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Capítulo 2. Efeitos da decisão de inconstitucionalidade

2.5 Coisa julgada

2.5.3 Coisa julgada, efeito erga omnes e a força de lei (Gesetzeskraft)

A coisa julgada opera-se sobre o dispositivo da sentença, de acordo com as premissas metodológicas que adotamos no primeiro capítulo da pesquisa, transita em julgado a norma decisória do caso concreto, materializada pelo dispositivo da sentença; os efeitos da sentença não transitam em julgado. A essa norma decisória podem agregar-se os efeitos erga omnes e vinculante; acontece que esses efeitos, como os demais efeitos da sentença, não transitam em julgado. Tanto é que pode ocorrer a materialização da coisa julgada sem a presença do efeito vinculante, tal como nas decisões em que ocorre o apelo ao legislador ou naquelas em que existe a decisão de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade ou em que a inconstitucionalidade é declarada pro futuro. Também pode existir a eficácia erga omnes sem a presença do efeito vinculante, tais como as sentenças oriundas das ações coletivas cujo interesse tutelado é o difuso. A eficácia erga omnes também pode prescindir da coisa julgada material; seria o caso de uma tutela antecipada na ação anteriormente descrita, enquanto o efeito vinculante não pode existir sem a formação da coisa julgada material, porque o efeito vinculante é exclusivo das sentenças definitivas de mérito.

A eficácia erga omnes está prevista no art. 102 § 2.° da Constituição e no art. 28 da Lei 9868/99. No Direito Alemão são basicamente três os efeitos identificados na sentença constitucional: a coisa julgada (rechtskraft), força de lei (Gesetzeskraft)158 e efeito vinculante (Bindungswirkung)159. A força de

158 A força de lei está prevista no § 31 (2) da Lei do Tribunal Constitucional Federal com a seguinte

redação: nos casos do § 13, números 6, 6a, 11, 12 e 14, a decisão do tribunal constitucional federal tem força de lei. Isso vale também nos casos do § 13, número 8a, quando o tribunal constitucional federal declara uma lei compatível ou incompatível com a lei fundamental, ou nula.

lei é instituto característico do direito alemão e está prevista no § 31 Abs. 2 da BVerfGG. A força de lei atribui efeito erga omnes ao caso julgado. O efeito vinculativo (Bindungswirkung) se limita aos órgãos do Poder Público, a força de lei se impõe perante a todos, inclusive perante os particulares160. O efeito vinculante, por sua vez, pode estender-se aos motivos determinantes, não se restringe ao dispositivo, porém não vincula os particulares, apenas os órgãos constitucionais e a Administração Pública161.

Em Portugal está prevista a força obrigatória geral que atua em três dimensões: a) declaração de nulidade em que o ato normativo é eliminado, em regra a declaração é retroativa em relação aos efeitos desde que foi verificada a invalidade; b) força de caso julgado formal e material; c) eficácia perante a todos, que consiste na vinculação do dispositivo da sentença às autoridades públicas e aos particulares162.

Sobre o tema, Rui Medeiros destaca que a força obrigatória geral implica que a decisão tomada pelo Tribunal Constitucional não pode ser ignorada em juízos ulteriores. A força obrigatória geral implica a vinculação não apenas dos tribunais, mas de todos os órgãos e agentes do poder político do Estado. Esse efeito também atinge os particulares, que ficam impedidos de contestar jurisdicionalmente o veredicto do Tribunal Constitucional163.

À medida que uma lei é declarada compatível ou incompatível com a lei fundamental ou com outro direito federal, ou nula, o dispositivo da decisão deve ser publicado no diário oficial da federação pelo ministério federal da justiça. Cf. a tradução da lei realizada por Luís Afonso Heck. Jurisdição Constitucional e legislação pertinente no direito comparado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, pp. 84/85.

159 O efeito vinculante está previsto no § 31 (1) da Lei do Tribunal Constitucional Federal com a

seguinte redação: As decisões do tribunal constitucional federal vinculam os órgãos constitucionais da federação e dos estados, assim como todos os tribunais e autoridades. cf. Luís Afonso HECK. Jurisdição Constitucional e legislação pertinente no direito comparado, p. 84.

160 Cf. Rui M

EDEIROS. A decisão de inconstitucionalidade, p. 774. 161 Cf. Pablo Pérez T

REMPS. Tribunal Constitucional e Poder Judicial. Madrid: Centro de Estudios

Constitucionales, 1985, pp. 262/263. José Ignácio BOTELHO DE MESQUITA. O desmantelamento do

sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, p. 90. Peter HÄBERLE. La

verfassungsbeschwerde nel sistema della giustizia costituzionale tedesca, pp. 70/72.

162 Cf. Carlos B

LANCO DE MORAIS. Justiça Constitucional. t. II., pp. 193/194. 163 Rui M

No direito nacional também se verifica a coisa julgada material no controle abstrato de constitucionalidade, e à coisa julgada dois efeitos podem ser agregados, são eles a eficácia erga omnes e o efeito vinculante. Cremos que em razão de determinadas particularidades de nosso ordenamento não é possível equiparar nosso efeito erga omnes à força de lei alemã ou à força obrigatória geral do direito português, até porque possuímos diversos provimentos com eficácia erga omnes sem que tenham sido proferidos no controle abstrato de constitucionalidade164.

No Brasil não possuímos o conceito de força de lei alemão, o que existe é a coisa julgada e sua eficácia erga omnes e o efeito vinculante. A eficácia erga omnes não é exclusiva da jurisdição constitucional, ela ocorre sempre que forem tutelados em juízo interesses difusos, nos termos do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor. Por sua vez, o nosso efeito vinculante, que atingirá a Administração Pública e os particulares, é exclusivo do controle concentrado de constitucionalidade e sua existência está atrelada à presença da coisa julgada material. Na nossa qualificação, o efeito vinculante é o que mais se aproxima da força de lei tedesca, ainda que não se identifique com ela. Provimentos do STJ podem agregar efeito vinculante no sentido de se permitir a utilização da reclamação para preservar sua competência e a autoridade da sua decisão; no entanto, o efeito vinculante que atinge a Administração Pública vincula os particulares e os impede de arguirem a inconstitucionalidade. Essa característica é atributo exclusivo do efeito vinculante existente no controle concentrado de constitucionalidade, daí que aproximamos o efeito vinculante do art. 102 § 2.° da Constituição à força de lei do direito alemão.

Em sentido contrário Juliano Taveira Bernardes entende que “a amplitude subjetiva do efeito vinculante é menor que a da eficácia erga omnes, pois não atinge particulares nem o próprio STF, tampouco o Legislativo de

164 Aproximando a eficácia erga omnes da força de lei v. Ives Gandra da Silva M

ARTINS e Gilmar Ferreira MENDES. Controle concentrado de constitucionalidade. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 585 et seq.

quaisquer das esferas federativas165”. Com a devida vênia, não concordamos com esse raciocínio, tal como demonstraremos. O citado jurista, ao afirmar que o efeito vinculante não atinge os particulares nem o próprio STF, força a conclusão de que essa vinculação seria realizada pelo efeito erga omnes, desse modo, a eficácia erga omnes é aproximada da força de lei alemã algo inconcebível em nosso ordenamento, uma vez que o efeito erga omnes não é exclusivo do controle abstrato de constitucionalidade, essa eficácia está presente em toda ação coletiva que tutele direitos difusos. Logo, ter-se-ia que concluir pela vinculação dos particulares e do próprio STF em todo provimento oriundo de ação civil pública que tutele direitos difusos, algo, obviamente, inconcebível. Nesse sentido, reafirmamos a necessidade de se conferir tratamento peculiar aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no Brasil, evitando equiparar nossa eficácia erga omnes à forca de lei alemã.

Entendemos que os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, em razão das particularidades e dos institutos existentes no sistema constitucional brasileiro, não podem ser simplesmente explicados com base nos efeitos do sistema alemão, sem que sejam feitas ponderações e exames críticos. Iremos realçar essa especificidade do ordenamento brasileiro com o intuito de sistematizar os efeitos da decisão de inconstitucionalidade no cenário nacional, atribuindo eficácia normativa à Constituição Federal, sem perder de vista a necessidade de se resguardar o sistema difuso de controle de constitucionalidade e a independência decisória dos juízes.

Para iniciarmos nossa sistematização, lançaremos mão do ensinamento de Theodor Maunz. O constitucionalista alemão destaca que determinados elementos como o efeito vinculante não estão contidos na coisa julgada formal nem material; esses institutos são cumulativos (Kumulativ), nenhum efeito é idêntico ao outro e nenhum deles elimina os demais166.

165 Juliano Taveira B

ERNARDES. Efeito vinculante das decisões do controle abstrato de

constitucionalidade: transcendência aos motivos determinantes?, in: Marcelo Novelino (org.). Leituras complementares de direito constitucional. 2.ed. Salvador: Jus Podium, 2008, p. 364.

166 Theodor M

AUNZ. Bundesverfassungsgerichtsgesetz. München: C. H. Beck, 1987, § 31, n. 15,

Esse entendimento orientará nossa sistematização acerca do tema, entendemos que os efeitos da coisa julgada material, erga omnes e vinculante não são excludentes, e sim cumulativos. Os efeitos erga omnes e vinculante não transitam em julgado, no processo constitucional, conforme será analisado, são efeitos que podem ser agregados ao dispositivo da sentença (coisa julgada).

A coisa julgada material que confere imutabilidade ao comando emergente da sentença opera-se, consoante expusemos, sobre o dispositivo da sentença constitucional, ela materializa a norma decisória do caso concreto, constituindo o texto normativo a ser aplicado nos casos futuros. O efeito erga omnes não é exclusivo da jurisdição constitucional; as sentenças proferidas em ação civil pública, se tutelarem interesse difuso, também terão efeito erga omnes (cf. CDC 103167). Provimentos oriundos do STJ também poderão adquirir efeito vinculante, no que diz respeito à possibilidade de se manejar a reclamação para garantir a eficácia e a autoridade desses provimentos (CF 105 I f).

Nos pronunciamentos do STF, o efeito erga omnes pode estar presente mesmo na ausência de coisa julgada, seria o caso, por exemplo, de uma tutela antecipada deferida pelo STF no bojo de uma ação civil pública ou mandado de segurança coletivo.

O efeito vinculante, por sua vez, no processo constitucional é dependente da anterior formação da coisa julgada material, até porque a Constituição em seu artigo 102 § 2.° atribuiu efeito vinculante apenas às decisões definitivas de mérito e, conforme será explicado, não poderá ser estendido aos motivos determinantes. Também poderá haver casos de decisões sem o efeito

Nelson NERY JUNIOR E Rosa M. A. NERY. Constituição Federal Comentada, coment 61 CF 102, p.

485.

167 A eficácia erga omnes não é uma característica exclusiva da coisa julgada operada na

jurisdição constitucional, toda ação coletiva que tenha a finalidade de tutelar interesses difusos terá esse efeito em razão do art. 103 do CDC. No sistema da common law existem provimentos da jurisdição ordinária que possuem eficácia erga omnes, são os judgments in rem, enquanto os judgments in personam possuem eficácia inter partes, e, ocupando uma posição intermediária, os privy, que, apesar de não possuírem eficácia erga omnes, a coisa julgada não se opera apenas inter partes, ela acoberta terceiros equiparados às partes sobre o tema cf. Nicolo TROCKER. La cosa juzgada civil y sus limites objetivos e subjetivos, p. 571 et seq.

vinculante, tais como aquelas que possuem apelo ao legislador ou aquelas que declaram a inconstitucionalidade sem pronunciar a nulidade.

A coisa julgada material proferida no processo constitucional tem efeito erga omnes não apenas em razão do disposto no art. 102 § 2.° da Constituição e no art. 28 da Lei 9868/99. A eficácia erga omnes é ínsita ao processo constitucional em razão do interesse difuso que o controle de constitucionalidade tutela. Ser ínsita não significa ser exclusiva, porque os provimentos do processo coletivo podem ter efeito erga omnes, tal como permite o CDC 103. O que é exclusivo do STF é a declaração de inconstitucionalidade no dispositivo da sentença com eficácia erga omnes. O controle difuso de constitucionalidade é permitido no bojo da ação civil pública, porém a declaração de inconstitucionalidade fica restrita à causa de pedir, à fundamentação e não ao dispositivo, ainda que tenha eficácia erga omnes.