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Inovações institucionais democráticas e a articulação entre participação e

Como visto anteriormente, nas democracias modernas, as decisões para o exercício do poder coletivo são tomadas em instituições que vêm sendo alteradas e mesmo aperfeiçoadas durante todo o desenrolar da modernidade. Nesse processo, ficaram evidentes as dificuldades de realização dos ideais democráticos, o que levou os teóricos a focarem a realização dos ideais normativos que se sustentam em duas mediações institucionais: o Estado e a sociedade civil.

No que diz respeito às instituições políticas e administrativas do Estado moderno, há o entendimento de que elas têm sido criadas a partir da premissa de que a complexidade das sociedades e dos problemas exige a especialização do conhecimento para a busca de soluções e algum isolamento das pressões sociais para que se possam alcançar resultados tecnicamente satisfatórios. De modo geral, as principais críticas quanto às instituições que comportam os processos políticos formais é que elas têm práticas democráticas restritas, não conseguem explorar soluções diversificadas para os problemas cada vez mais complexos, sustentando-se muito mais nas eleições e no voto (BOHMAN, 1996, 2000; COHEN E SABEL; 1997; SANTOS E AVRITZER, 2003; FUNG E WRIGHT, 2003). Por outro lado, J.S.Mill (1981) já enfatizava a insuficiência desses procedimentos para a decisão democrática quando destacava a importância do papel deliberativo da assembleia representativa que, além da função de vigiar e controlar o governo, deveria servir de arena para a expressão das diferentes opiniões

existentes na nação. A superação dos limites institucionais, que restringem o alcance da democracia, estaria na construção e/ou reformulação de instituições que contribuíssem para ampliar a participação e a deliberação pública acerca de questões que são significativas para a sociedade.

A busca por uma nova fonte de legitimidade democrática que não fosse restrita ao momento da autorização levou alguns teóricos democráticos a considerarem que, em sociedades plurais e complexas, há a necessidade de novas instituições que façam a mediação legal e política por meio de procedimentos deliberativos públicos e livres. Para parte significativa desses teóricos, denominados de deliberativos, essas instituições devem enfatizar a participação dos cidadãos na formação da vontade política, além de possibilitar a deliberação, o que aponta para a necessidade de revisão das instituições existentes, de modo que elas incorporem métodos e condições para o debate. Para Bohman (1996; 1998; 2000), que considera que a razão pública não é exercida unicamente no Estado, mas também na esfera pública de cidadãos livres e iguais, as regras constitucionais e instituições existentes podem ser alteradas de modo a enfatizar com mais vigor os princípios democráticos e incorporar novos públicos que venham a produzir efeitos inovadores na amplitude e no conteúdo das decisões políticas.

Para Benhabib (2007), além da existência de instituições organizadas por meio da interação comunicativa, recorrente para provisão de bens públicos, é relevante o desenho constitucional e institucional que sustenta a deliberação e o desenho associativo (condições sócio-estruturais e institucionais de ação coletiva no interior da sociedade civil). Isso implica pensar-se desenhos institucionais que reinterpretem práticas democráticas já instituídas à luz dos ideais deliberativos de modo que sejam viáveis face aos fatos sociais que possam constranger o próprio processo deliberativo, como questões de tempo e de recursos.

Esses desenhos não devem ser meramente pragmáticos, mas seguir padrões normativos que viabilizem os princípios participativos e deliberativos, valores democráticos considerados fundamentais por Cohen (1997). Ele enfatiza que a modelagem dessas instituições democráticas deliberativas deve reconhecer as capacidades deliberativas de todos e considerar a situação de pluralidade de valores e de concepções morais que perpassam as decisões políticas. Além disso, devem ser instituições que operam no interior dos três poderes e não sirvam simplesmente para implantar os resultados da deliberação, mas também para produzi-la, especialmente em contextos que exigem decisões cada vez mais urgentes e complexas. As instituições deliberativas, portanto, possibilitariam a discussão institucionalizada de problemas públicos e suas possíveis soluções, o que aponta para uma

nova forma de gestão pública, que aproxima Estado e associações voluntárias, mesmo que estas não se constituam numa rede densa, bem organizada e bem sucedida (COHEN E SABEL, 1997).

Também Bohman (2000) não isola as instituições de seus públicos, pois entende que os movimentos sociais e atores sociais, que emergem da esfera pública, têm papel relevante no refinamento do desenho institucional. Eles contribuem tanto na criação de novas instituições democráticas com ênfase na deliberação quanto na transformação das instituições já existentes, tornando-as mais porosas à promoção da deliberação, o que indica que a relação entre o público e as instituições é central para a manutenção da vitalidade democrática. Há, inclusive, a possibilidade de que o desenho institucional incorpore, na sua composição, atores sociais e agentes estatais, espaços partilhados por Estado e sociedade, que podem estar ou não situados no seio do Estado, para os quais o Estado cede parte de sua prerrogativa decisória e nos quais pode haver a expressão da diversidade e a publicidade das informações (AVRITZER, 2000; COHEN, 2000; GUTMANN E THOMPSON, 2000).

Diferentemente dos autores apresentados até aqui, e ainda que admita a centralidade do Estado nos processos de tomada de decisão coletiva e a possibilidade de sua democratização, Dryzek (2000) compartilha com Habermas (1997) a concepção de que os ideais deliberativos e a necessária capacidade de contestação do discurso estão situados na sociedade civil e na esfera pública, que transmite a opinião pública ao Estado com o intuito de influenciar as decisões legislativas e administrativas que ali são tomadas (NIEMEYER E DRYZEK, S/D).

Há, ainda, um conjunto de autores que entende que o potencial deliberativo não deve estar restrito nem à esfera pública, nem às instituições do Estado, mas presente em ambos. As desigualdades estruturais suscitam a atividade de grupos que as identificam e buscam alterá- las por meio de estratégias que só têm se mostrado efetivas quando efetuadas na esfera pública, na qual exercem pressão para a alteração das instituições existentes. Assim, o fortalecimento democrático deve visar tanto ao encorajamento e ao fortalecimento de movimentos sociais e associações civis que atuam na esfera pública quanto à criação de inovações institucionais sustentadas nos ideais deliberativos. Essas duas estratégias produzem resultados diferentes, mas que podem ser complementares entre si: a primeira tem alto potencial participativo e baixo potencial de impacto político direto nas decisões políticas formais; a segunda, baixo potencial participativo e alto potencial de impacto. A possível complementaridade estaria no aumento da oferta dos arranjos deliberativos, que têm maior impacto decisório, associado à articulação e/ou criação de redes que vinculem os que

participam das decisões nas inovações institucionais com a esfera pública ampliada (GUTMANN E THOMPSON, 2000; COHEN E ROGERS, 2003; YOUNG, 2003; COHEN E FUNG, 2004).

A criação ou reformulação de instituições que se orientam pelos princípios deliberativos traz para o debate a forma e o alcance que deve ter a democracia com ênfase na deliberação. Alguns teóricos entendem que a participação direta é o melhor ou o único meio para que os valores morais relativos à democracia deliberativa38 sejam assegurados, o que significa que todos os que estão sujeitos às decisões devem poder participar dos processos em que essas decisões são tomadas. Outros teóricos entendem que a deliberação pode ser feita por meio de representantes (formais ou informais), que deliberam pelos que não estão presentes. Nesse caso, há argumentos quanto à relevância que têm os partidos, pois organizam a associação entre indivíduos e ideias, sintetizam a multiplicidade de argumentos e alternativas existentes na sociedade, discutem um amplo conjunto de questões, são mediadores de informações para aqueles que detêm informação incompleta e provêem os meios para que indivíduos e grupos em desvantagem material possam participar das arenas deliberativas, enfim, por serem as instituições que orientam o processo de representação (MANIN; 1987; COHEN, 1997; MANSBRIDGE, 2003; URBINATI, 2006)39.

Entretanto, o surgimento de novos formatos institucionais que se estruturam por meio da representação e que diferem dos partidos e das instituições legislativas e administrativas próprias do Estado moderno tem suscitado a revisão do conceito de representação40. Na formulação de Young (2000), há situações em que determinados grupos sociais são representados por alguns de seus próprios membros, com os quais o grupo compartilha identidade e pontos de vista no que ela denomina de “representação por perspectiva”. A

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De forma geral, a teoria que trata da democracia deliberativa considera que a legitimidade democrática depende de que aqueles que são sujeitos a uma decisão possam participar da deliberação que antecede e produz essa decisão. No próximo capitulo, serão apresentados, de forma mais aprofundada, os principais aspectos relacionados à democracia deliberativa: seus princípios normativos, características, dimensões, assim como o debate contemporâneo acerca de suas possibilidades.

39 O estudo de Pitkin (1985) sobre a representação é referência para esse tema e a retomada recente da discussão

teórica sobre o conceito de representação para a democracia pode ser associada à constituição de espaços ou instituições que se fundamentam ou se estruturam tendo como referência alguns dos princípios deliberativos. Como não é esse o tema deste trabalho, apenas algumas idéias sobre representação são apresentadas nesta seção por se relacionarem às questões de pesquisa. Para maior aprofundamento nessa discussão recente, há os trabalhos de Young (2000), Urbinati (2000; 2006), Gurza Lavalle, Houtzager e Castello (2004; 2006), Abers e Keck (2007), Avritzer (2007), Lüchmann (2007), Pogrebinschi (2007), Almeida (2008).

40 O tema da representação é de suma importância para a discussão da participação política nas democracias. No

entanto, como não é o foco deste trabalho, apenas são apontados alguns aspectos que são percebidos como pertinentes aos novos espaços institucionais que viabilizam a representação, sob novos formatos, e que merecem estudos mais aprofundados.

origem comum, que une representantes e representados, estabelece uma relação de confiança entre ambos e legitima as decisões tomadas pelos primeiros mesmo na ausência de consulta prévias aos segundos. Outra formulação é apresentada por Dagnino (2002), que identifica que há casos em que a escolha do representante se dá pelo fato de ele deter domínio de competência, conquistada pelo conhecimento específico ou por sua trajetória de vida, o que a autora denomina de “representatividade por deslocamento”. Nesse tipo de representação, há interesses coincidentes entre representantes e representados, como no caso de pessoas que são escolhidas como representantes por sua atuação em defesa de determinados direitos.

A associação entre as ideias de representação e de deliberação é feita por Urbinati (2000), que argumenta que ambas são compatíveis entre si e que é importante se recuperar o valor normativo da representação. Para a autora, a ação política nas sociedades contemporâneas sustenta-se no discurso e a participação política tanto pode ocorrer de forma direta, em que se funde o falar e o fazer, quanto pode ocorrer por meio da representação, em que não há simultaneidade da presença do cidadão, mas uma “presença simbólica” por meio do discurso indireto formulado pelo representante. Nesse caso, um tipo de discurso público que transcenderia os interesses e experiências individuais e despersonalizaria as reivindicações e opiniões. A relação entre representantes e representados é considerada análoga à relação entre advogado e seu constituinte, em que o primeiro se empenha na causa relacionada ao segundo, mas mantém certa distância e relativa autonomia de julgamento.

Para Urbinati (2000), a falta de simultaneidade entre deliberação e decisão, o hiato entre falar/ouvir e retificar/votar, deve ser preenchido por uma rede de comunicações sustentada na esfera pública, que articula os cidadãos e cria uma simultaneidade simbólica com seus representantes, o que faz com que os cidadãos sintam como se estivessem presentes nos processos deliberativos. A representação, portanto, necessita de um continuum com a participação, sendo um curso de ação, uma prática política de interação entre cidadãos que vai além do voto e que se sustenta numa relação de confiança que decorre do controle dos cidadãos sobre os representantes e da prestação de contas que estes prestam àqueles.

A concepção de representação de Urbinati (2000) exclui a necessidade de existir uma identidade pré-política entre representantes e representados. O que há é o compartilhamento de visões e convicções, de ideais e projetos em que os representantes efetivamente advogam a causa dos representados e são capazes de reconstruí-la em suas mentes, de expressá-las convincentemente e de encontrarem o melhor caminho para alcançar os resultados almejados. A seleção do representante ocorre pela escolha daquele que é percebido como o melhor defensor. Com isso, assegura-se que grupos em desvantagem não sejam excluídos do processo

deliberativo, mesmo que não tenham representantes oriundos diretamente do seu meio, pois estão representados por quem os defende conforme seus valores e convicções.

A ideia de que a ação política nas sociedades contemporâneas sustenta-se no discurso e de que a forma de manifestação da presença política ocorre por meio da vocalização, que pode ser empregada tanto diretamente quanto pelos representantes, coloca em evidência a importância dos atos de fala para o processo político em que o discurso é a mediação entre as ideias e o mundo público (HABERMAS, 1997; DRYZEK, 2000; 2004; URBINATI, 2000; 2006). Nesse segundo tipo de presença – “presença vocal” –, a igualdade se expressa pela oportunidade da expressão pública das diferentes opiniões e discursos, sendo que o silêncio também pode ser percebido como uma forma de exclusão política, que pode ser sanada não somente pelo discurso direto, mas pelo discurso proferido por meio do representante.

Como bem ressalta Avritzer (2007), as formulações de Urbinati colocam em destaque as formas legítimas e não eleitorais de representação e a possível desvinculação entre soberania e representação, ainda que ele tenha críticas aos limites da proposição formulada pela autora. Avritzer apresenta seu próprio modo de entender a representação da sociedade civil em órgãos deliberativos, em que há a partilha com o Poder Executivo de prerrogativas de decisão. Para ele, um conceito de representação que abarque tanto a dimensão eleitoral quanto a não eleitoral deve se sustentar na ideia de múltiplas soberanias e na existência de tipos diferentes de autorização, decorrentes do papel de “agente”, de “advogado” e de “partícipe”. Como agente, a autorização é eleitoral; como advogado, há a afinidade entre o tema e aquele que advoga, uma identidade entre ator e representante em função do conteúdo do discurso que os vincula; como partícipe, há processos de escolha dos representantes, que se originam de organizações da sociedade civil que têm afinidade e que compartilham identidade e são solidárias entre si. O interessante na formulação de Avritzer é que as formas de representação por ele identificadas não são excludentes entre si, pelo contrário, se complementam e possibilitam a análise de possíveis inter-relações entre elas.

Os autores que analisam as possibilidades institucionais que venham dar mais qualidade ao Estado democrático consideram que tanto Estado quanto sociedade são passíveis de mudança, assim como as relações que eles estabelecem entre si. Nesse sentido, há elementos que parecem ser comuns às propostas ou análises de inovações institucionais: a associação entre ampliação da participação e o caráter deliberativo dessas novas instituições, a percepção de que a ação política contemporânea se sustenta fortemente nos atos de fala, o que traz para o campo da política o uso de formas diferenciadas de comunicação como a retórica e o discurso, novas formas de se exercer a representação e de se legitimar decisões. Esses

elementos apontados pela literatura permeiam a criação e o funcionamento dos conselhos de políticas instituídos no Brasil, cujo processo de criação é apresentado a seguir.

2.6 A reinvenção do Estado brasileiro: a criação de instituições que articulam