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A participação na assistência social: da organização e mobilização comunitária à

O ideário que dominou a organização da assistência social durante a maior parte do período de institucionalização desse campo sustentou-se na compreensão dos usuários de seus serviços como pessoas dependentes do apoio da sociedade e do Estado, incapazes de organizar-se autônoma e coletivamente. Essa perspectiva pressupõe uma atitude passiva e cordata daqueles que demandam a assistência e não uma postura ativa e propositiva, que estimula a organização e a participação. Essa visão foi reforçada, muitas vezes, por uma ação profissional que estabelece uma relação de hierarquia e autoridade com os usuários, percebidos como beneficiários das ações desenvolvidas pelos técnicos. Por outro lado, a força do ideário liberal, introjetado pela maioria desses usuários, individualiza a responsabilidade pelas circunstâncias de vulnerabilidade e risco em que elas se encontram, tornando-se fator de constrangimento para que elas busquem a assistência pública, o que é feito de forma individualizada e, muitas vezes, numa relação de subordinação “paternal” (SPOSATI ET AL, 1989; 1992; SPOSATI, 1997). Esse ideário tem sido alterado muito lentamente.

Uma primeira iniciativa pode ser mais nitidamente identificada a partir da década de 1950132, quando foram introduzidas, no Brasil, técnicas de desenvolvimento de

132 Desde o final da década de 1940, podem ser verificadas iniciativas isoladas de desenvolvimento de

comunidade. No entanto, a década de 1950 marca o início da utilização intencional e em larga escala da estratégia no país. A cidade de Porto Alegre foi pioneira na promoção dos “Seminários Regionais de

comunidade133, a partir da experiência norte-americana e do apoio e estímulo da Organização das Nações Unidas (ONU), e que foram apropriadas por diversos campos disciplinares e por diferentes áreas de políticas públicas, como a educação, a extensão rural e agrícola, a medicina preventiva e a assistência social. Ainda que ocupasse uma posição marginal nessas áreas, as experiências desenvolvidas, inicialmente com comunidades rurais e posteriormente em áreas urbanas de moradias populares (a partir da década de 1960 e mais fortemente na década de 1970) tinham a expectativa de que atores externos à comunidade (ou seja, profissionais das diferentes áreas de políticas pertencentes à órgãos como Associação de Crédito e Assistência Rural – ACAR, a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE, a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM, LBA) propiciassem a organização social das comunidades, estimulando e orientando mudanças consideradas importantes para a sua integração ao processo de modernização levado em curso pelos governos nacionais.

Tendo a premissa do desenvolvimento de comunidade como orientação, foram realizadas ações de educação de adultos (como o Movimento de Educação Básica – MEB), de organização de diversos grupos de trabalhadores (pescadores, trabalhadores rurais, operários etc.), de organização e mobilização comunitária, intervenções que tinham não só um caráter técnico, mas também político, que inicialmente se identificavam com a contenção do conflito e a integração social. A participação popular era estimulada como meio de favorecer o consentimento “espontâneo” às estratégias de modernização estabelecidas pelo Estado. Nesse sentido, a participação era percebida como a contribuição das populações locais, seja por meio direto ou por intermédio de suas lideranças, aos técnicos que desenvolviam programas governamentais, tanto com informações sobre problemas locais quanto na execução dos próprios programas, ou seja, era vista como adesão aos programas de governo. Em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo estes programas foram descentralizados e efetivados nos

Organização de Comunidade”, iniciados em 1951, que somente no início da década subsequente se propagaram para São Paulo e, em seguida, para outros centros urbanos do país (BEZERRA, 1980; KRUG, 1982).

133 O governo britânico foi o que primeiro utilizou o termo desenvolvimento de comunidade , em 1942, para

designar as ações de apoio aos países que se preparavam para a independência. A partir de então, foram realizadas conferência internacionais sobre o desenvolvimento que foram cunhando o termo “desenvolvimento de comunidade”, sendo que em 1954 o termo adquiriu a conotação de que é possível e desejável realizar atividades que levem o progresso econômico, o bem-estar individual e social e a responsabilidade política às comunidades menos desenvolvidas, estimulando a participação de seus membros na busca de soluções para seus problemas. O apoio externo deve ser dado por meio de orientações técnicas, equipamentos e financiamentos propiciados por governos que tenham compromisso com o desenvolvimento dessas comunidades (KRUG, 1982). Posteriormente esse significado foi objeto de disputa.

Centros Sociais Urbanos, sendo que na primeira cidade, nas Administrações Regionais, foram criados Conselhos de Obras, constituídos por representantes de entidades sociais e coordenados por assistentes sociais, que visavam estudar os problemas da comunidade, sugerir soluções e aproximar os grupos para a execução das ações (BEZERRA, 1980).

No entanto, as contradições que foram sendo identificadas pelas equipes de profissionais desses programas, que passaram a questionar a imposição de técnicas pelas agências norte-americanas, consideradas inadequadas à realidade brasileira, acrescidas da formação de grupos com maior criticidade quanto à intencionalidade da ação, propiciou que se estabelecesse uma disputa quanto aos objetivos do desenvolvimento de comunidade134. Assim, nas instituições que utilizavam da estratégia de desenvolvimento de comunidade passaram a existir grupos que, orientados por uma visão socialista de organização social, reorganizaram e reorientaram suas ações, de modo a estimular processos de conscientização e uma participação diferenciada, visando a autonomia dos sujeitos, sua organização coletiva, bem como seu envolvimento nas decisões que diziam respeito à sua vida de modo a transformarem sua realidade135. Passaram a coexistir iniciativas como as de Paulo Freire, de educação popular nas comunidades rurais do Nordeste136, e a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, com distinções relevantes entre si, especialmente quanto à intencionalidade da participação (WARE, 1970; BEZERRA, 1980; KRUG, 1982; SOUZA, 1993).

O regime autoritário militar, instaurado a partir de 1964, passou a contar com forte apoio da norte-americana Agência para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e do Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID), que não só financiavam programas de desenvolvimento de comunidade como agiam diretamente em comunidades populares (indígenas, rurais, favelas urbanas, dentre outras), despolitizando as ações nesse campo e

134 Como afirma Ware (1970, p.9) “o fim de todo programa de organização e desenvolvimento da comunidade é

tornar os membros da comunidade capazes de resolverem seus problemas por seus próprios esforços e conseguirem o melhoramento de sua vida”. Numa outra linha, Souza (1993) considera que o desenvolvimento de comunidade é uma forma de cooperação em que a comunidade busca superar as barreiras que impedem seu desenvolvimento coletivo.

135 As disputas que se estabeleceram nesse campo se refletem na nomenclatura da própria estratégia, sendo que a

literatura registra não só o termo desenvolvimento de comunidade, mas também organização comunitária, ação comunitária, ação social, mobilização comunitária, animação popular, dentre outros (WARE, 1970; BEZERRA, 1980; KRUG, 1982; SOUZA, 1993).

136 Esses grupos de profissionais passam a aliar-se às Ligas Camponesas, aos sindicatos de trabalhadores rurais,

aos Centros Populares de Cultura, à Ação Popular, ao MEB, às ações da esquerda cristã, em iniciativas que foram consideradas marginais e, posteriormente, sufocadas pelo Estado.

criando oportunidades de controle, pelo governo, dos conflitos e da própria organização daquelas comunidades. A mobilização e a participação comunitária eram vistas como a possibilidade da manutenção de canais de comunicação entre população e governo e foram previstas nos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND) e nos programas de desenvolvimento das Superintendências de Desenvolvimento coordenadas pelo Ministério do Interior, mas também utilizadas por governos estaduais.

A participação em programas de desenvolvimento de comunidade implantados pelos governos autoritários foi estimulada com a intenção de envolver a população na execução de ações previamente definidas, ou seja, uma participação estruturada no interior do Estado e, portanto, controlada e instrumental, que foi fortemente impulsionada pelos órgãos responsáveis pela assistência social. Por outro lado, grupos de profissionais e estudantes articularam-se aos moradores das áreas prioritárias desses programas, buscando dar outra direção ao processo de mobilização e organização da comunidade, tendo a ação educativa como principal alternativa à prática de controle oriunda das ações do Estado. A premissa que orientava suas ações era do reconhecimento dos usuários da assistência social como sujeitos de sua história e de que a participação é um processo social que decorre da compreensão dos sujeitos quanto à posição que ocupam na estrutura social e os condicionantes de sua posição, levando-os a agir coletivamente para alcançar os fins que almejam, e o fim último da participação social seria a distribuição de poder (SOUZA, 1993).

Foram esses pressupostos que permearam as mobilizações que ocorreram no campo da assistência social durante o processo de (re)democratização e que propiciaram a construção da ideia de participação democrática para além do seu elemento eleitoral, envolvendo usuários, trabalhadores e prestadores de serviços nas decisões sobre as diretrizes e prioridades que deveriam nortear as ações públicas nessa área de política. O conceito de participação, portanto, estava associado ao controle dos agentes públicos como meio de assegurar os direitos socioassistenciais e a continuidade das ações. Tendo como referência o projeto político democrático-participativo e os debates e as lutas levadas a cabo na área da saúde, a comunidade política da área da assistência social fortalecida durante o período da Assembleia Nacional Constituinte, mobilizou-se para assegurar que a Constituição garantisse não só o direito à assistência social pública não contributiva, como também o direito à participação da comunidade nas decisões relacionadas à área. Altera-se significativamente o significado da participação, assim como os resultados esperados quanto à sua concretização.

Coadunando-se, portanto, a um projeto societário mais amplo, os atores protagonistas da assistência social, àquela época, apostaram fortemente no potencial de espaços institucionais que funcionassem como meios de ampliação da participação popular na deliberação acerca da política e de controle público quanto à garantia dos direitos socioassistenciais, recém inscritos constitucionalmente e, portanto, com reconhecimento político e jurídico. Nessa direção, a proposta de criação de instituições que associassem participação, deliberação e controle público – como os conselhos – era uma aposta tanto no fortalecimento da política pública de assistência social quanto no próprio regime democrático. A próxima seção apresenta uma breve síntese da trajetória de criação e alguns elementos da regulação e do desenho institucional desses conselhos.