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Alguns princípios têm sustentado a existência e a continuidade dos Estados modernos, dentre eles o princípio da legitimidade. Esse princípio parte da premissa de que a ordem social

76 A ideia de consenso, seja relacionada a um curso de ação ou às razões que o justificam, ocupou inicialmente

um papel central na teoria deliberativa, especialmente a partir das primeiras formulações de Habermas, para quem haveria três tipos de acordos racionais: os acordos pelo entendimento, os acordos pelos ajustes das partes e o consenso (Werle, 2004). No entanto, esta ênfase foi revista pelos teóricos deliberativos por não ser conciliável com a existência da diferença, que, por sua vez, torna a deliberação possível e necessária. A partir daí, ganha relevância a ideia dos acordos possíveis, exequíveis e provisórios desenvolvida por diferentes pensadores. No entanto, a possibilidade de haver consensos permanece, seja ele quanto ao “leque de razões” aceitáveis para o debate e a decisão, ou nos casos efetivos em que há confluência de razões e discursos.

deve se ancorar em regras universais e que todos os indivíduos que a integram são considerados como iguais. Essas regras e princípios gerais, promulgados pelo poder político, que organizam a sociedade e que obrigam e constrangem todos, somente são considerados legítimos pela teoria liberal se representam a vontade de todos e de cada um e nascem delas. A premissa liberal é de que essa vontade existe em cada indivíduo, é pré-determinada, e a legitimidade decorre da agregação das vontades de todos os indivíduos manifesta pelo princípio da maioria.

Os democratas deliberativos discordam da premissa liberal e entendem que a legitimidade das decisões democráticas tem outras fontes. Para Manin (1987), os indivíduos não detêm informações completas e, em decorrência, suas preferências também são incompletas. Isso significa que eles podem alterar suas preferências no decorrer de processos de escolha, em que há trocas de informações por meio do confronto de argumentos entre participantes que usam publicamente suas razões. É, portanto, por meio da deliberação que se forma a vontade dos indivíduos e é este processo de formação da vontade que dá origem à legitimidade das decisões. Além disso, uma vez que as decisões se impõem a todos, uma condição essencial para a sua legitimidade é que todos devem ter o direito de participar da troca de argumentos que produz essas decisões, pois elas expressam o resultado da confrontação livre de vários pontos de vista, inclusive da minoria, que foram considerados para se alcançar os resultados. A legitimidade do processo deliberativo decorreria do fato de que aqueles que são fonte da autoridade política puderam tomar parte, escolheram dentre várias soluções e permaneceram livres para aprovar ou recusar conclusões desenvolvidas por meio de argumentos.

O “Princípio D”, proposto por Habermas (1997), segue a mesma linha de argumentação de Manin, pois implica aceitar que a legitimidade da política não está ligada apenas à expressão da vontade geral, mas também ao processo de deliberação coletiva, em que todos os possíveis afetados pelas decisões políticas possam participar do debate público. Nesse debate, estão presentes discursos e argumentos éticos, morais e pragmáticos e estes podem alterar as preferências dos indivíduos. A legitimidade, portanto, decorreria dos procedimentos inclusivos em que ocorre a mútua justificação entre os participantes.

Ao tecer suas considerações sobre a legitimidade das decisões democráticas, Bohman (1996) enfatiza que o meio de assegurá-la é a deliberação em fóruns públicos, acrescentando que elas devem ser determinadas pelo julgamento de cidadãos livres e iguais, ou seja, são as razões públicas, testadas em diálogos públicos, que legitimam as decisões. A legitimidade das

decisões, portanto, passa pelos testes da liberdade, da igualdade e da publicidade, que devem conduzir a interação pública e produzir resultados.

Também Cohen (1997) destaca a importância da igualdade entre os participantes para que se assegure a legitimidade política. Para ele, decisões legítimas expressam acordos construídos em processos inclusivos e argumentativos baseados nos princípios de igualdade participativa dos diversos cidadãos, de pluralidade na cooperação e de busca de acordos públicos que visam ao bem comum, ao estabelecimento de prioridades e à justiça social. Liberdade, igualdade e ausência de constrangimentos nos processos públicos de deliberação coletiva também são vistos por Benhabib (2007) como as fontes de legitimidade das decisões que têm poder obrigatório.

Em suas reflexões sobre a legitimidade da deliberação, Dryzek (2000; 2004) destaca a necessidade de se assegurar o direito a participar e não uma participação compulsória, e que a reflexividade do processo envolve mais persuasão do que coerção, manipulação e dissimulação. Ao pensar a participação, Dryzek enfatiza o papel do discurso77 na democracia deliberativa, o que significa que a legitimidade não decorre da presença de todos os indivíduos nos processos deliberativos, mas sim dos diferentes discursos que expressam as diversas identidades que competem entre si por meio da deliberação. Para o autor, os argumentos apresentados devem ser justificados em termos aceitáveis sob reflexão, podendo gerar alterações nas preferências, nos julgamentos e nas perspectivas durante o processo de deliberação.

Para Dryzek, a legitimidade discursiva é alcançada quando “uma decisão coletiva for consistente com a constelação de discursos presentes na esfera pública, na medida em que esta constelação seja submetida ao controle refletido de atores competentes” (2004, p.52), ou seja, uma decisão coletiva legítima é aquela que é aceita por todos que estão submetidos a ela e que devem ser capazes de participar das deliberações. Dryzek propõe ainda que o grau da legitimidade discursiva varia conforme a ressonância dos acordos produzidos com a constelação de discursos prevalecentes. A solução proposta pelo autor significa que não há limites quanto ao número de participantes na deliberação, uma vez que os discursos presentes no processo é que representam as identidades e aspirações existentes e em competição por influência. Além disso, os discursos são controlados de forma difusa pelas diversas redes de atores que se situam na esfera pública e que estão engajadas nas disputas discursivas. A

77 Para Dryzek, “discursos [...] são conjuntos compartilhados de suposições e capacidades que habilitam seus

aderentes a juntar fragmentos em todos coerentes ou organizá-los em roteiros coerentes” (2000, p.75); “um modo compartilhado de se compreender o mundo incrustado na linguagem” (2004, p. 48-49).

perspectiva de Dryzek coloca para o debate a constituição dos espaços ou fóruns deliberativos, que devem congregar a pluralidade dos discursos existentes na sociedade, o que seria uma solução para sociedades complexas, em que a participação política dos indivíduos está distribuída em intensidade variada. Indivíduos que partilham o mesmo discurso seriam representados por alguns deles que tenham maior motivação ou disponibilidade para a participação.

Ainda com relação à constituição de espaços institucionalizados nos quais ocorre a deliberação, os teóricos democratas deliberativos entendem que não há o requerimento de uma divisão do trabalho entre quem elabora e negocia políticas e os cidadãos, excluindo estes últimos de deliberações substantivas sobre todos os assuntos, uma vez que uma ordem política legítima é aquela que pode ser justificada a todos que vivem sob suas leis (CHAMBERS, 2005). Em Cohen e Sabel (1997), encontra-se que a participação pode ocorrer por meio da representação (que pode ter contornos variados) das partes sujeitas aos resultados das decisões coletivas e a composição dos corpos deliberativos deve observar dois valores: a igualdade política e a deliberatividade.

A igualdade sugere uma composição em que cada participante tem o mesmo valor dos demais, enquanto o requerimento de deliberatividade sugere que o fórum fomente a provisão de informação local relevante e a articulação de visões alternativas. Ainda quanto à composição, Cohen e Sobel (1997) levantam três cuidados que se deve tomar: evitar composições discriminatórias, assegurar que todos os que estarão sujeitos às decisões tenham o direito de participar na discussão e na decisão e assegurar o direito à participação de organizações que detenham conhecimento especial e essencial ao problema em questão ou que sejam capazes de articular pontos de vista que fomentem a deliberação entre soluções alternativas.

O requerimento da igualdade política que, conforme Dryzek (2000), estabelece a presunção que todo participante num processo tem igual chance de interferir nos seus resultados, coloca no debate as condições objetivas dos indivíduos que comporão os “corpos deliberativos” e que se caracterizam por assimetrias socioeconômicas e culturais pré- existentes. Como lembram Bohman (1996) e Cohen (1997), a democracia deliberativa não deve ignorar as condições sociais, pois desigualdades sociais são inconsistentes com formas públicas de deliberação e podem gerar desigualdade política, sendo que “uma relativa igualdade econômica é uma pré-condição da paridade da participação” (FRASER, 2005, p.139). Nessa perspectiva, Chambers (2003) reforça a relação entre as condições objetivas e a inabilidade de grupos marginalizados quanto às condições mínimas de discurso, o que

compromete a pretensão de igualdade colocada pela teoria, uma vez que “a troca de argumentos envolve um recurso escasso de poder, precisamente a capacidade de discursar e se comunicar, cuja distribuição é sempre desigual” (ARAÚJO, 2004, p.158).

A igualdade, portanto, é mais do que um fundamento político, pois implica assegurar que os indivíduos tenham suas necessidades materiais básicas satisfeitas como meio de assegurar o grau de liberdade necessário à deliberação pública efetiva, sob o risco de que, em condições desfavoráveis, as razões públicas cedam ao poder político e não prevaleça a força do melhor argumento, levando a discussão pública a transformar-se em mero jogo estratégico, disputa retórica ou manipulação ideológica (MANIN, 1987; BOHMAN, 1996; GUTMANN E THOMPSON; 2000; 2004; ARAÚJO, 2004; COHEN E FUNG, 2004). Para Vita, os níveis desiguais de participação política estão diretamente relacionados à distribuição desigual de recursos políticos – “riqueza, dinheiro, educação, recursos cognitivos, tempo livre para a atividade política e a facilidade maior ou menor de superar problemas de ação coletiva” (2007, p.172) – o que indica que os mais pobres e destituídos de recursos políticos provavelmente estarão ausentes dos processos deliberativos, o que comprometeria não só a qualidade da deliberação, mas a própria legitimidade das decisões na perspectiva que a teoria afirma.

Outra dimensão da desigualdade refere-se à assimetria informacional que possa existir entre os participantes, inclusive decorrente das condições de desigualdade socioeconômica. Rawls (2007) já entendia que uma das condições para a realização da democracia deliberativa é a educação para a cidadania e a existência de um público informado acerca dos problemas urgentes. As partes estarem bem informadas asseguraria a disposição para o debate e a possibilidade da contestação e da não coerção, essenciais à necessária liberdade para a deliberação (COHEN E ROGERS, 2003; COHEN E FUNG, 2004).

Em contraponto aos argumentos que enfatizam a redistribuição como pré-requisito para a participação de todos na deliberação, Dryzek (2000) afirma que aqueles em maior desvantagem material não são necessariamente os que têm maior dificuldade na comunicação. Nesse sentido “a democratização deliberativa não deve nunca esperar pela redistribuição material, ainda que no final das contas provavelmente se beneficiaria de tal redistribuição” (idem, p. 172). Para o autor, entre os que participam permanece havendo capacidades desiguais, mas as oportunidades estruturadas para a comunicação podem compensar as desigualdades. Nesse caso, o próprio processo deliberativo, que é autoconstrangido e define as bases para se criticar as desigualdades injustas que o afetam, poderia compensar as desigualdades pré-existentes (GUTMANN e THOMPSON, 2004).

Assim, se os indivíduos não têm suas capacidades completamente desenvolvidas, isso não os desabilita a participar, pois elas podem ser desenvolvidas no próprio processo deliberativo, que contribui para orientar os indivíduos a refletir e interagir de modo mais lógico, racional, justo, considerando os outros, com autocrítica e orientado para o bem comum (GUTMANN AND THOMPSON, 1996 COHEN, 1997; DRYZEK, 2000; BENHABIB, 2002). Para esses teóricos, como as pessoas são racionais e razoáveis, elas serão capazes de reconhecer a perspectiva do outro, buscarão o bem comum e desenvolverão suas capacidades por meio do aprendizado decorrente da própria participação.

O debate entre os teóricos deliberativos acerca da legitimidade das decisões numa democracia deliberativa tem estado intimamente relacionado com a ideia de que a legitimidade e a ampla concordância com as decisões vinculantes decorrem da deliberação de cidadãos livres e com oportunidades iguais de participação, sustentada na apresentação de razões e no debate públicos, ou seja, as concepções de democracia deliberativa são organizadas em torno do ideal de justificação política que requer razoamento público entre cidadãos ou seus representantes, que deliberam juntos sobre leis e políticas que os obrigam em comum (BOHMAN, 1996; BOHMAN AND REHG, 1997; BOHMAN, 1998; CHRISTIANO, 2007). Em Chambers, pode-se encontrar a síntese deste argumento, que considera que “uma ordem política legítima é aquela que pode ser justificada para todos aqueles que vivem sob suas leis” (2003, p.308). A participação na deliberação em que as razões e decisões são mutuamente justificáveis seria a premissa para que se assegure a legitimidade das decisões.