nacionais e as metas da ONU, bem como manter a mesma discussão entre os representantes dos respectivos Poder Executivo. Deve, também, incluir a obrigação de formulação de documentos pelos membros que contém o progresso do desenvolvimento das Metas do Milênio, entre outras metas adotadas. Os Estados-membros devem incluir regularmente representantes do Poder Legislativo em suas delegações para os encontros das Nações Unidas, envolvendo a maior participação destes dentro do sistema de deliberação da organização, nos projetos globais desenvolvidos, bem como estabelecer com estes comissões especializadas. Ainda, o Secretário-Geral deveria formar uma pequena Unidade de Coalizão de Representantes Eleitos (Elected Representatives Liaison Unit) incumbida de fornecer informações sobre os trabalhos legislativos dos Estados- membros, organizar a relação entre Poder Legislativo e Nações Unidas, entre

outros aspectos necessários para a sua consolidação. A Assembléia Geral, por sua vez, deveria debater uma resolução afirmando, respeitando e elegendo a autonomia local como um princípio universal.

(vi) Remodelamento e despolitização do processo de acesso ao credenciamento da sociedade civil junto à Organização. A grande proposta do Painel é estabelecer diversos fóruns para o engajamento entre a ONU e a sociedade civil. Entretanto, o envolvimento de organismos da sociedade civil em processos formais faz com que o procedimento de credenciamento ainda seja indispensável. Observa-se que os principais entraves são os aspectos políticos dos Estados-membros que barram uma completa participação da sociedade civil nos fóruns, por meio de seus processos de seleção para a credenciamento. A principal proposta seria unificar todos os processos de seleção existentes nas Nações Unidas em um único mecanismo coordenado pela Assembléia Geral. Trata-se de repensar o conceito de credenciamento, o qual deve ser reformulado por meio de um acordo entre a sociedade civil e os Estados-membros, baseado nos preceitos de competências, conhecimentos e habilidades, e não em aspectos exclusivamente políticos. É preciso assegurar um método eficiente de seleção dos pedidos. Dessa forma, o Painel propõe que os Estados-membros estabeleçam critérios e reportem-se ao Secretariado apresentando suas razões, além de se criar uma Unidade Credenciadora (Accreditation Unit), relacionada à Assembléia Geral, que verificará e supervisionará todos os pedidos. O Cardoso Panel sugere, ainda, que a ONU considere outros meios para diversificar e aumentar o credencimento, através da implementação de escritórios das Nações Unidas em outras localidades, elaboração de folhetos e cartilhas informativas etc. O

Secretário Geral deve conduzir uma revisão dos processos para melhorar as práticas e as prioridades, além de encorajar as parcerias já estabelecidas para itensificar os processos e colaborar com a rede a ser construída;

(vii) Reforma e saneamento da estrutura burocrática das Nações Unidas (novos cargos no Secretariado Geral). O Painel sugere o que deve ser determinado (em termos de habilidade, recursos, treinamento, gerenciamento e mudanças) na cultura institucional das Nações Unidas a fim de alcançar todas as propostas estabelecidas. Nesse ponto, o Painel apresenta uma das mais polêmicas mudanças: a criação de um novo escritório em Nova Iorque denominado “Escritório de Engajamento de Eleitorado e Parcerias”220, que reportaria diretamente à ONU, sendo liderado por um Sub-Secretário- Geral221. Deverá compreender agências já existentes para o engajamento da sociedade civil sobre o mesmo arcabouço técnico, abarcando: a “Unidade de Sociedade Civil”222 (a fim de absorver o “Serviço de Coalizão Não Governamental”223), a “Unidade de Desenvolvimento de Parcerias”224 (assumindo o “Fundo das Nações Unidas para as Parcerias Internacionais”), uma nova “Unidade de Coalizão de Representantes Eleitos”225 e os existentes “Escritório Global Compacto”226 e “Secretariado do Fórum Permanente de Questões Indígenas”. Em suma, este escritório seria responsável por formular e implementar estratégias de engamento das Nações Unidas e a sociedade civil, além de realizar seu respectivo

220 Tradução livre de Constituency Engagement and Partnerships Office.

221 “This office of Constituency Engagement and Partnerships would play a broad advocacy role, provide

strategic guidance, offer consultancy services to the United Nations on constituency matters and achieve a critical mass by bringing under one roof the relevant functions, existing and new, to maximize synergies and ensure coherence”, p. 61.

222 Tradução livre de Civil Society Unit.

223 Tradução livre de NGLS – Non-governamental Liaison Service. 224 Tradução livre de Partnership Development Unit.

225 Tradução livre de Elected Representatives Liaison Unit. 226 Tradução livre de Global Compact Office.

monitoramento. Por fim, também com a aprovação dos Estados-membros, o Secretário-Geral deveria iniciar um programa com cerca de trinta especialistas para auxiliar o programa de integração com a sociedade civil. A criação de um fundo para melhorar a capacidade de fomentar a participação da sociedade civil em países em desenvolvimento juntamente com a atuação das Nações Unidas e suas parcerias também é sugerida. O Secretário-Geral, para tanto, deveria buscar apoio de governos e fundações, bem como, outras fontes.

(viii) Fornecimento de uma liderança global. A ONU deveria utilizar sua liderança moral para fomentar atuações coordenadas da sociedade civil e encorajar governos a prover maior estabilidade e ambiente cooperativo para a sociedade civil. O Secretário-Geral deveria usar os poderes e mecanismos de coordenação que dispõe para melhorar o engajamento com a sociedade civil e outros autores, requerendo que todas as agências (inclusive as instituições de Bretton Woods) atinjam tais metas. Os Estados-membros deveriam encorajar e conduzir discussões em todos os fóruns da ONU a respeito da participação da sociedade civil, expandindo diálogos e parcerias.

(ix) Modelagem do futuro do multilateralismo. Todas as propostas expostas no Painel levam à reordenação e reconstrução do conceito de multilateralismo e de governança global. Segundo o Relatório, “o uso expandido de painéis e comissões surge, talvez não coincidentemente, no momento em que era das conferências globais encontra-se encerrada”227, e seria exatamente esta uma das provas das mudanças. A mesma alteração de paradigmas exposta no trabalho seria relevante para outros painéis de diversos temas. A ONU deve

227 Tradução livre de “the expanded use of panels and commissions comes, perhaps not coincidentally,

internalizar ações multilaterais com o intuito de continuar exercendo um relevante papel na ordem internacional228.