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1. A TEATRALIDADE CIRCENSE

1.2 A origem do espetáculo circense “moderno”

A teatralidade é parte constituinte do espetáculo circense “moderno” desde sua origem, no final do século XVIII. Este novo modelo de espetáculo, aliado a um novo modo de organização do trabalho, configurou-se a partir da união, executada por Philip Astley (1742-1814), entre as exibições com cavalos e as atividades artísticas desenvolvidas por artistas mambembes que se apresentavam há centenas de anos nas feiras e ruas.

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Para maiores detalhes acerca da constituição do espetáculo circense “moderno” consultar Bolognesi (2003) e Silva (2007).

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Porém, antes de continuar a dissertar acerca das origens do empreendimento de Astley, devo esclarecer o que considero por teatralidade.

No senso comum, o termo teatralidade geralmente é usado para designar uma qualidade pertencente a um tipo de linguagem artística considerada mais ostentativa e artificial (MOSTAÇO, 2007).

Para esta investigação, considero a noção de teatralidade como anterior à noção de teatro, ainda que o vocábulo tenha sido cunhado somente no século XX, pelos encenadores russos Nikolai Evreinov e Vsévolod Meyerhold, em oposição ao teatro literário que estava em voga. Em 1908, Evreinov postula a existência de um instinto teatral inerente aos animais superiores, que lhes permite a manifestação de capacidades miméticas e lúdicas. Evreinov afirma que:

(...) o homem possui um instinto inesgotável de vitalidade, sobre o qual nem os historiadores, nem os psicólogos, nem os estetas jamais disseram a menor palavra até agora. Refiro-me ao instinto de transfiguração, o instinto de opor as imagens recebidas de fora, as imagens arbitrariamente criadas de dentro; o instinto de transmudar as aparências oferecidas pela natureza em algo distinto. Em resumo, um instinto cuja essência se revela no que eu chamaria de „teatralidade‟. (...) A teatralidade é pré-estética, ou seja, primitiva e de caráter mais fundamental que nosso sentido estético (EVREINOV, 1956 apud MOSTAÇO, 2007: 07).

O trecho acima suscita, de certa forma, a impressão de que esta noção de teatralidade proposta por Evreinov é muito abrangente, pois o homem, através deste instinto que lhe é inerente, pode ser capaz de encontrar vestígios de teatralidade em todas as coisas, situações e lugares. Desde estas primeiras investigações de Evreinov até a atualidade, os estudos a respeito deste assunto foram aprofundados e, atualmente, uma das principais pesquisadoras da temática é Josette Féral, professora da Université Paris 3 Sorbonne Nouvelle, na França. Féral – diferentemente de Evreinov – afirma que a teatralidade

não é uma qualidade que pertence a um objeto, a um corpo, um espaço ou um sujeito. Não é uma propriedade preexistente nas coisas, não está à espera de ser descoberta e não tem uma existência autônoma20 (FÉRAL, 2003: 44).

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Para a autora, a teatralidade é o resultado de uma vontade definida de transformar situações e retomá-las fora de seu entorno cotidiano, fazendo com que estas passem a significar algo diferente do usual (FÉRAL, 2003). Percebemos que, na verdade, esta é uma ideia semelhante à de Evreinov, quando este afirma que o ser humano possui um instinto de transmudar as aparências oferecidas pela natureza em algo distinto. Porém a diferença é que o que Evreinov acredita ser um instinto, Féral considera como uma vontade

definida.

Féral (2003) afirma também que só é possível entender ou captar a teatralidade como processo, que possui como ponto inicial e final o olhar do espectador, responsável por sinalizar, identificar e criar um espaço potencial para a realização do fenômeno teatral.

Para este estudo levarei em consideração as afirmações de Evreinov, porém as colocarei sob a óptica não do instintivo e sim, como defendido por Féral, da afirmação da atitude humana. Partirei principalmente das ideias de Féral, que considera a teatralidade como a ressignificação de situações fora de seu entorno cotidiano e como resultante do jogo com o olhar do espectador.

Dessa forma, todas as atrações pertencentes às artes circenses são dotadas de teatralidade, pois exibem os artistas em situações não cotidianas, num espetáculo alicerçado na relação direta e vital criada com o público. Esclarecido, então, o que considero por

teatralidade, dissertarei sobre as diferentes conformidades que a teatralidade circense

assumiu, ao longo dos anos, desde a consolidação do espetáculo circense com Astley até os chamados circos-teatro no Brasil.

Destaco que, no final do século XVIII, as escolas de equitação e apresentações equestres eram muito prestigiadas em toda Europa, pois o cavalo era um símbolo do poder da aristocracia. Montarias, corridas e cavalgadas eram apresentadas e, paralelamente a estas atrações, tiveram início as demonstrações de acrobacias equestres por parte de ex- militares que não se encontravam mais em situação de combate e que passaram a organizar espetáculos pagos ao ar livre, em geral nas praças públicas (SILVA, 2007).

Philip Astley, ex-suboficial do exército inglês e, portanto, exímio cavaleiro, é reconhecido por parte da historiografia como o criador da pista circular – chamada de picadeiro –, e da espetacularidade própria do circo “moderno”. A data desta criação varia

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entre 1769 e 1770, porém destaco que Astley teve antecessores. Français Defraine oferecia em Viena, desde 1755, espetáculos de caça ao javali e ao cervo, combate de animais e exibição equestre em um anfiteatro ao ar livre e com pista circular. Friso ainda que inúmeras companhias de exibições equestres em recintos cercados, porém ao ar livre, se formaram nesse mesmo período, como, por exemplo, a de Price e de Jacob Bates, também em Londres (SILVA, 2007; BOLOGNESI, 2009).

A novidade implantada por Astley não diz respeito, portanto, ao espaço cênico do picadeiro ou às exibições equestres. A grande inovação reside no fato de Astley ter agregado ao espetáculo equestre outros números, através da inclusão de artistas mambembes que dominavam múltiplas formas de manifestações artísticas.

O circo surgiu, então, como uma nova possibilidade de campo de trabalho, tanto para muitos soldados e seus cavalos, que se tornaram inúteis com o fim das guerras napoleônicas, quanto para os artistas mambembes, que estavam assistindo ao progressivo esvaziamento das feiras, seu principal local de trabalho. Acerca da mudança de perspectiva de trabalho dos artistas saltimbancos, Bolognesi destaca:

(...) as tradicionais feiras europeias sofreram duros golpes com a chamada revolução comercial que tomou conta da Europa, no século XVIII. Aos poucos, as principais cidades trocaram as oficinas artesanais, de produção individualizada, por um processo padronizado, semimecanizado, para atender a um amplo leque de clientes. (...) As transformações na esfera produtiva provocaram mudanças nas práticas culturais populares. As feiras perderam gradativamente sua importância, tendendo ao desaparecimento. Esse esvaziamento colocou no desemprego grande número de artistas ambulantes, saltimbancos, saltadores, acrobatas, etc. (BOLOGNESI, 2003: 38).

Ao unir a exibição de números de destrezas equestres com as variadas manifestações artísticas dos saltimbancos, que se apresentavam há centenas de anos nas feiras e ruas, Astley criou não só um novo modo de organização do trabalho artístico, como também um novo modelo de configuração de espetáculo, como bem detalha a pesquisadora Erminia Silva:

Com relação ao espetáculo, (...) é que de fato Astley teria sido criador e inovador. No início, oferecia aos londrinos acrobacias equestres sobre dois ou três cavalos, e os maneava com sabre. Quando começou a se apresentar no espaço cercado por tribunas de madeira, não realizava apenas jogos ou corridas a cavalo, como a

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maioria dos grupos do período. A uma equipe de cavaleiros acrobatas, ao som de um tambor que marcava o ritmo dos cavalos, associou dançarinos de corda (funâmbulos), saltadores, acrobatas, malabaristas, hércules e adestradores de animais (...) Esta associação de artistas ambulantes das feiras e praças públicas aos grupos equestres de origem militar é considerada a base do “circo moderno” (SILVA, 2007: 35).

Além disso, é importante ressaltar que o espetáculo criado por Astley não previa apenas a demonstração de habilidades físicas; pressupunha-se um enredo, uma história com encenação, música e a presença de cavalos, cavaleiros e saltimbancos, que chegavam também a se apresentar no dorso de cavalos. Pantomimas, mimodramas e hipodramas compunham o conjunto apresentado no picadeiro21.

Dessa forma,

O circo moderno nasceu com a mística de ser um espetáculo diferente, onde o público veria o inusitado das feiras, com o requinte e a classe de um espetáculo de teatro e a organização e a grandiosidade de um desfile militar (CASTRO, 2005: 60).

Figura 1: Anfiteatro de Astley, 1777. Fonte: BOLOGNESI, 2009: 03.

Figura 2: Anfiteatro de Astley, 1810. Fonte: SILVA, 2007: 36.

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Em seu artigo “Philip Astley e o circo moderno: romantismo, guerras e nacionalismo”, Mario Bolognesi descreve, em detalhes, duas dessas representações do circo de Astley: Mazeppa, inspirado em uma poesia de Lord Byron e Batalha do Alma, de natureza histórica.

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Desde sua origem “moderna”, o circo mantém uma característica viva: a capacidade de aproveitamento, absorção e reorganização de múltiplas formas artísticas – dentre elas, o teatro. Dessa forma, num movimento de mútua troca, o teatro londrino, que muito influenciava o recém-criado espetáculo de Astley, também foi influenciado por este:

O programa consagrado por Astley era composto, primeiramente, por um hipodrama. Em seguida, sob o título de Cenas no circo, encenava-se um misto de ato teatral com ginastas, contorcionistas, clowns etc., e exibições equestres. Eram burletas e pantomimas com marcado acompanhamento de uma orquestra. O sucesso de tal forma de espetáculo contaminou os teatros e os já citados palcos londrinos também adotaram esse programa (BOLOGNESI, 2003:188).

Destaco ainda que inicialmente os edifícios construídos por Astley e seus sucessores eram chamados de anfiteatros – o que nos permite novamente associar o nascente espetáculo circense à manifestação teatral. Somente em 1780, o cavaleiro Hughes, que havia feito parte da primeira trupe de Astley, montou a sua própria companhia e a esta deu o nome de Royal Circus; “pela primeira vez esse modelo de espetáculo produzido em tal espaço aparecia com o nome de „circo‟” (SILVA, 2007: 36). A partir de então, diversas companhias que já apresentavam espetáculos semelhantes passam a incorporar o termo “circo” em seus nomes e durante o século XIX houve a proliferação do espetáculo circense por toda a Europa, ao mesmo tempo em que algumas companhias já se aventuravam em outros continentes, principalmente a América.

Em seu livro O Elogio da Bobagem, Alice Viveiros de Castro (2005) apresenta um trecho de A Loja de Antiguidades, de Charles Dickens, no qual há uma descrição dos vários elementos que compunham a teatralidade no circo de Astley22:

Mas, nem imaginam que lugar aquele - o teatro de Astley! - com todas aquelas pinturas, dourados e espelhos; e um vago cheiro de cavalos, sugestivo de outras maravilhas! E as cortinas escondiam tão grandiosos mistérios, e aquela serradura tão branca e limpa, lá em baixo, na pista do circo! Entretanto, chegou a companhia e ocupou os respectivos lugares, enquanto os violinistas, olhando despreocupadamente para eles, iam afinando os seus instrumentos como se não quisessem que o espetáculo começasse e o conhecessem antecipadamente! E que

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O trecho foi retirado de um volume editado pelas Publicações Europa-América Ltda., Portugal, 1988, tradução de Maria de Fátima Fonseca, pg. 309 (nota de CASTRO).

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luminosidade aquela que se derramou sobre todos eles, quando uma fiada de luzes brilhantes se elevou vagarosamente! E foi ver a excitação febril, quando soou o pequeno sino e a música começou animada, com os tambores a rufar forte e os ferrinhos a fazerem-se ouvir suavemente! Razão tinha a mãe de Bárbara, ao dizer à mãe de Kit que a geral é que era o lugar onde se devia ver e ao perguntar- se a si mesma se não era muito melhor que os camarotes. E bem podia Bárbara hesitar entre rir ou chorar no seu deslumbramento e alvoroço. (...) E depois que maravilha o espetáculo em si mesmo! Os cavalos que o pequeno Jacob acreditou serem de carne e osso desde o princípio e as senhoras e cavaleiros que ele julgou serem a fingir e ninguém o conseguiu convencer do contrário, pois nunca tinha visto ou ouvido nada parecido; o disparo dos tiros (que fez Bárbara fechar os olhos); a dama abandonada (que a fez chorar); o tirano (que a fez tremer); o homem que cantava a canção com a criada da senhora e dançava ao som do coro (o que a fez rir); o pônei que se empinava sobre as patas traseiras ao ver o assassino, e não queria voltar a andar de quatro patas enquanto ele não fosse preso; o palhaço que se atrevia a meter-se com o soldado de botas; a dama que saltou por cima de vinte e nove fitas e caiu ilesa na garupa de um cavalo... tudo, tudo era maravilhoso, esplêndido e surpreendente! O pequeno Jacob aplaudiu tanto que as suas mãos ficaram inchadas. Kit gritava “an – kor” (do francês “encore”, que significa bis, nota da tradutora) no fim de cada coisa até acabar a peça em três atos (CASTRO, 2005: 56).

O texto de Charles Dickens deixa claro que, como dito anteriormente, o espetáculo criado por Astley era composto não só pela demonstração de habilidades físicas, como também por representações teatrais.

O texto também menciona a utilização de música e o rufar de tambores. Astley, que havia sido suboficial do exército inglês, compreendeu que, para o espetáculo que estava criando, era essencial que a companhia funcionasse sob uma rígida disciplina, semelhante à militar. Além disso, introduziu o uso de uniformes, o mencionado rufar de tambores e as vozes de comando para a execução de números de risco. Astley apresentava e ao mesmo tempo dirigia o show, “iniciando uma prática marcante, a do mestre de cerimônias, condutor do espetáculo, chamado entre nós, mestre de pista” (RUIZ, 1987).

O mestre de pista é um personagem fundamental para a estrutura de um espetáculo de variedades como é o circo tradicional. Muito mais do que um apresentador, ele é um diretor-em-cena, autoridade máxima no picadeiro, figura capaz de improvisar e garantir que o espetáculo siga seu curso mesmo diante dos mais insólitos imprevistos. De início, esse papel era representado pelo próprio dono do circo e durante muitos anos foi prerrogativa dos adestradores de cavalo. Como o espetáculo era centrado nas exibições equestres, o mestre de pista usava um longo chicote, um apito na boca e dirigia os animais em cena (CASTRO, 2005: 60 e 61).

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O espetáculo tinha como início e fim o desfile de todos os artistas e

(...) durante a exibição de cada número, aqueles que não estavam se apresentando formavam uma barreira no fundo do picadeiro, em posição de sentido, sempre prontos a interferir para garantir a segurança dos colegas, dos cavalos e do público. Essa estrutura permanece por mais de 400 anos nos espetáculos tradicionais de circo, com o desfile final de todo o elenco e a barreira de funcionários e artistas em forma e atentos durante os números de maior risco. (Idem: 53).

Acerca da barreira, Erminia Silva (2009) destaca que esta também é uma característica derivada da formação militar de Astley e que consistia em “posicionar duas fileiras de homens – ou mulheres23 – à entrada do picadeiro, cumprindo as funções de

homenagear o artista quando de sua entrada e auxiliá-lo com os aparelhos durante a sua exibição” (SILVA; ABREU, 2009: 96). Além disso, a barreira servia de indicativo do grau de organização do circo, sendo formada, portanto, sempre com bastante rigor.

Evidencio, então, que no circo de Astley – e posteriormente em seus sucessores – o elenco de artistas, além de desempenharem variadas funções nos bastidores, dominava diversas linguagens artísticas, que produziam um espetáculo que unia teatralidade, destreza corporal, dança, música, mímica e palavra. (SILVA, 2007).

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