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Capítulo 1. Concepção pós-positivista da sentença

1.6 A oposicionalidade como elemento fundamental da norma jurídica

Neste tópico da monografia demonstrar-se-á como a norma é produzida na linguagem diante da conflituosidade de um caso concreto. Assim, a sentença é um ato criador e concretizador da norma jurídica, mais especificamente, o dispositivo da sentença. Contudo, não é apenas na sentença judicial que a norma se produz, ela pode ser produzida no plano meramente teórico; o que caracteriza a norma é a oposicionalidade.

Busca-se desse modo não incorrer em decisionismo como se apenas a sentença judicial fosse apta a produzir a norma jurídica. A fim de evitar o decisionismo, utilizaremos a oposicionalidade como um elemento fundamental para a norma. Não há a pretensão de uma elaboração acerca da teoria da norma, mas, sim, a utilização de conceito filosófico para melhor compreensão da norma e consequentemente das principais modalidades de sentenças objetos do trabalho, as manipulativas e interpretativas.

Günter Figal, com base em Heidegger, entende que a coisa precisa ser marcada pelo caráter daquilo que é contraposto. A aparição dos elementos próprios às coisas que se encontram contrapostas é um acontecimento. O caráter daquilo que se encontra contraposto não é atribuído arbitrariamente às coisas. Ele não existe sempre, nem para qualquer um. No entanto, ele está sempre presente como possibilidade55. Figal explica a oposicionalidade pelo quadro. O quadro encontra-se diante de nossos olhos como coisa, apenas o reconhecemos como quadro, uma vez que o compreendemos como coisa contraposta. O quadro não é outra coisa senão fenômeno e, na medida em que é em seu fenômeno apresentação, ele também responde pelo fenômeno daquilo que é apresentado. Com a obra encontra-se contraposto um texto que é oferecido como texto, por mais que ele ainda permaneça ligado ao elemento oposicional do mundo e da vida a uma coisa, a uma ação e a um acontecimento e, por isso, precisa ser liberado para si56.

55 Günter F

IGAL. Oposicionalidade, p. 142 e 145. 56 Günter F

Algo semelhante ocorre no mundo jurídico, vez que, para se acessar a norma, é preciso contrapor aquilo em que ela está contida, que na maior parte dos casos é a sentença. A sentença é mais um texto a integrar o ordenamento jurídico; apenas quando esse texto é contraposto, a sentença passa a ser vista como sentença, apta a revelar o fenômeno a ser apresentado; a norma. O que permite que um texto normativo seja contraposto e assim seja apresentada a norma é a problematização, a existência de uma conflituosidade a ser pacificada independentemente de essa conflituosidade ser real ou fictícia. A relação entre a problematização e a norma é o que passaremos a explicar.

A norma é produto da interpretação diante da problematização de um caso real ou fictício; sua existência somente ocorre na linguagem. Ela não está contida na lei, não é ante casum. A norma é produto da concretização do intérprete na qual são fundidos os elementos linguísticos (programa da norma) e os elementos não linguísticos (âmbito normativo). A norma surge no momento da aplicatio, produzindo-se para a solução de cada caso concreto. Na interpretação/produção da norma, a historicidade influencia toda a atividade do jurista em razão da fusão de horizontes estabelecidos no diálogo entre o hermeneuta e o texto, bem como toda a pré-compreensão que o intérprete carrega.

É na linguagem que se produz a norma em razão da oposicionalidade; a norma não pode ser confundida com o texto normativo (lei, decreto, portaria etc.) nem com a súmula vinculante, que também constitui texto normativo a ser aplicado ao futuro. A norma jurídica não é ante casum nem de aplicação pro futuro. A norma jurídica não pode ser identificada com nenhum texto, escrito ela é um fenômeno a se manifestar a partir de sua contraposição. Isso porque, conforme ensina Günter Figal: “só pode ser trazido à linguagem aquilo que não é linguagem, segundo o mesmo aspecto daquilo que é trazido à linguagem57”. Esta passagem evidencia a impossibilidade de se confundir norma com qualquer dispositivo previamente estabelecido no texto; da mesma forma que

57 Günter F

IGAL. Oposicionalidade, p. 84. Riccardo GUASTINI também não admite a norma sem

interpretação: “se empregamos ‘norma’ para nos referirmos ao conteúdo de sentido dos enunciados legislativos, não existem absolutamente normas antes da interpretação e independente desta. Das fontes às normas, p. 97.

a peça musical também não é idêntica àquilo que ressoa na apresentação58, a norma não pode ser confundida com seu teor literal, que é apenas um dos seus elementos de concretização e que permite sua apresentação59. Da mesma forma que a Flauta Mágica de Mozart é estruturalmente a mesma, são infinitas as apresentações que podem reproduzi-la. Logo, ainda que o texto a ser contraposto seja o mesmo diante da problematização perante o caso concreto, diversas são as normas por ele a serem produzidas. A norma de um caso concreto também não pode ser identificada e confundida com uma norma solucionadora de um caso anterior semelhante; ainda que o efeito prático seja o mesmo nos dois casos, cada caso jurídico possui sua norma, que sempre será única e irrepetível.

É na linguagem que se elabora a norma, ela é trazida à linguagem, principalmente, na decisão judicial. Esta deixa de ser um ato meramente silogístico; diante da hermenêutica, a decisão nasce e é produzida na aplicatio. Contudo, para que a sentença seja vista sob o enfoque hermenêutico, abandonando o silogismo oriundo do positivismo legalista, faz-se necessário pensar a teoria do processo sob um paradigma distinto do dominante, qual seja o da instrumentalidade do processo. Isso porque, para que seja possível uma concepção de sentença como ato hermenêutico que soluciona o conflito processual, é preciso ter em mente a importância da relação jurídica (alteridade).

58 “A peça musical também não é idêntica àquilo que ressoa na apresentação. Senão, ela seria

algo diverso em cada apresentação e, com isso, não seria mais aquilo que é, ela teria se dissolvido em suas apresentações, que, consequentemente, também não seriam mais apresentações. Desse modo, a música que se sonoriza só é uma interpretação, quando ela não é sonorizada de maneira imediata e irrepetível, tal como acontece nas improvisações. Aquilo que é interpretado é sempre algo, mais exatamente, algo que é passível de ser reconhecido uma vez mais e que, por conseguinte, é determinado nele mesmo. É por isso que o interpretável pode ser conhecido. Podemos saber antes da apresentação aquilo que será apresentado e, em geral, realmente o sabemos. Às vezes a partir de outras apresentações, conhecemos muito bem as peças musicais”. Günter FIGAL. Oposicionalidade, p. 84.

59 Gunter F

IGÄL ensina: “a interpretação, a compreensão e o caráter daquilo que se encontra contraposto se copertencem. É somente o elemento próprio às coisas contrapostas que precisa ser interpretado; é só por meio da interpretação que ele se descerra como aquilo que ele é porque somente o conhecimento apresentador preserva a exterioridade de sua coisa. Ele conta com ela e a expõe; nisto reside a sua distinção em relação a abordagem ligada ao objeto. E se uma apresentação é compreendida, a diferença entre apresentação e coisa também se torna presente juntamente com a coisa que ela faz valer. Assim, a compreensão de algo sempre se mostra ao mesmo tempo como uma compreensão da maneira como esta coisa é dada. Nós não compreendemos apenas algo, mas sempre compreendemos também a relação entre a interpretação, ou seja, a apresentação e a coisa contraposta. Aquilo que compreendemos desta maneira é a composição estrutural da apresentação”. Oposicionalidade, p. 150.

A relação jurídica como alvo de maior destaque no estudo do direito processual evita quaisquer assertivas autoritárias presas ao paradigma da estatalidade da justiça60, pois permite a manifestação efetiva de direitos e poderes que atravessam a historicidade em que se insere um determinado ordenamento jurídico, consagrando a possibilidade do exercício de poder do cidadão contra a autoridade estatal, superando a concepção do sujeito como mero participante sobre quem incidirá o poder jurisdicional, monopólio do Estado.

A concepção de relação jurídica que adotamos é a de Arthur Kaufmann, porque segundo Lamego, a obra de Kaufmann se movimenta numa intenção genuinamente filosófica e influenciada em grande medida pela filosofia hermenêutica de Heidegger e pela hermenêutica filosófica de Gadamer.

60 F

IORAVANTI identifica três modelos para a fundamentação teórica das liberdades. São eles: a) o

modelo Historicista, desenvolvido pela tradição anglo-saxônica das liberdades, cuja principal característica é que o reconhecimento dos direitos se dá num processo histórico que se confunde com a própria common law; b) o modelo individualista, que está presente, de alguma forma, tanto na tradição continental como na tradição anglo-saxã, como produto próprio dos processos de transformações sociais, culturais e do saber que se operaram na modernidade e foram, de alguma forma, aquilo que possibilitou o rompimento com o modelo político-jurídico-social predominante no Medievo. No continente, a expressão maior do modelo individualista se manifesta a partir da experiência revolucionária da França e das Declarações de Direito que a ela se seguiram. Na tradição individualista o Poder é transferido do Monarca Absoluto para o Povo, enquanto fruto da inspiração jacobina da democracia. Nesse modelo, a sociedade é composta de indivíduos politicamente ativos, com sua autônoma subjetividade distinta e precedente ao Estado, que impõe respectivamente a presunção geral de liberdade e a presença de um poder constituinte já estruturado. c) o modelo Estatalista, que se forma na Europa continental a partir do século 19, no período exatamente posterior à chamada codificação dos ideais jusnaturalistas com os Códigos Civis Francês e Alemão e que coincide com o aparelhamento burocrático do Estado de Direito liberal e a formação do Direito Público europeu. Cf. Maurizio FIORAVANTI. Los Derechos

Fundamentales. Apuntes de historia de las Constituciones. 4 ed. Madrid: Trotta, 2003, pp. 42/43. Cf. Georges ABBOUD e Rafael Tomaz de OLIVEIRA. O dito e o não dito sobre a instrumentalidade do processo: críticas e projeções a partir de uma exploração hermenêutica da teoria processual, pp. 45/47. Complementando a caracterização do modelo estatalista, cumpre esclarecer que: “Como afirma FIORAVANTI, o modelo estatalista se difere do individualista porque neste, ao contrário

daquele, se presume a existência da sociedade civil dos indivíduos como anterior ao Estado. Mas o elemento estado e o sentimento de descontinuidade histórica – que também se manifesta no modelo estatalista – se afigura presente já neste primeiro período pós-revolução. É interessante notar como que, historicamente, o modelo estatalista é possibilitado por aquilo que ele mesmo pretende superar. Com efeito, as principais estruturas estatalistas já estavam presentes na forma de fundamentar as liberdades do individualismo revolucionário. Há apenas uma “mudança de rota” com a radicalização do papel que o direito posto pelo Estado exerce em relação aos indivíduos (...). Para pontuar essa primeira diferença que estamos procurando afirmar, podemos dizer que, se no modelo individualista, a fundamentação das liberdades se dava através de uma situação pré- estatal que justificava o reconhecimento pelo Estado de direitos inalienáveis do indivíduo, no modelo estatalista é o fato da própria positivação da lei que fará as vezes de fundamento; ou seja, tecnicamente é certo dizer que, no interior do modelo estatalista, só há um direito: o de ser tratado conforme as leis postas pelo Estado” cf. Georges ABBOUD e Rafael Tomaz de OLIVEIRA. O dito e o não dito sobre a instrumentalidade do processo: críticas e projeções a partir de uma exploração hermenêutica da teoria processual, p. 46.

Procurando colocar a questão do Direito nos trilhos do problema da linguagem, Kaufmann se preocupa com a recuperação de uma dimensão filosófico-ontológica do Direito a partir da qual há uma tentativa deliberada de aproximação da ontologia aristotélico-tomista com os resultados da pesquisa fenomenológica e da filosofia existencial. Para Kaufmann, essência e existência do Direito encontram- se numa relação de tensão, decorrente de uma diferença ontológica. Essa diferença ontológica pode ser percebida tanto na estatuição quanto no “achamento” do direito, na qual se trata de trazer à correspondência o dever-ser e o ser, o que não poderá ocorrer nos termos de um silogismo lógico (modelo de fundamentação baseado em um modo matemático de ver o Direito), mas com base na elaboração de uma analogia: abandonada a ontologia da coisa (Kaufmann chama de “ontologia das substâncias”), passa-se a uma ontologia das relações – que é no fundo uma ontologia existencial61. Por certo, essa ontologia das relações não pode ser encarada numa perspectiva substancial de relação62. Isso seria cair novamente na malha das ontologias metafísicas (clássica e moderna). Em outras palavras: o Direito, em seu “modo de ser”, se manifesta relacionalmente na própria existência humana. Esse conteúdo relacional deve possibilitar uma nova perspectiva sobre o processo63.

Faz-se necessário salientar que a relação jurídica da maneira que propomos não é a mesma de Chiovenda, que distinguiu relação jurídica substancial da relação jurídica processual, que seria uma relação autônoma, complexa e pertencente ao direito público64. A ação, também na concepção de Chiovenda, diferencia-se da relação processual, porque aquela compete à parte

61 Cf. José L

AMEGO. Hermenêutica e jurisprudência, pp. 94/95.

62 Esta questão é decisiva no que atina à nossa investigação. Com efeito, a relação já apresentou

uma certa centralidade em outros momentos da teoria processual (este é o caso da pandectística). Todavia, a relação preconizada neste caso se fundamenta numa ontologia da coisa; ou seja, numa perspectiva ontológica que se mantém presa a um dualismo a partir do qual a relação era pensada fora do homem, como um objeto formal. Neste trabalho procuramos demonstrar, a partir da fenomenologia hermenêutica e das contribuições jurídicas de KAUFMANN, como a relação jurídica está vinculada ao homem num nível existencial, no plano da faticidade.

63 Georges A

BBOUD e Rafael Tomaz de OLIVEIRA. O dito e o não dito sobre a instrumentalidade do processo: críticas e projeções a partir de uma exploração hermenêutica da teoria processual, pp. 54/55.

64 Giuseppe C

HIOVENDA. Instituições de Direito Processual Civil. v. I., 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 56.

que tem razão65. Essa formulação de relação jurídica como categoria primordial da teoria geral do processo é alvo de críticas da doutrina de Fazzalari ao dispor que “o clichê da ‘relação jurídica’, que foi útil, ao seu tempo, para entender a ação como posição jurídica subjetiva em sua estrutura mais articulada, a da relação jurídica, uma vez que ela é considerada sob o plano das posições subjetivas, é incompatível com o processo, pois a relação jurídica é um esquema simples e incapaz de conter a complexidade do processo66”. Fazzalari assevera que a relação jurídica por ser categoria simples não demonstra a complexidade do processo e também por ser estática não consegue representar-lhe a dinâmica, devendo ser atualizada pela categoria do termo processo67.

Ocorre que empregar o processo ou a jurisdição como categorias centrais da teoria processual carrega uma concepção ainda autoritária do processo, possui ranços estatalistas, sem dizer que não possibilitam ao direito processual um acesso hermenêutico ao direito; assim sendo, desenvolveremos a relação jurídica como categoria primordial da teoria processual, mediante a filosofia de Arthur Kaufmann, lançando mão de sua formulação de relação jurídica.

Essa perspectiva permite a superação da visão nominalista do direito diante da qual este nada mais seria do que um conjunto de normas que regulam a vida humana, uma vez que “por relação jurídica se entende uma relação juridicamente relevante regulada pelo direito objetivo de pessoas entre si ou de pessoas e coisas. O conteúdo duma relação jurídica é, no mínimo, um direito subjetivo, na maioria, contudo, das vezes, são diversos direitos subjetivos68”. Por isso, entendemos que o estudo do direito processual não deve ter por hegemônico nem o instituto da ação, menos ainda o da jurisdição, mas sim o da relação jurídica, porque “o direito é uma correspondência, não tem um carácter substancial, mas sim relacional, o direito no seu todo não é, portanto, um

65 Giuseppe C

HIOVENDA. Instituições de Direito Processual Civil, v. I., p. 57. 66 Elio F

AZZALARI. Instituições de Direito Processual, p. 140.

67 Elio F

AZZALARI.Instituições de Direito Processual, p. 141. 68 Arthur K

complexo de artigos da lei, um conjunto de normas, mas um conjunto de relações69”.

Por fim, para encerrarmos este tópico, necessário ressaltar que o estudo do direito processual centrado na relação jurídica permite um acesso hermenêutico ao Direito, no caso, ao direito processual; nas palavras de José Lamego, a Hermenêutica sustenta que a interpretação não é meramente um conhecimento conceptual, mas experiência. Todo o texto requer, para ser compreendido, uma transposição, que se consubstancia numa mediação entre passado e presente (fusão de horizontes). A cadeia de mediações interpretativas radicada no continuum do tecido histórico implica, no Direito, a impossibilidade de abstrair das mutações e desenvolvimentos introduzidos no significado da norma pelas suas sucessivas concretizações (decisões particulares de cada caso). A exemplaridade da hermenêutica jurídica reside em que aí se põe em evidência que o sentido do texto está constitutivamente ligado à particularidade da situação, ao caso concreto a julgar”70. Este é o acesso hermenêutico que todos os ramos do direito devem buscar e para o qual a dogmática processual continua refratária.

No direito processual, examinar a teoria geral do processo com ênfase no aspecto relacional do direito é um grande passo em direção ao acesso hermenêutico, porquanto, “se tomarmos mais uma vez a imagem da ‘estrutura escalonada’ da ordem jurídica, então ver-se-á que o caminho da legislação até à decisão jurídica é o caminho da concretização, da positivação, do fazer histórico do direito. Não se segue todavia nem um caminho ‘directo’ das possíveis situações da vida passando pelo caso até o direito, mas sim um caminho ‘em forma de espiral’ (‘espiral hermenêutica’), em que dever (ideia de direito, norma) e ser (hipotética situação da vida, caso) são reciprocamente postos em correspondência71”.

69 Arthur K

AUFMANN. Filosofia do Direito, p.219. 70 José L

AMEGO. Hermenêutica e jurisprudência, p.182. cf. Georges ABBOUD e Rafael Tomaz de OLIVEIRA. O dito e o não dito sobre a instrumentalidade do processo: críticas e projeções a partir

de uma exploração hermenêutica da teoria processual, p. 55.

71 Arthur K

AUFMANN. Filosofia do Direito, pp. 219/220. Sobre espiral hermenêutica cf. Osuna FERNÁNDEZ-LARGO. La hermenêutica jurídica de Hans-Georg Gadamer , p. 101.

Desenvolver a teoria geral do processo com enfoque na relação jurídica - não a pandectista, mas sim a de Kaufmann - permite um acesso hermenêutico ao direito, porque possibilita uma visão da legislação até a decisão por meio de uma espiral hermenêutica em que a idéia do direito e a situação da vida são postos em correspondência. Também não fazemos a distinção da relação jurídica substancial e da processual; essa dicotomia objetifica a relação jurídica e é calcada na relação sujeito-objeto, a relação jurídica que propomos não se baseia em função de um sujeito solipsista (no caso da teoria processual o juiz) mas na intersubjetividade cujo fio condutor é a linguagem e o horizonte de sentido que caracteriza a “acontecência” da existência humana, sua historicidade, o fim do processo – a positivação da sentença passa a ser o fazer histórico do Direito, não se trata de posicionar as partes e o juiz numa relação angular como desde Bülow se preconiza, as partes e o juiz não estão numa relação triangular e sim circular.

A doutrina72 não está errada ao afirmar que a relação jurídica como categoria central do processo é uma visão insatisfatória que não consegue apreender o processo tanto na sua complexidade quanto dinamicidade. Poderíamos dizer que a relação jurídica assim tomada se mostra objetificada – no sentido da ontologia da coisa ou da substância. Entretanto, transferir a centralidade da teoria processual para o processo (procedimento em contraditório) ou para a jurisdição não contribui para perceber o processo em sua dinamicidade, porque todas essas categorias processuais são derivadas do ente privilegiado que nelas imprime seu “modo de ser”. Ou seja, o processo é dinâmico porque o próprio “modo de ser” do Ser-aí é dinâmico, e essa dinamicidade se dá em razão da estrutura relacional própria da intersubjetividade e de sua condição de ser-no-mundo. Portanto, ambos os casos ainda se encontram aprisionados nas armadilhas da tradição metafísica, que não conseguia pensar a unidade que existe entre homem (Ser-aí) e ser, criando, assim, os clássicos dualismos: consciência e mundo, objeto e mundo, palavras e coisas. Esse dualismo na teoria processual é evidenciado pelas diversas correntes mencionadas, no momento em que o conceito central de processo é apurado a partir da extração significativa de

72 Cf. Elio F

uma ‘coisa’ relação jurídica (Chiovenda), jurisdição (Dinamarco) ou o próprio processo (Fazzalari)73.

Da mesma forma que, em resposta a Kant, quando este dizia que era um escândalo não termos ainda encontrado uma ponte entre consciência e mundo, Heidegger, em Ser e Tempo, afirma que o escândalo é ainda estarmos procurando esta ponte, dando à Filosofia a contribuição originária da constituição ontológica de ser-no-mundo (do Ser-aí). Precisamos, então, perceber o processo em seu vínculo originário com o ente que lhe dá sentido. Esse vínculo originário entre o processo e o Ser-aí só pode ser estabelecido através da relação jurídica, não mais como uma categoria jurídica (que figura ao lado da ação, jurisdição,