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Circo-teatro através dos tempos : cena e atuação no Pavilhão Arethuzza e no Circo de Teatro Tubinho

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Academic year: 2021

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FERNANDA JANNUZZELLI DUARTE

CIRCO-TEATRO ATRAVÉS DOS TEMPOS: CENA E ATUAÇÃO NO

PAVILHÃO ARETHUZZA E NO CIRCO DE TEATRO TUBINHO

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Artes

FERNANDA JANNUZZELLI DUARTE

CIRCO-TEATRO ATRAVÉS DOS TEMPOS: CENA E ATUAÇÃO NO

PAVILHÃO ARETHUZZA E NO CIRCO DE TEATRO TUBINHO

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Mestra em Artes da Cena, na Área de Concentração Teatro, Dança e Performance.

Orientador: PROF. DR. MARIO ALBERTO DE SANTANA.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA

FERNANDA JANNUZZELLI DUARTE E ORIENTADA PELO PROF. DR. MARIO ALBERTO DE SANTANA.

______________________________ ASSINATURA DO ORIENTADOR

CAMPINAS 2015

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RESUMO

Esta pesquisa visa traçar algumas considerações acerca do fenômeno conhecido como circo-teatro, sob o viés do trabalho do ator. Propôs-se, como recorte de estudo, a descrição de alguns elementos da encenação e interpretação de duas companhias circenses: o Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza, uma das companhias de circo-teatro mais bem sucedidas do início do século XX e que encerrou suas atividades na década de 1960, e o Circo de Teatro Tubinho, um dos maiores representantes do circo-teatro na atualidade. Partindo do fato de que o espetáculo circense é sempre múltiplo e agregador de variadas linguagens artísticas, buscou-se, com essa pesquisa, compreender a arte de ator dos artistas dessas duas companhias e o modo como estes organizavam e organizam seus trabalhos. Afirma-se que a

teatralidade, em seus mais variados formatos, sempre esteve presente no espetáculo

circense desde sua origem “moderna” com Philip Astley, no século XVIII, e que, portanto, o circo-teatro não é a única, mas sim uma das diversas formas que a teatralidade circense assumiu ao longo dos anos. Afirma-se também que, em termos pedagógicos, o circo-teatro é uma escola formativa, com metodologia, princípios e caminhos próprios, constituindo um tipo de teatro tão relevante quanto o teatro tido como oficial. Assim sendo, essa pesquisa inspirada no fazer dos artistas circenses pode auxiliar o fazer de outros artistas, não oriundos desta escola e deste fazer teatral. E essa transposição é possível, pois, em última instância, todos os verdadeiros artistas buscam a mesma finalidade: a troca viva e verdadeira com seu público.

Palavras-chave: Circo. Circo-teatro. Interpretação. Pavilhão Arethuzza. Circo de Teatro Tubinho.

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ABSTRACT

The purpose of this study is to set some considerations around the phenomenon known as drama-circus, under the scope of the acting work. It has been set out, as the point of study, the description of some acting and performing elements from two Circus Companies: Circo Teatro Pavilhão Arethuzza, one of the most successful drama-circus companies from the beginnig of the 20th century, which has shut down its activities in the 60‟s, and Circo de Teatro Tubinho, one of the greatest representatives of the drama-circus nowadays. Starting from the fact that a Circus show is always assorted and somatic of several artistic languages, this research has pursued the understanding of the art of the actor of the artists from these two companies and the way they organized and still organize their work. It has been stated that the theatrical performance, in its most diferente ways has always been presente in a Circus Show since its “modern” origin, done by Philip Astley, in the 18th century, and, therefore, the drama-circus is not the only one, but one of the several ways that circus theatrical performance has taken on along the years. It has been also asserted that, in pedagogical terms, the drama-circus is a ladder school, with its own methodology, principles and ways, composing a type of theater as relevant as the one known as oficial. Therefore, this study, inspired on the circus artist performance could also support the other artists performance, whose are not native of this theatrical performance. This transposition is achievable, because, as a last resort, all the real artists search the same goal: a vivid and truthful exchange with their audience.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 1

1. A TEATRALIDADE CIRCENSE ... 17

1.1 Reflexões iniciais acerca do trabalho do ator ... 17

1.2 A origem do espetáculo circense “moderno” ... 35

1.3 As teatralidades circenses ... 42

1.4 Uma das vertentes da teatralidade circense: o circo-teatro... 50

1.5 Relação com o público e a arte de agradar ... 65

2. O PAVILHÃO ARETHUZZA ... 77

2.1 Trajetória ... 77

2.2 Processo de formação/socialização/aprendizagem no Pavilhão Arethuzza ... 91

2.3 A primeira parte do espetáculo ... 98

2.4 A segunda parte do espetáculo ... 122

2.4.1 Ensaio e ensaiador ... 122 2.4.2 Repertório ... 131 2.4.3 O ponto ... 137 2.4.4 Elementos da encenação ... 141 2.4.5 Triangulação ... 157 2.4.6 Tipologia ... 162

3. O CIRCO DE TEATRO TUBINHO ... 191

3.1 Trajetória ... 191

3.2 Processo de formação dos artistas do Circo de Teatro Tubinho... 217

3.3 Repertório ... 245

3.4 Elementos da encenação ... 265

3.5 Ensaios e processos de criação ... 282

3.6 O palhaço Tubinho ... 310

3.7 Os escadas... 344

3.8 Cena e improvisação ... 355

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5. REFERÊNCIAS ... 403 6. ANEXOS ... 411

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Ao saudoso professor Rubens Brito e ao querido professor Luiz Monteiro. E também à Santina Jannuzzelli, Nery Duarte, Terezinha Duarte e N.B, com amor.

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A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Valência e Francisco, que se dedicaram por completo ao projeto mais audacioso e complexo da vida de qualquer pessoa: criar um filho. À minha irmã Flávia, um dos seres humanos mais sensíveis que já conheci. À vocês, meu amor eterno e incondicional.

À todos os meus familiares.

À Rodrigo Mallet pelas incontáveis conversas e reflexões sobre o circo e por toda ajuda com esta pesquisa. Mas, sobretudo, por me mostrar diariamente o lado leve da vida e por todo o companheirismo e amor.

Ao meu orientador, Mario Santana, pelo incentivo, dedicação, empenho, amizade e risadas. À Aline Olmos, minha dupla companhia, por compartilharmos um mesmo sonho risonho, pela amizade, confiança e aprendizados.

Aos “Damiões” Carolina, Lara, Rafael, Rodrigo, Ricardo, Presto e Sun, pela convicção de que “todo artista tem de ir onde o povo está”.

Aos companheiros do Encontro Geraldo Riso, Ésio, Joana, Ivens, Guga, Helena, Duba e Thiago, por me mostrarem que a união faz a força e faz o riso ser ainda mais prazeroso. Aos amigos Andressa Nishiyama, Camila Morosini, Danielly Oliveira, Gabriel Cruz, Gabriel Tonelo, Gabriela Guinatti, Janaína Iszlaji, Lenny Alpízar, Mariá Guedes, Marina Regis, Moira Junqueira (e Olívia), Rafael Ary, Renata Wassall, Tatiane Santoro, Vitor Poltronieri, pelos aprendizados, risadas e afeto.

Às amigas de Itajubá, Anna, Carolzinha, Marina, Byanca e Clara, pelos longos anos de amizade verdadeira, que resiste à distância e diferentes caminhos que a vida nos leva. À Laíza Dantas, Breno Tavares , Bruno Spitaletti, Rodrigo Pocidônio e Paula Hemsi, os eternos “palhacitos”, pelo início da jornada em conjunto.

À todos os colegas e professores da graduação em Artes Cênicas da Unicamp, em especial ao professor Roberto Mallet por todos os ensinamentos.

Aos professores Luiz Monteiro e Rubens Brito, mestres que me apresentaram ao universo do circo e do teatro brasileiro.

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À Helder, Luiz, Bento, Benê, Dalvina, Letícia, Vivien, Joice, Rodolfo, Vinícius, Andrea e demais funcionários do Instituto de Artes.

À Fernando Neves, Santoro Junior e sua esposa Anna Maria Santoro, pela disponibilidade e generosidade.

À toda família do Circo de Teatro Tubinho, em especial à Zeca e Angelita, por toda a generosidade e carinho com o qual me acolheram. E à Ana Dolores, Débora Ignácio, Morgana Lunardi e Lucélia Reis, amigas que levarei por toda a vida.

À professora Grácia Navarro, pela enorme contribuição durante o exame de Qualificação desta pesquisa.

À Erminia Silva, sempre solícita e gentil ao responder minhas dúvidas e questionamentos. E também aos demais entrevistados durante a pesquisa ainda não citados: Tiche Vianna e Wanderley Martins.

À FAPESP, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, por viabilizar esta pesquisa.

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INTRODUÇÃO

“O povo sabe exprimir artisticamente coisas profundas com simplicidade. Certos intelectuais somente conseguem exprimir com ferrugenta complexidade ideias profundamente vazias”.

Bertholt Brecht

Esta dissertação de Mestrado se configura como o aprofundamento da pesquisa que desenvolvo desde 2007 acerca da manifestação teatral conhecida como circo-teatro.

Proponho, então, um estudo acerca de alguns elementos da encenação e interpretação de duas companhias circenses: o Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza, que foi uma das companhias de circo-teatro mais bem sucedidas do início do século XX e que encerrou suas atividades na década de 1960, e o Circo de Teatro Tubinho, um dos maiores representantes do circo-teatro na atualidade.

Dessa forma, ao longo do texto, o leitor irá se deparar com o registro das reflexões e inquietações de uma atriz/pesquisadora acerca de questões relacionadas ao trabalho do ator, destinadas, portanto, principalmente a outros atores.

Meus primeiros contatos com a teatralidade circense se deram em 2007. Eu estava no primeiro ano da Graduação em Artes Cênicas, na Universidade Estadual de Campinas e “ouvi falar” pela primeira vez que, antigamente, muitos circos brasileiros apresentavam peças de teatro, sendo que a cada noite se encenava um espetáculo diferente. Ensinaram-me também que ainda existiam algumas dessas companhias e que eram chamadas de circo-teatro. Quem me apresentou a este universo foi o saudoso e querido professor Rubens Brito, a quem devo meu eterno respeito e gratidão.

Rubinho – como era carinhosamente chamado – contou, em uma de suas aulas da disciplina História do Teatro: Formas Espetaculares do Teatro no Brasil, sobre sua experiência com a companhia da qual fazia parte na juventude, o Grupo de Teatro

Mambembe, e como este fundamentou seu trabalho na pesquisa acerca das representações

teatrais nos circos:

O Grupo de Teatro Mambembe, fundado no início de 1976 por Carlos Alberto Soffredini e mais dezesseis artistas, estreara, em novembro desse mesmo ano, com A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança. O

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espetáculo foi criado especialmente para ser representado nas praças públicas da capital e do interior do Estado de São Paulo (na época, ainda não era usual o emprego do termo „teatro de rua‟). Entre a reunião do elenco e a estreia, o grupo realizou uma intensa pesquisa nos circos-teatros, os quais se apresentavam na periferia da capital, em especial no Circo-Teatro Bandeirantes, o maior e o mais bem equipado de todos. É no circo-teatro que o Mambembe encontra os elementos essenciais do espetáculo popular (BRITO, 2006: 79).

Após esse primeiro contato com o circo-teatro através de Rubinho, intuí que residia nessa manifestação teatral, que até então não fazia parte do meu horizonte cultural, algo que poderia me interessar. (Confesso que na frase anterior tentei exprimir, de maneira mais contida, o que aconteceu de fato: simplesmente uma paixão à primeira vista).

Ao mesmo tempo, no segundo semestre de 2007, eu e mais quatro colegas de turma, Breno Tavares, Bruno Spitaletti, Laíza Dantas e Rodrigo Pocidônio, começamos a realizar, por iniciativa própria e despretensiosa, encontros extracurriculares à grade do curso, nos quais investigávamos aspectos relacionados à arte do palhaço. Neste início de trabalho éramos “guiados” por Bruno e Breno, os únicos que já haviam realizado cursos sobre a temática no Estúdio Nova Dança, em São Paulo. Com o tempo nos consolidamos como um grupo de pesquisa teatral – existente até hoje – que passou a se chamar Academia

de Palhaços.

Foi então que o professor Márcio Tadeu, em sua disciplina Formas

espetaculares no Ocidente/Oriente, propôs como trabalho final a elaboração de uma

pesquisa sobre algum segmento teatral que nos despertasse interesse. Desse modo, resolvi conhecer melhor aquele tal de “circo-teatro”, seguindo minha intuição e também a linha de trabalho ligada ao circo que estava começando a desenvolver com a Academia de Palhaços.

Por coincidência – ou providência – descobri que um curso intitulado “A interpretação no circo-teatro” seria ministrado em São Paulo, na Casa de Cultura Amácio Mazzaropi, aos sábados à tarde durante todo o segundo semestre de 2007. O ministrante seria o ator e diretor Fernando Neves, pertencente à sexta geração da família circense Viana-Santoro-Neves, do Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza.

Fernando Neves passou a infância no circo da sua família e viu, ainda criança, este encerrar suas atividades. Depois de adulto, durante anos renegou sua origem circense,

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apesar de reafirmar sua veia artística ao formar-se pela EAD – Escola de Arte Dramática –, da Universidade de São Paulo.

Porém, anos mais tarde, Neves resolveu resgatar a história de sua família, passando a compreender a potência criativa existente na teatralidade circense. Desde então, desenvolve, há mais de dez anos, uma profunda pesquisa acerca do circo-teatro, juntamente com a companhia paulistana Os Fofos Encenam, da qual faz parte como ator e diretor. Além de uma contundente pesquisa teórica – ainda não publicada –, Neves realizou com Os Fofos Encenam a remontagem de diversas peças que faziam parte do repertório do Pavilhão Arethuzza: a alta comédia A Mulher do Trem (2003), o drama Ferro em Brasa (2006), a burleta caipira Vancê não viu minha fia? (2013), o melodrama policial A ré misteriosa (2013), o drama religioso A canção de Bernadete (2013) e a chanchada Dar corda pra se

enforcar (2013)1.

Partindo da tradição circense de sua família, Neves desenvolve um olhar histórico sobre o circo-teatro, porém colocando-o sob a luz da contemporaneidade. Digo isso porque algumas companhias na atualidade que, assim como Neves, propõem o resgate da tradição do circo-teatro, muitas vezes se restringem a reproduzir as peças exatamente como eram encenadas há décadas, fazendo com que estas pareçam “peças de museu”. Dessa forma, ao recriar parte da tradição circense de sua família, Neves engendra uma poética e uma estética profundamente baseadas em sua herança teatral, mas que possuem, ao mesmo tempo, algo de inovador e original.

Fernando Neves foi, então, através do curso na Casa de Cultura Amácio Mazzaropi, a minha primeira grande referência a respeito da teatralidade circense como um todo e, mais especificamente, do circo-teatro.

Além deste curso, extremamente importante para minha formação, desde 2007 participei de diversos outros cursos, palestras e mesas redondas, acerca tanto da manifestação teatral do circo-teatro quanto da figura do palhaço, com nomes como Dirce Militello, Erminia Silva, Neyde Veneziano, Mario Bolognesi, Daniele Pimenta, Antônio

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A classificação das peças nestes subgêneros foi realizada pelo próprio Fernando Neves e a companhia Os Fofos Encenam, seguindo a tradição da família Viana-Santoro-Neves, do Pavilhão Arethuzza.

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Santoro Junior, tio de Fernando Neves e apelidado de Toco, Leris Colombaioni, Ricardo Puccetti, Ésio Magalhães, Fernando Sampaio e Philippe Gaulier.

Em 2008, a Academia de Palhaços iniciou um estudo específico – que se tornou a base de seu trabalho – sobre o palhaço de picadeiro da tradição circense brasileira, sob a orientação do querido professor de Técnicas Circenses da Graduação em Artes Cênicas, Luiz Monteiro. Mais uma vez eu escolhia o circo como o caminho a ser trilhado para a construção de minha técnica pessoal e trabalho artístico.

Ainda em 2008, Fernando Neves, a convite de Luiz Monteiro, ministrou no Departamento de Artes Cênicas da Unicamp um curso análogo ao que havia ministrado na Casa de Cultura Amácio Mazzaropi. Também participei deste curso e, através deste segundo contato com Fernando Neves, me surgiu a ideia de dar continuidade a minha pesquisa, dessa vez sob os formatos acadêmicos.

Assim sendo, no ano de 2009 formalizei todos os estudos desenvolvidos até então através da pesquisa de Iniciação Científica, financiada pelo CNPq, intitulada “O que os olhos veem o coração sente – O trabalho do ator do espetáculo circense à cena teatral”, sob a orientação da Profª. Drª. Sara Lopes.

Esta Iniciação Científica, que verticalizava os estudos sobre a questão da interpretação no circo-teatro, contava com o desenvolvimento de uma frente prática de pesquisa no primeiro semestre de 2010. Para tanto, propus a criação de um grupo de estudos que aliei à Academia de Palhaços; estava aberta, então, a segunda frente de trabalho do grupo: o circo-teatro. Para o desenvolvimento de nossas atividades obtivemos o apoio da Faepex – Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e à Extensão da Unicamp – e contamos com a orientação do próprio Fernando Neves, que gentilmente aceitou o meu convite de trabalho.

Em 2010, na convivência com Fernando Neves conheci o Circo de Teatro Tubinho, uma das poucas companhias de circo-teatro que continuam a itinerar na atualidade pela região Sudeste. Em várias oportunidades visitei a companhia e conferi de perto como se configuravam os espetáculos de circo-teatro desta trupe, liderada por José

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Amilton Pereira Junior, de nome artístico Pereira França Neto, porém mais conhecido entre os seus pelo apelido Zeca e entre o público pelo próprio nome de seu palhaço, Tubinho2.

Ainda em 2010, Zeca e Fernando Neves foram os convidados do II CESC -

Ciclo de Estudos sobre o Circo, com o tema “É causo de palhaço!”, realizado no

Departamento de Artes Cênicas da Unicamp, sob a organização do professor Luiz Monteiro e da Academia de Palhaços.

Dando continuidade ao trabalho iniciado com o grupo de estudos da pesquisa de Iniciação Científica, no segundo semestre de 2010, a Academia de Palhaços encenou, como montagem de formatura do curso de Artes Cênicas, o espetáculo O Mistério Bufo –

Um retrato heroico, épico e satírico da nossa época, de Vladimir Maiakovski, com direção

também de Fernando Neves. Esta montagem foi realizada através do PICC (Projeto Integrado de Criação Cênica) da disciplina Estudos Teatrais IV: Poéticas Cênicas, com orientação da Profª. Drª. Isa Kopelman e era baseada na linguagem criada por Fernando Neves a partir das referências teatrais de sua família.

Em 2011 continuei a pesquisa acerca das manifestações teatrais circenses e do palhaço de picadeiro, porém não mais com a Academia de Palhaços. Neste recomeço, eu e outra colega de Graduação, Aline Olmos, fundamos, em 2012, a Dupla Cia, que hoje integra o coletivo que organiza o Encontro Geraldo Riso, juntamente com os grupos Barracão Teatro, Cia Suno, Circo Caramba e Família Burg, todos sediados em Barão Geraldo – Campinas. Estes grupos, que possuem em comum a pesquisa acerca da figura do palhaço e, consequentemente, a vontade de fazer rir, vêm desenvolvendo diversos projetos artísticos que cruzam suas trajetórias e fortificam o movimento teatral e cultural campineiro.

Finalmente, em 2012, após estar totalmente afetada pelo tema, decidi investigar, nesta pesquisa de Mestrado em Artes da Cena, os procedimentos envolvidos na criação da cena e no modo de atuar dos artistas circenses que apresentavam e apresentam peças teatrais nos circos itinerantes de lona ou pavilhão. Porém, considerando a ideia de

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Entre todos esses nomes – o verdadeiro, o artístico, o apelido e o nome do palhaço – optei por usar, daqui por diante nessa dissertação, o apelido “Zeca”.

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que “quanto mais se restringe o campo, melhor e com mais segurança se trabalha” (ECO, 1989: 10), era necessário que eu escolhesse um recorte ainda mais específico.

Para tanto, delimitei a pesquisa à investigação de alguns elementos da encenação e interpretação das duas companhias circenses com as quais havia estabelecido contatos mais profundos ao longo de minha trajetória artística e acadêmica: o Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza e o Circo de Teatro Tubinho.

Além disso, a escolha por estas duas companhias também se deu pelo fato de já existir um diálogo entre elas desde 2010, quando Fernando Neves redirigiu, a convite de Zeca, um dos espetáculos do Circo de Teatro Tubinho, o melodrama Maconha, o veneno

verde – que fazia parte do repertório de diversos circos do século passado e que passou a se

chamar O seu único pecado. Esta empreitada fez parte de um projeto de reelaboração e releitura de seis peças do repertório do Circo de Teatro Tubinho e foi financiada pela Petrobrás, através da lei de incentivo à Cultura do Ministério da Cultura e Governo Federal.

Ao definir, então, o recorte para esta pesquisa, a primeira questão que me surgiu e que acabou por me nortear foi o fato de que, ao pesquisar questões referentes ao trabalho do ator circense, o meu “objeto de estudo” era constituído, na verdade, por matéria viva, por seres humanos.

Isto me leva a enunciar o foco desta dissertação, portanto, como sujeito de

estudo, ao invés de objeto, pois no campo da configuração artística, busco compreender

como sujeitos/ artistas/ seres humanos representavam e representam encenações teatrais nestas duas companhias circenses.

Escolhidos os sujeitos de estudo, parti, então, parafraseando o Grupo de Teatro

Mambembe, à procura “„dos que têm experiência‟, não com o avental esterilizado e as luvas

de borracha do pesquisador, mas com o cuidado e o respeito de quem está lidando com o que desconhece”3

.

Destaco, então, primeiramente, que o circo de números de variedades que povoa, hoje, o imaginário das gerações mais recentes – e mais próximas da minha realidade

3

Programa da peça A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança, do Grupo de Teatro Mambembe em parceria com o SESC – Serviço Social do Comércio – de São Paulo. Programa encontrado nos anexos da tese de Livre Docência “Teatro de rua: princípios, elementos e procedimentos” do professor Rubens Brito (2004).

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de classe média do Sudeste do Brasil – constitui, na verdade, uma das diversas formas e configurações que o espetáculo circense assumiu ao longo dos anos.

Se fizermos uma retrospectiva da história do espetáculo circense no Brasil veremos que, na primeira metade do século XX, grande parte dos circos dividia a função em duas partes e que estes circos eram chamados de circos-teatro.

Na primeira parte do espetáculo eram executados, geralmente no picadeiro, os números de variedades (mencionados anteriormente e que povoam o imaginário coletivo), como malabares, trapézio, acrobacias, mágica e entradas de palhaços. Além disso, era muito comum a apresentação de números de canto e de dança – estes últimos conhecidos como bailados –, a presença de convidados especiais, como cantores de sucesso da época, e até mesmo a execução de sorteios, bingos e competições de luta livre, boxe, capoeira e partidas de futebol feminino.

Em seguida, na segunda parte do espetáculo, os mesmos artistas que haviam se apresentado na primeira parte retornavam à cena para representar, sobre um palco, peças de teatro dos mais variados gêneros.

Dessa forma, além do termo “circo-teatro” ser usado para nomear as próprias companhias circenses que organizavam o espetáculo da forma descrita anteriormente, a maior parte da bibliografia também nomeia como “circo-teatro” a possível estética ou linguagem desenvolvida nas representações teatrais apresentadas, a partir do início do século XX, nos palcos dos circos brasileiros.

Há ainda um desdobramento desta nomenclatura: segundo Mario Bolognesi (2010), as companhias de circo-teatro da atualidade – como a própria companhia de Tubinho –, que se dedicam apenas à representação teatral, sem a apresentação da primeira parte de variedades, preferem ser chamadas de circos de teatro.

Os circos-teatro permaneciam semanas e até meses numa mesma cidade e, para que se mantivessem financeiramente, era necessário que a cada dia se representasse uma nova peça. Cada circo contava, portanto, com um imenso repertório de peças – conhecido

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entre os circenses como “baú da família” – que eram levadas4

com o objetivo maior de

agradar5 a plateia, que voltaria na noite seguinte e, assim, manteria o circo vivo.

Desse modo, as companhias circenses, ao longo dos anos, representaram peças pertencentes a diversos gêneros teatrais, em encenações que amalgamavam as mais variadas linguagens e estéticas artísticas. A multiplicidade de gêneros e estéticas prevaleceu e uma mesma companhia podia encenar da mais simples chanchada a tragédias como Otelo, de William Shakespeare e óperas como Tosca, de Giacomo Puccini, por exemplo.

Para tornar possível, portanto, a representação de uma peça diferente a cada dia e a construção das personagens por parte dos atores – isso tudo sem perder o público de vista e levando em conta suas particularidades –, os artistas circenses desenvolveram uma série de técnicas e recursos que configuram modos de encenação e de interpretação extremamente funcionais e com alto teor de teatralidade.

Esta pesquisa almeja, então, o reconhecimento e a descrição de algumas dessas técnicas de composições cênica e interpretativa que constituem este modo particular de manifestação teatral, mantida viva até hoje por algumas companhias circenses que continuam a itinerar pelo país.

Além de toda a multiplicidade de gêneros e estéticas, já citada anteriormente, se voltarmos ainda mais no tempo e chegarmos ao século XIX, veremos que, no Brasil, mesmo antes da divisão do espetáculo em duas partes, as companhias já representavam diversas encenações teatrais, no picadeiro ou em pequenos tablados, as quais davam o nome genérico de pantomimas (SILVA, 2007).

Se retrocedermos ainda mais veremos que, na verdade, a representação teatral sempre esteve presente nos circos, desde a sua origem “moderna” com Philip Astley, na Europa. Isto porque o espetáculo pensado por Astley previa, além das exibições equestres, a participação de artistas oriundos dos teatros de feira europeus; artistas estes que dominavam as mais variadas linguagens artísticas, dentre elas, a arte teatral. Dessa forma, desde Astley eram representados nos circos hipodramas e mimodramas.

4“Levar uma peça” é um termo recorrente entre os circenses. Durante as visitas ao Circo de Teatro Tubinho

por diversas vezes ouvi frases como “Qual comédia que vai ser levada hoje?”.

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Este termo, que será detalhado adiante, também é constantemente usado pelos próprios circenses e será usado, também, ao longo dessa dissertação.

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Além de todas estas questões, é inegável que mesmo as apresentações ligadas à demonstração de habilidades e destrezas físicas, bem como os números de canto e bailados, também possuem elementos de teatralidade em suas composições. Nesses casos, o virtuosismo do artista é evidenciado e enaltecido pelos elementos de teatralidade explorados na composição de sua apresentação.

Assim sendo, fica claro que a teatralidade6, sob os mais variados formatos, sempre esteve presente no espetáculo circense “moderno” e que, portanto, o circo-teatro não é a única, mas sim uma das diversas formas que a teatralidade circense assumiu ao longo dos anos.

E ainda mais: segundo Erminia Silva (2010), é difícil pensarmos até no “circo-teatro” como um gênero único, pois este se caracteriza como um movimento múltiplo, que dialoga diretamente com a realidade do local onde o circo se encontra, fator este que determina, portanto, a configuração de diferentes tipos de espetáculos, que possuem alguns elementos em comum e, ao mesmo tempo, outras tantas especificidades. Dessa forma,

A história polifônica e polissêmica do circo brasileiro nos autoriza mais a falar em teatro no circo apresentando todas as modalidades possíveis de representações teatrais do que em circo-teatro como um gênero único, ou pelo menos dois, como se tem definido: comédia e (melo)drama. A formação do artista circense em cada período histórico e dentro do complexo significado do conceito de teatralidade circense englobou as mais variadas formas de expressões artísticas constituintes do espetáculo circense. Uma das principais características desse fazer circense de todo o século XX, até pelo menos 1950, era sua contemporaneidade com a diversidade de gêneros teatrais, musicais e da dança produzidos, o que garantia presença nos palcos/picadeiros diálogo e mútua constitutividade que estabeleciam com os movimentos culturais da sua época. Com essas características de contemporaneidade e de sinergia com seu tempo e culturas locais, vivendo o próprio teatro que se fazia na sua época, como pensar a história teatral circense como produção de uma única forma de representação e gênero único? (SILVA, 2010: 221).

Além de toda multiplicidade acima citada, todo espetáculo de circo está pautado sobre a explícita premissa de agradar o espectador. Este termo é tão importante e tão utilizado entre os circenses que percebi que ele deveria não só estar presente nesta dissertação, como também deveria ser investigado e questionado mais a fundo.

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Dessa forma, ao longo do texto, dissertarei sobre este termo que, a meu ver, representa fundamentalmente o objetivo final de qualquer espetáculo teatral, seja ele circense ou não, pois agradar tem a ver com algo de fato se passar entre nós. Ou seja, tem a ver com o fenômeno teatral realmente acontecer. E, no caso do circo itinerante de lona, que trava uma relação direta com a arrecadação por bilheteria, o maior termômetro de que “ocorreu teatro” é o espectador sair do espetáculo certo de que voltará na noite seguinte.

Ademais, no circo, esse algo se passar entre nós está ligado a várias instâncias que vão além do espetáculo, pois este é apenas um dos elementos inseridos na relação ritual que o circo constrói com a cidade onde se estabelece.

Dessa maneira, o circo conforma-se à realidade, aos desejos e necessidades de cada localidade, o que faz com que as encenações de um circo do Nordeste, por exemplo, sejam diferentes das encenações de um circo do Sul, assim como o espetáculo apresentado para o público de uma metrópole seja diferente do apresentado numa cidade do interior.

Ficará claro, portanto, que agradar não deve ser visto como algo pejorativo, mas sim como o nomeador de um conjunto de elementos estruturais desse ofício, no qual os artistas circenses sempre dialogam, agregam e retrabalham os múltiplos movimentos culturais de sua época. Desse modo, o espetáculo circense estabelece uma estreita conexão com o imaginário do espectador que o assiste e destina-se ao divertimento, no melhor sentido da palavra, de um público extremamente diversificado, constituído por diversas classes sociais e níveis intelectuais.

Devido a esta heterogeneidade de gênero, estética e público, o leitor perceberá que não classificarei o espetáculo circense nas usuais categorias “cultura erudita”, “cultura popular” e “cultura de massa”. Creio, assim como a pesquisadora Erminia Silva, que os circenses

(...) apreendiam, recriavam, produziam e incorporavam referências culturais múltiplas e eram assistidos pelos trabalhadores, intelectuais, artistas e a população mais abastada. Desta forma, o circo não será analisado a partir de conceitos como popular/erudito, pois os mesmos não dão conta da multiplicidade e do intercâmbio de relações culturais, sociais e artísticas que envolvia (SILVA, 2007: 21).

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11

Durante minhas estadias no Circo de Teatro Tubinho – parte constituinte da pesquisa de campo proposta nessa pesquisa – pude ver de perto como a afirmação anterior de Erminia continua sendo válida também para esta companhia da atualidade.

Porém, apesar de não classificar o espetáculo de circo nas categorias “erudito”, “popular” e “de massa” – por este trabalhar com as mais diversas influências e se destinar às mais variadas camadas da população –, acredito que o circo-teatro deve ser compreendido como uma manifestação artística fundamentalmente comercial, sendo que este termo não deve ser visto como algo pejorativo, mas sim como a afirmação da arte enquanto profissão.

Além disso, outros termos que geram grandes discussões na atualidade, acarretadas por uma disputa política e de saberes, são os que procuram classificar os circos como “tradicional”, “novo” e “contemporâneo”. Dentro destas categorias, o Pavilhão Arethuzza e o Circo de Teatro Tubinho, apesar de estarem separados temporalmente e possuírem características muito específicas, possuem em comum o fato de serem considerados atualmente como circos “tradicionais”7.

Neste estudo utilizarei o termo “tradicional” partindo do significado que este tem para os próprios circenses e que diz respeito à formação integral que este modo de organização do trabalho requer. Erminia Silva afirma que:

(...) ser tradicional, para o circense, não significava e não significa apenas representação do passado em relação ao presente. Ser tradicional significa pertencer a uma forma particular de fazer circo, significa ter passado pelo ritual de aprendizagem total do circo, não apenas de seu número, mas de todos os aspectos que envolvem a sua manutenção (SILVA; ABREU, 2009: 82).

Acerca, agora, da estrutura desta dissertação, destaco que optei pela abordagem qualitativa, considerando a natureza descritiva e exploratória do estudo e realizei o levantamento dos dados através dos seguintes procedimentos metodológicos:

a) Pesquisa bibliográfica e documental;

7

Os artistas do Pavilhão Arethuzza, assim como os artistas das demais companhias itinerantes de lona, não se autodenominavam “tradicionais”. O conceito “tradicional” é algo datado e passou a ser utilizado a partir da década de 1970, para diferenciar o modo de organização do trabalho dos circos itinerantes de lona dos novos modos de organização do trabalho e do espetáculo que passaram a se consolidar com a abertura das artes circenses a novos sujeitos históricos, principalmente através da criação das escolas de circo.

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b) Entrevistas semiestruturadas com artistas, ex-artistas circenses e pesquisadores da temática, a saber: Erminia Silva, doutora e pesquisadora do circo-teatro e descendente da família Wassilnvich, que no Brasil virou Silva; Fernando Neves, ator e diretor descendente da família Viana-Neves-Santoro, do Pavilhão Arethuzza; Antônio Santoro Junior, também descendente do Pavilhão Arethuzza e tio de Fernando Neves; Ésio Magalhães, ator e diretor teatral, que redirigiu o espetáculo Cabocla Bonita, do Circo de Teatro Tubinho; Tiche Vianna, diretora teatral, que realizou a preparação de elenco da remontagem de Cabocla Bonita, do Circo de Teatro Tubinho; Wanderley Martins, do Grupo de Teatro Mambembe; Pereira França Neto (Zeca), o palhaço Tubinho; e os atores do Circo de Teatro Tubinho: Alexandre Vieira, Ana Dolores, Angelita Vaz, Cristian Bryan (Tito), Cristina Martins, Débora Ignácio, Dimitri Augusto, Dionísio Martins, Lucélia Reis, Luciane Rosã, Morgana Lunardi, Nicolas Alexandre e Riccielly Lunardi.

c) Pesquisa de campo, que incluiu visitas a acervos de memória do circo, viagens a São Paulo para acompanhamento do projeto Baú da Arethuzza, de Fernando Neves e a companhia Os Fofos Encenam e, principalmente, diversas visitas ao Circo de Teatro Tubinho, de 2013 a 2015.

A partir dos dados levantados, inicio o primeiro capítulo tecendo algumas reflexões acerca do trabalho do ator e a busca pela sua técnica pessoal, que são, na verdade, os principais motivos que me levaram a esta pesquisa.

Defino, então, o que considero como teatralidade para descrever, em seguida, algumas das diversas formas e configurações estéticas que a teatralidade circense assumiu, desde a origem do espetáculo “moderno” com Philip Astley até ao chamado circo-teatro no Brasil.

Após reconhecer, no primeiro capítulo, a multiplicidade da teatralidade circense, incluindo a diversidade existente dentro do próprio fenômeno descrito como circo-teatro, realizo, nos demais capítulos, uma análise mais verticalizada sobre alguns

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13

elementos da encenação e interpretação no Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza e no Circo de Teatro Tubinho.

A análise destes pontos se configura como algo extremamente complexo, pois como já foi exposto anteriormente, o espetáculo circense é sempre heterogêneo, multifacetado e polissêmico, o que não me permite falar na existência de apenas um modo de se fazer circo-teatro. Desse modo, ao estabelecer este recorte, busco entender como os artistas dessas duas companhias desenvolviam seus trabalhos, e não generalizar ou buscar uma fórmula do que seria a estética ou a linguagem do circo-teatro.

Destaco ainda que, dentro deste recorte, os elementos da encenação dos espetáculos foram estudados, não com o objetivo de mostrar minuciosamente as suas composições e especificidades, mas sim para demonstrar como a elaboração e articulação destes elementos potencializam e alavancam o desempenho dos intérpretes.

É importante ressaltar que a escolha de uma companhia de circo-teatro do passado e uma da contemporaneidade evidenciará, inevitavelmente, que muitas transformações ocorreram ao longo dos anos. Porém, não desejo aplicar nenhum juízo de valor a esta análise nem enaltecer o circo do passado em detrimento do atual. O fato é que o circo é sempre contemporâneo – no sentido de não apresentar atrações anacrônicas – e reflete em cena os desejos dos espectadores; desse modo é condição sine qua non que um espetáculo do Pavilhão Arethuzza não seja igual a um do Circo de Teatro Tubinho.

O que pretendo com esta pesquisa, portanto, não é uma comparação entre as duas companhias e muito menos a tentativa de torná-las simétricas. O que proponho é um diálogo através justamente da assimetria existente entre as duas, com destaque para os elementos e técnicas interpretativas utilizados por estes atores circenses, que podem auxiliar e complementar a formação de um ator não habituado com este tipo de fazer teatral.

Isso porque:

De João Caetano (o primeiro a se preocupar com a formação do ator brasileiro) até 1978, data da regulamentação da profissão de artista, o próprio palco é a grande “escola” na qual se formam os nossos intérpretes. A partir de então, a lei passa a exigir ou o certificado fornecido por uma escola (universidades ou escolas profissionalizantes de segundo grau) ou a aprovação pelo Sindicato dos Artistas,

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órgão responsável pela aplicação de um exame teórico e prático (BRITO, 2006: 178).

Quando conheci o circo-teatro compreendi, então, que existem outros “jeitos” de se fazer teatro, calcados sobre outros paradigmas, diferentes daqueles que eu estava habituada na Universidade. Dessa maneira, penso que em termos pedagógicos o circo-teatro também é uma escola formativa, com metodologia, princípios e caminhos próprios.

Minha pesquisa busca, então, tornar visível a riqueza e a complexidade envolvida no teatro realizado nos circos, colocado durante décadas à margem da história oficial. Para isso, busquei descrever, sob um formato acadêmico, este tipo de manifestação teatral genuinamente não acadêmica. Diante desse fato, minha maior preocupação foi a de promover a descrição de maneira simples e direta, de modo que esta seja inteligível a um ator com formação totalmente diversa ao universo circense e, ao mesmo tempo, seja passível de empatia e reconhecimento por parte dos próprios artistas circenses que me inspiraram.

Faço isso porque acredito que o principal problema da pesquisa em Artes dentro da Academia reside no fato de que os artistas/pesquisadores, em geral, descomplexificam a prática teatral e complexificam os conceitos que buscam explicá-la. A prática teatral é tida como algo simples/chapado e explicada através de conceitos, geralmente filosóficos, elaboradíssimos. Acredito, porém, que o artista/pesquisador deve fazer justamente o contrário, ou seja, deve olhar para a prática teatral com a complexidade que sabemos que ela tem e, a partir desta prática, elaborar conceitos simples pra explicá-la.

E é justamente por estar ciente de toda a complexidade envolvida no fazer teatral que não pretendo esgotar nem responder todas as questões levantadas ao longo do texto. O que posso fazer, nesse momento, é compartilhar, com quem demonstrar interesse, o que li, vi, ouvi, senti, vivi e compreendi – e o que não compreendi também.

Tenho ciência também de que não posso apartar meu fôlego investigativo de minha experiência prática. Por isso, ao longo da dissertação, vou comentando e refletindo a respeito de como a pesquisa foi, com o tempo, modificando e aprofundando o meu trabalho prático/artístico.

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15

Acredito que, dessa forma, esse estudo pode auxiliar um ator na busca de seu caminho pessoal para a criação poética – assim como vem auxiliando o meu próprio caminho. Isso porque, apesar de reconhecer o fato de que qualquer manifestação artística – e não só o circo – não pode, simplesmente, ser extraída por completo de seu contexto, acredito que é meu papel, enquanto pesquisadora em Artes, traduzir, por transposições e analogias, o que for possível de meu sujeito de estudo.

E essa transposição é possível, pois, em última instância, todos os verdadeiros artistas buscam a mesma finalidade: a troca viva entre as pessoas, num nível mais universal de comunicação, aquele que é de ser humano para ser humano. Nesse ponto reside a magia do teatro, que o mantém vivo, apesar de todos os percalços, e o torna insubstituível.

À primeira vista, o teatro, enquanto arte puramente artesanal, parece navegar na contramão da História. Enquanto um robô espacial pousa delicada e suavemente na superfície de Marte, ainda tem gente, aqui em baixo, fazendo teatro. Todavia, um olhar um pouco mais atento vai perceber que este ritual que se processa ou na sala fechada, ou na praça pública, está tentando desvendar o sentido da experiência humana neste imenso universo (BRITO, 2004: 214).

Encerro aqui esta introdução certa de que não poderia ter sido de outra maneira, a não ser com esta linda citação do mestre Rubinho, responsável por tudo o que vem me acontecendo desde aquelas aulas em 2007.

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1. A TEATRALIDADE CIRCENSE

1.1 Reflexões iniciais acerca do trabalho do ator

Esta dissertação de Mestrado se configura, de modo geral, como a tentativa de uma atriz em problematizar questões referentes ao trabalho do ator. Parto da premissa básica, portanto, de que dissertarei sobre um tema que possui algo de concreto e técnico e, ao mesmo tempo, algo de impalpável e, talvez, imponderável.

E lhes explico o porquê.

Teatro, do grego théatron, quer dizer “lugar de onde se vê”. Posso pensar, segundo a maioria das pessoas, que esse “lugar de onde se vê” faz referência ao próprio edifício teatral, pois é neste local em que vemos atores desempenhando uma representação.

Porém, penso – e quem me mostrou isso foi um de meus mestres – que esse “ver” pode estar relacionado também ao ponto de vista do ator, e não só do espectador. Teatro é o lugar onde se vai para ver algo além do comum, do cotidiano, do ordinário; ver – e esse ver não se remete só aos olhos – uma revelação compreendida pelo artista, que é compartilhada com o público. Roberto Mallet, o mestre que me mostrou isso, afirma que:

Kandinski gostava de dizer que a função da obra de arte é tornar visível o invisível. Eu, como artista, tenho que desenvolver um olhar que me torne capaz de ver esse invisível. (...) O artista é alguém que vê mais, e que por uma necessidade incoercível (mas também num ato de generosidade) constrói uma obra em que as pessoas possam ter uma compreensão, uma intuição análoga à que ele teve. (...) Em uma obra de arte o artista, tendo visto alguma coisa, constrói um objeto com uma determinada estrutura que permite que outra pessoa olhe para esse mesmo objeto e tenha uma intuição análoga à que o artista teve antes de criar a obra. É aí que reside sua função reveladora. Uma vez que existe a visão, que tenha ocorrido uma autêntica intuição, a criação da obra depende apenas de transposição dessa visão para a materialidade própria a cada arte. Isto é claro sob a condição de que o artista domine os meios técnicos de seu ofício. É como dizia Clarice Lispector: "Eu nunca tive sequer um problema de expressão. Meu problema é muito mais grave, é de concepção” (MALLET, 2001: s/n)8.

8

MALLET, Roberto. Teatro e sentido. In: Jornal Bastidor. Teresina-PI, 2001. Disponível em: http://www.grupotempo.com.br/tex_teasen.html

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Para Grotowski (1987), Teatro é o que acontece entre ator e espectador; desse modo o teatro pode existir sem cenário, figurino, luz, texto verbal, música, etc. Só não poderá existir sem a presença de, pelo menos, um ator e um espectador. Esse pensamento de Grotowski me remete diretamente à ideia de outro grande homem do teatro, Etienne Decroux (1963), de que o teatro é a arte de ator (BURNIER, 2001). E aqui há a quase imperceptível, porém elementar, diferenciação entre “arte do ator” e “arte de ator”.

Ao dizer “arte de ator”, Decroux

se refere a uma arte que emana do ator, algo que lhe é ontológico, próprio de sua pessoa-artista, do „ser ator‟. E não à arte do ator, pois ela não lhe pertence, ele não é seu dono, mas é quem a concebe e realiza (BURNIER, 2001: 18).

Pensa-se costumeiramente que, assim como o pintor tem a tela e a tinta, o

performer9 tem o seu corpo como instrumento de trabalho.

Eu, particularmente, gosto de expandir o pensamento de Decroux acerca da arte

de ator para este ponto também. Assim, acredito que pensar o corpo como instrumento de

trabalho leva a reduzir – mesmo que inconscientemente – o performer apenas a esse corpo, separando-o de seu psiquismo, inteligência e, a meu ver, alma. E principalmente: não acredito que se deva pensar o corpo do ator como seu instrumento de trabalho, simplesmente porque ele não o possui, ele é. Eu não devo cuidar e treinar meu corpo porque ele é meu instrumento de trabalho; eu devo cuidar porque sou eu!

Nas palavras de meu professor, Roberto Mallet:

A matéria do ator é fundamentalmente seu próprio corpo. As ações que ele realiza conformam esse corpo. Sua matéria é um organismo vivo, composto por tecidos e órgãos, com um cérebro capaz de armazenar e processar um número incalculável de informações. Por não ser exterior ao ator – ao contrário, o corpo é o próprio ator –, essa materialidade está em constante interação com o psiquismo. Um movimento corporal terá ressonâncias na memória e nos sentimentos, assim como uma lembrança ou um pressentimento têm ressonâncias corpóreas (MALLET, 2004: s/n)10.

9

Termo inglês que faz referência a todos os artistas do palco. Aqui me refiro não só ao ator, mas também ao bailarino e ao circense, por exemplo.

10

MALLET, Roberto. Ação corporal: matéria do ator. Revista do 17º Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau. Blumenau-SC: 2004. Disponível em: www.grupotempo.com.br/acao-corporal-materia-do-ator/

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19

Nas artes do espetáculo, no momento em que a obra de arte acontece, ganha

vida, o performer está presente e vivo diante do espectador. Presente e vivo por inteiro, não

só com o seu corpo, mas com sua imaginação, emoções, sensações e tudo o mais que pertence ao campo de uma realidade não tangível.

O fato do ator estar vivo diante dos espectadores, executar, sentir, viver, e fazer sua arte, introduz questões de difícil captação, referente a um universo subjetivo, de sentimentos, sensações, emoções, ou seja, um conjunto de elementos que Eugenio Barba chama de dimensão interior, ao diferenciá-los de uma outra

dimensão física e mecânica do trabalho do ator (Barba, 1989, p.21), e

Stanislavski denominou de “plano interior e plano exterior” (cf. Stanislavski, 1972, p.223) (BURNIER, 2001: 18).

Assim como qualquer outro artista, para trabalhar com a sua dimensão interior e materializá-la em sua dimensão exterior, o ator necessita de técnica. Técnica, do grego

techne, traduzido para o latim como ars e que em português temos por “arte”. Ou seja,

durante muito tempo as ideias de técnica e arte estiveram fundidas. Segundo Douglas Novais, que desenvolve sua pesquisa acerca do trabalho do ator baseada, principalmente, nas reflexões dos pensadores da Antiguidade Clássica, como Platão, Aristóteles e Cícero:

A técnica tem a ver mais com criar algo do que simplesmente fazer algo. Dissemos isso porque fundamentalmente ela está ligada a classe de trabalhadores que antigamente se classificava como poetas, que incluía, além dos artistas, médicos, arquitetos e artesãos. Tal categorização se apoiava no fato de todas estas profissões terem como fim a produção de algo – no sentido estrito de gerar um produto como uma casa, uma peça de teatro ou um colar. O seu fim, uma vez que é um elemento da poesia, é criar algo, um personagem, uma peça, por exemplo, o que a distancia da teoria, que tem a ver com conhecer alguma verdade. Entre a teoria e a poesia está a técnica, porque todo pensamento técnico tem uma dúplice preocupação, exige por um lado uma sistematização racional apoiada em princípios, e, por outro, clareza e precisão suficientes nos pormenores da construção que sirva a prática do ofício. Esse “entre” pode ser entendido de outro modo, dissemos que ela emerge de experiências importantes e passa a ser técnica quando além de fazer, você sabe como fazer. Ou seja está ligada, de algum modo a um processo de conscientização (NOVAIS, 2012: 90).

A partir da reflexão acima percebo como em nossos dias – e falando agora não só do ofício do ator – a ideia de técnica é confundida com o senso comum acerca do termo

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progressão, evolução; a pensar que o que vem depois é sempre melhor do que o que veio antes. E em arte esse tipo de pensamento não é possível (Idem). Como dizer que eu, porque vim depois, sou melhor poeta do que Shakespeare?

Para o poeta se tornar poeta não basta saber o que é poesia. Essa lacuna entre o saber o que é poesia e se tornar um poeta é, então, preenchida pela técnica, pelo modo como o poeta constrói a sua obra. E como a técnica é, na verdade, a sua própria arte, então é sempre algo pessoal e intransferível. Porém, isto não quer dizer que ela é genuína e pertencente somente ao campo da sorte, do acaso ou do talento. Ela é “o desenvolvimento de habilidades que se aprendem e não que se criam em si” (Idem: 30). E aprende-se de onde? De alguma tradição, seja ela qual for.

Toda produção artística é herdeira de outra anterior. Mesmo a produção teatral contemporânea mais fragmentada e desconexa continua sendo a construção – ou seria a desconstrução? – de um artifício para se falar de algo relacionado ao homem e sua existência e continua existindo no espaço entre ator e espectador. Isso porque

Não existem meios de caminhar adiante sem fincar pé em nossas raízes, em nossas origens. Ao mesmo tempo, o passado só funciona se usado para o crescimento e desenvolvimento, como reservatório do novo, como disse Barba (BURNIER, 2001: 247).

O verdadeiro artista é, então, aquele que imprime suas características pessoais a uma base formal11, no sentido aristotélico, oriunda de uma determinada tradição.

Acontece que a história do Ocidente é marcada por uma profunda fragmentação, na busca incessante pela especialização em algo. E no teatro não foi diferente.

Desse modo, diferentemente do Oriente, onde dificilmente consegue-se distinguir o que é teatro e o que é dança – por exemplo, no nô, kabuqui ou kathakali – no Ocidente “nosso ator-cantante se especializou separando-se do ator-bailarino, e por sua vez

11

“Forma é a maneira como a matéria é organizada, sua estrutura. É uma forma o que o escultor imprime ao bronze. São formas o que Picasso inscreve com tinta em suas telas. A disposição das palavras é a forma do poema. De outro ponto de vista ela é o princípio estrutural da obra (a concepção, a idéia – eidos). A forma não é uma figura estanque; ela tem um dinamismo interno que organiza a matéria conformando assim a obra” (MALLET, 2004: s/n).

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este último do ator... Como chamá-lo? Aquele que fala? Ator de prosa? Intérprete de textos?” (BARBA apud BURNIER, 2001: 22).

Além disso, durante muito tempo, a arte de ator – do teatro descrito pela história oficial no Ocidente – estruturou-se baseada em “elementos altamente subjetivos, como, por exemplo, sua „identificação psíquica e emotiva‟ com o personagem” (BURNIER, 2001:20).

O fato é que, até hoje, a maioria das pessoas acha que o ator encarna o personagem “como um santo que baixa” e que ele é totalmente tomado por emoções e sensações. O próprio Stanislavski, o primeiro a teorizar e criar o que chamou de sistema para o trabalho do ator, no século XIX, antes de chegar à formulação das ações físicas adentrou o terreno da memória emotiva12. Segundo Grotowski,

Os atores pensavam poder organizar seu papel através das emoções e Stanislavski por muitos anos de sua vida pensou assim, de maneira emotiva. O velho Stanislavski descobriu verdades fundamentais e uma delas, essencial para o seu trabalho, é a de que a emoção é independente da vontade. Podemos tomar muitos exemplos da vida cotidiana. Não quero estar irritado com determinada situação mas estou. Quero amar uma pessoa mas não posso amá-la, me apaixono por uma pessoa contra a minha vontade, procuro a alegria e não acho, estou triste, não quero estar triste, mas estou. O que quer dizer tudo isso? Que as emoções são independentes da nossa vontade. Agora, podemos achar toda a força, toda a riqueza de emoções de um momento, também durante um ensaio, mas no dia seguinte isto não se apresenta porque as emoções são independentes da vontade. Esta é uma coisa realmente fundamental. Ao contrário, o que é que depende da nossa vontade? São as pequenas ações, pequenas nos elementos de comportamento, mas realmente as pequenas coisas são as pequenas ações que Stanislavski chamou de físicas. Para evitar a confusão com sentimento, deve ser formulável nas categorias físicas, para ser operativo. É nesse sentido que Stanislavski falou de ações físicas. Se pode dizer física justamente por indicar objetividade, quer dizer, que não é sugestivo, mas que se pode captar do exterior (GROTOWSKI, 1988: s/n)13.

Foi a partir, então, do método das ações físicas de Stanislavski que se começou a mudar a ideia do que vem a ser o trabalho do ator, associando-o mais a ação do que a

sentimento – isso, fazendo referência mais uma vez ao Ocidente.

12

Para mais detalhes consultar os livros “A preparação do ator” e “A construção da personagem”, ambos de Constantin Stanislavski.

13

De uma palestra proferida por Grotowski no Festival de Teatro de Santo Arcangelo (Itália), em junho de 1988. Disponível em: http://www.grupotempo.com.br/sobre-o-metodo-das-acoes-fisicas/

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Porém o que se vê na atualidade e que parece como uma tentativa de fuga desta visão de que “teatro é emoção” é o lado oposto da moeda: uma espécie de exaltação e supremacia do corpo do ator, enquanto matéria palpável e concreta, e do treinamento técnico deste. Essa nova perspectiva surge principalmente como desdobramentos – errôneos e equivocados – das técnicas desenvolvidas por Grotowski e Barba.

Aqui cabe uma breve história narrada por um de meus professores certa vez: um dia, um aluno todo orgulhoso foi até Jacques Lecoq14 lhe mostrar como havia conseguido desenvolver com perfeição a caminhada codificada da mímica clássica15. Ao fim de sua incrível demonstração, o aluno orgulhoso esperava uma resposta de Lecoq, ao passo que este simplesmente lhe indagou: “Belo, mas... para onde você vai?”.

Ou em outras palavras, “que me importa ter sete ou oito técnicas vocais, se não tenho o que dizer? (...) Que me importa produzir um colar, se não existir um pescoço para usá-lo?” (NOVAIS, 2012: 55). Ou ainda:

O aprendizado servil das técnicas é perigoso se antes não decidirmos o contexto moral no qual vamos empregá-las. É similar a montar os elementos de uma casa, suas estruturas portantes e superestruturas, sem a preocupação de sabermos previamente onde elas vão ser implantadas, sobre que tipo de terreno e meio ambiente, se em cima de um declive rochoso ou sobre um pântano. Em toda boa escola de arquitetura nos ensinam que, primeiramente, estudamos o terreno, para em seguida escolhermos o material e a técnica construtiva. Atuando sem esses pressupostos teremos sempre atores-mímicos sem elasticidade mental, robôs esvaziados, privados de uma autêntica sensibilidade e, muito pior, sem personalidade. Todos pequenos descendentes do mestre (FO, 2011: 275).

Assim como nas outras artes, o impulso criador do ator precisa se materializar, encontrar uma forma, no sentido aristotélico, para existir. No caso do teatro, ele se materializa e se mostra pela conduta e comportamento do ator. O que o público vê enquanto concretude é, sim, o seu corpo; mas quem está diante do espectador não é só um corpo: é o ator por completo, com corpo, imaginação, memória, memória corporal, voz, intuição, emoção, alma, etc. Além disso,

14

Ator e mímico. Foi aluno de Decroux e fundou sua própria escola – L‟École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq – em Paris. Atualmente é uma referência mundial, principalmente nos estudos sobre teatro físico.

15

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23

Uma vez que a atuação (como todas as artes espetaculares) só existe enquanto está sendo realizada diante de um público, a sua materialidade não se limita às ações corporais – ela inclui a própria pessoa do ator. O que o espectador vê não é apenas a persona agindo. Ele vê o ator “jogando” (realizando) essa ação dentro do contexto poético. E vê ainda a relação pessoal que o ator estabelece com a poética e com o conteúdo da obra, vê o sentido que ela faz para ele. A arte da representação é reveladora. Todo ação realizada em cena nos fala não apenas dela mesma; ela também nos fala do homem que realiza essa ação. O ofício do ator é, como dizia Dostoievski do seu ofício de escritor, “mostrar o homem no homem”. Através da ação (MALLET, 2004: s/n).

Independente da estética ou linguagem escolhidas, a arte de ator sempre se baseará na tensão existente entre técnica (artifício) e vida; entre repetição e espontaneidade; entre a formalização de determinados códigos e a execução destes de forma viva, como se toda vez em que são representados fosse a primeira vez.

Desse modo, o ator é aquele que caminha, por toda a vida, na linha tênue entre o caos da expressão de uma subjetividade profunda, porém não formalizada, e a técnica puramente mecânica e, portanto, desprovida de vida. Tanto a emoção pura quanto a técnica pura não comunicam, não são passíveis de serem partilhadas e decodificadas pelo espectador.

Essa é a grande sina do ator: a busca pelo equilíbrio entre uma vida interior e uma exterior – busca muito mais enraizada na cultura oriental do que na nossa, diga-se de passagem. Citando Barba, “a experiência da unidade entre dimensão interior e dimensão física ou mecânica [...] não constitui um ponto de partida: constitui o ponto de chegada do trabalho do ator” (BARBA apud BURNIER, 2001: 10).

Para trilhar este caminho o ator pode, então, escolher dois pontos de partida: ele pode partir da dimensão interior para a dimensão física ou fazer o caminho contrário, partindo da dimensão física em busca da dimensão interior. Este segundo caminho é o que eu escolhi para o árduo labor de elaboração da minha arte de ator, pois, ao longo das minhas experiências, percebi que este é o canal pelo qual sou mais facilmente ativada para um estado criativo. E esse é um dos motivos pelo qual eu escolhi o circo, ou o circo me escolheu. Mas isso é assunto para daqui a pouco.

Yoshi Oida – ator japonês que por muitos anos trabalhou com o encenador inglês Peter Brook e, portanto, viveu na própria pele as contradições entre o mundo

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Oriental e Ocidental, formulando sobre elas importantes reflexões para o trabalho de qualquer ator – afirma:

Como atores, normalmente começamos a trabalhar a partir da mente ou das emoções, achando que essa disposição interior virá à tona através do corpo. No entanto, o contrário também funciona: começando de fora em direção ao interior. (...) Normalmente é muito difícil mudar nosso estado emocional só pela força da vontade. Mas se mudarmos aquilo que o corpo está fazendo, isso começa a afetar nossas emoções, facilitando a execução de uma atuação na qual se pode acreditar (OIDA, 2007: 95).

Neste sentido, a ideia de desenvolver uma técnica através do treinamento corporal – que geralmente inclui pontos em comum como aquecimento, flexibilidade, aumento de força e potência energética, etc. – não deve ser vista como uma mera preparação física para atuar. Não se trata apenas do ator ganhar fôlego ou tônus muscular... Trata-se de capacitar o ator a compreender mais profundamente um processo fundamental, no qual através do corpo, aprende-se algo que vai além do próprio corpo. Neste sentido, Yoshi Oida aponta para o fato de que:

Realmente não importa o estilo ou a técnica que estamos estudando. Na verdade, podemos praticar diferentes disciplinas tais como aikidô, judô, balé ou mímica e obter o mesmo benefício. Isso porque estaremos aprendendo alguma coisa que vai além da técnica. Quando estudamos com nosso mestre, as habilidades fazem apenas parte da linguagem, mas não são o objetivo. Já que se está aprendendo alguma coisa que ultrapassa a técnica, aquilo que se está praticando é menos importante (Idem: 158).

Por isso, apesar do teatro Ocidental, em geral, não possuir uma técnica tão codificada e sistematizada como a do teatro Oriental, o ator pode tomar de empréstimo elementos de outras técnicas, como, por exemplo, de uma prática esportiva ou de outra área da arte, para compor a sua própria técnica. Se ele fizer balé ou natação, boxe ou sapateado estará desenvolvendo as suas potencialidades e habilidades corporais, porém sob diferentes formatos e códigos.

Dentre essas atividades, uma das mais recorrentes entre os treinamentos dos atores atualmente é, sem dúvida, a arte circense, principalmente a relacionada às acrobacias de solo e aéreas. Os benefícios que essas práticas podem gerar à técnica pessoal do ator

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25

serão descritas detalhadamente no próximo capítulo, ao dissertar acerca do Pavilhão Arethuzza.

Por ora, podemos pensar que a arte é uma segunda natureza, é uma natureza adquirida. Atuar, neste sentido, é como jogar vôlei, por exemplo. Depois que você aprende a fazer uma manchete, você não precisa mais pensar na manchete enquanto a faz. Ou: o pensamento do ator é como o de atravessar a rua. Você pensa em atravessar, mas sem parar para calcular a distância e a velocidade que o carro vem; você pensa enquanto já atravessa: você pensa em ação16. E esse pensamento não se traduz por completo em palavras...

O que se pode fazer, entretanto, é uma analogia para se perceber esse pensamento. Comumente professores e diretores de teatro – principalmente advindos de uma formação acadêmica ou deste teatro tido como oficial – dizem a seus alunos/atores quando estes estão em algum exercício ou improvisação: “Se joga! Vai com tudo! Não pensa!”. Trata-se de uma metáfora facilmente confundida com uma indicação assertiva; trata-se de uma tentativa de ampliar a percepção do ator para o que de fato está acontecendo em cena, evitando racionalizações que o desviam da ação cênica.

Porém, o ator facilmente confunde essa “não racionalização” com “separar corpo e mente”. Mas “ir com tudo” significa ir com seu corpo, sua inteligência, seu psiquismo, sua emoção do dia... Ou seja, com você todo! “Não pensa!” na verdade significa “não racionalize; não teorize em cima”, mas é claro que o ator pensa. Só que é o pensamento do “atravessar a rua”: ele pensa em ação.

E tudo isso para quê? O que quer um ator, em última instância? A resposta mais sincera e poética que encontrei até hoje para esta questão, tão fundamental, também é de autoria de Yoshi Oida e é encontrada em seu livro “O ator invisível”, um dos primeiros livros sobre teatro que li na graduação em Artes Cênicas... E na vida:

Interpretar, para mim, não é algo que está ligado a me exibir ou exibir minha técnica. Em vez disso, é revelar, através da atuação, “algo mais”, alguma coisa que o público não encontra na vida cotidiana. O ator não demonstra isso. Não é visivelmente físico, mas através do comprometimento da imaginação do espectador, “algo mais” irá surgiu na sua mente. (...) No teatro kabuqui, há um gesto que indica “olhar para a lua”, quando o ator aponta o dedo indicador para o

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