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3. Abordagem ecológica e percepção ambiental: uma visão sobre econicho

3.1. Perspectivas da abordagem ecológica

3.2.3. A percepção ambiental na abordagem ecológica

A abordagem ecológica consolida a visão da relação pessoa-ambiente como interdependente ao posicionar o ambiente como participante ativo no processo da percepção. De acordo com esta perspectiva, os aspectos físicos presentes no contexto da interação integram o espaço social e retratam aspectos socioculturais próprios das pessoas nele inseridas. Deste modo, os elementos físicos são considerados produtos sociais, com suas propriedades materiais e socioculturais intrínsecas e podem favorecer comportamentos específicos (Ittelson, 1978; Kuhnen& Higuchi, 2011).

A percepção do ambiente pela abordagem ecológica, enquanto fenômeno psicológico, assume uma noção mais abrangente que o estudo tradicional da percepção na psicologia (Heft, 2007a, 2007b; Ittelson, 1978). Ittelson (1978) definepercepção ambiental como um fenômeno que envolve cognição, afeto,significado, os propósitos das pessoas nas situações, valoração, preferências e estética ambiental. Assim para ele e para o campo da PA, perceber está relacionado ao modo como as pessoas experienciam os aspectos do entorno, considerando não somente aspectos físicos, mas incluindo outros aspectos sociais, culturais e históricos.

Este entendimento colabora com a concepção que o ambiente vivenciado não envolve apenas reconhecimento, organização e estímulos interpretados, mas compreende uma variedade de elementos perceptíveis funcionais que constituem o ambiente em que as pessoas vivem. É o perceber para agir. Na realidade, esse entendimento da visão ecológica direciona à conceituação da pessoa como um sistema unitário complexo e que nos repertórios contínuos ao longo do tempo em suasrelações com o ambiente, a informação, processamento cognitivo e a ação estruturam os fundamentos do perceber (Heft, 2007a). Em uma proposição sobre percepção, Kuhnene Higuchi (2011) sintetizam a questão:

O nosso contato com o ambiente físico envolve um processo complexo e dinâmico. Progressivamente internalizamos determinadas imagens que fazemos

desse espaço exterior a partir de nossas experiências cotidianas. No momento em que esses aspectos da realidade física são internalizados, passam a ser extratos cognitivos, mas não se reduzem a simples abstrações intelectuais. Essas imagens ou representações são ao mesmo tempo produtos e produtoras das relações sociais. As imagens são indicadoras de nossas práticas e significados relativos a lugares e objetos com os quais nos engajamos e ao mesmo tempo em que foram criadas a partir de um repertório histórico fundamentado na intersubjetividade humana. (p. 260)

Enquanto tradição da psicologia ambiental, a cognição ambiental aponta para informações adquiridas, codificadas, armazenadas, recordadas em um contínuo de tempo. A literatura do campo tem usado de forma intercambiável os termos cognição ambiental, percepção ambiental, orientação ambiental, imagem ambiental ou mapas cognitivos (Altman & Chemers, 1980; Pinheiro, 2013). Todavia, uma relevante definição a ser enfatizada é que na abordagem ecológica há uma reconceituação da divisão tradicional entre percepção e cognição (Heft, 2007a). A abordagem ecológica rejeita a distinção entre percepção e cognição como funções separáveis. Segundo seus pressupostos, a cognição refere-se a formas de compreensão sobre o econicho e a percepção é um dos vários modos de cognição, por se basear na detecção de informações do econicho por meio de significados funcionais percebidos para a ação. Reed (1988) define que nesta direção a percepção é “uma consciência de locais, objetos, pessoas e animais existentes do meio ambiente e de eventos em andamento" (p. 299).

Esta conceituação perturba a divisão tradicional entre percepção e cognição, tanto como fenômenos psicológicos distintos, quanto ao fato da perspectiva temporal. A percepção tradicionalmente sempre foi considerada limitada a um momento circunscrito no tempo (presente) e a cognição sempre sinalizou uma orientação de futuro para além do momento presente, através de processos como a expectativa e inferência com base na experiência anterior. Com o foco no comportamento adaptativo e relacional, William James apresentou o tempo presente como um momento fictício, ilusório, apenas apontando simultaneamente para

o que foi passado e o que é futuro. James argumentou que a experiência não é divisível em momentos temporais discretos e sim contínuos (Heft, 2007a). Gibson (1994) e Heft (2007a) resumem a questão temporal afirmando que o perceber é uma coleta de informações ao longo do tempo, e que intrinsecamente é um fenômeno prospectivo, com orientação de futuro.

Na abordagem ecológica, a representação interna da organização espacial envolve a compreensão de como o ambiente está presente no processo perceptual e de como se estabelece a natureza da informação do estímulo. A informação vem do econicho e envolve a interligação da percepção e da ação inextricavelmente. Heft (2007a) defende que perceber econicho é compreender estímulos funcionais como funções coordenativas e não de maneira estática. No econicho, a informação está contida em uma continuidade momento a momento e Gibson (1979) organizou aspectos tradicionais da matriz óptica em “um ponto” de observação em movimento. Primeiro, ele afirmou que os recursos ambientais persistentes são mais prontamente detectados no contexto da mudança e que "o que é invariante não emerge inequivocamente, exceto com um fluxo" (p. 73). Gibson (1966) ainda sugeriu que "com o tempo, à medida que o indivíduo se move pela casa, rua, cidade e país... todas as transformações formam um grupo, tornar-se evidente para ele "(p. 206).

Em segundo lugar, ele posiciona que ao se compreender o papel básico que a ação desempenha na percepção, reconhece-se simultaneamente a inadequação de uma teoria que defina a percepção como uma recepção passiva de entradas de estímulo-resposta ou função de entrada-saída. Nisto reside a principal diferença entre perceber o ambiente e perceber econicho.Perceber o ambiente estabelece que a informação está na mente para ser manipulada e transformada a partir de processos mentais. Na abordagem ecológica, a “informação” está no econicho para ser captada funcionalmente por um percebedor (Gibson, 1986/2015).

O modus operandi da informação captada no econicho estrutura a percepção não como um modo de conhecimento ambiental posicionado a um status secundário em relação à

cognição, como já foi citado. Heft (2007a, 2007b) analisa que, de acordo com a tradição das teorias perceptivas, a percepção é baseada na estimulação "aqui e agora" (ou seja, em um local específico no espaço e momento no tempo). Ele defende que a consciência de aspectos do ambiente que não podem ser vistos só "aqui-agora" e que devem necessariamente ser baseados em processos não perceptivos como memória. Examinado esse posicionamento analítico, a percepção parece ser em grande parte uma operação perceptiva suplementada por processos cognitivos e pela memória.

Em síntese, a definição ecológica da percepção é que ela é “um processo de coleta de informações que envolve a atividade exploratória de olhar em volta, se locomover e observar as coisas" (Gibson, 1986/2015, p. 147). O perceber envolve experimentar o mundo através da captação de informações, em um keeping-in-touch com o mundo, uma experiência das coisas em vez de ter uma experiência” (Gibson, 1986/2015, p. 239). Essa experiência das coisas envolve pontos de observação em movimento e o perceber aspectos invariantes do ambiente. Ao tratar esta questão, Gibson (1986) afirmou que a forma de descobrir os ambientes de maneira ecológica (em diferentes graus de escala-prédios, bairros para cidades e até estruturas mínimas) organiza-se a partir de cada estrutura revelada, enquanto o observador “navega” através deste ambiente. Heft (2007) sugere que os aspectos do ambiente ecológico se revelam com o tempo para dar origem a uma consciência de sua estrutura geral (sistêmica). A abordagem ecológica compreende que as informações invariantes são reveladas no conjunto de informações de estímulo em mudança (possibilidades de ação, momento a momento), sejam elas produzidas “navegando” em torno de um objeto ou em uma cidade.

Tradicionalmente, os aspectos constituintes do conhecimento espacial envolvem conhecimento físico e derivações lógico-matemáticas das relações dos objetos e do espaço. Investigadores pioneiros nesse assunto como Piaget, Inhelder, Hart, entre outros, demonstraram que existe uma construção gradual no desenvolvimento cognitivo em relação

ao espaço (Higuchi, Kuhnen, & Bonfim, 2011). Higuchi e Kuhnen (2008) asseguram que o desenvolvimento nas relações espaciais não ocorre em um vácuo, mas está direcionado às experiências vividas pelas pessoas no cotidiano delas. Embora diversos trabalhos de investigação sobre cognição ambiental tenham sido desenvolvidos com pesquisas sobre o desenvolvimento da noção dos espaços em crianças, Lynch (1999) enfatiza que processos de orientação espacial no ambiente urbano, podem considerar uma faixa etária maior.

Relembro que para a abordagem ecológica é incoerente a separação dos conceitos sobre percepção e cognição ambiental. Assim sendo, a operacionalização da cognição ambiental envolve percepção dos estímulos fornecidos pelo econicho. O econicho não se apresenta como um cenário para as ações humanas (embora contenha um locus para a sua existência). Os estímulos fornecidos por ele compreendem duas ordens de fatores: os biofísicos e os psicossociais. No econicho, os fatores biofísicos envolvem características do ambiente, dos fenômenos e dos objetos presentes (propriedades das paisagens, cheiros, gostos, temperatura, etc.); e os psicossociais dizem respeito às experiências vivenciadas por uma pessoa em uma época ou momento (características cognitivas, sociais ou afetivas, valores e significados incorporados culturalmente, diversidade de gênero e étnica, etc.) (Higuchi, Kuhnen, & Bonfim, 2011).

Segundo a tradição, uma forma de se operacionalizar aspectos psicossociais é o estudo dos mapas mentais (cognitivos) que representam a visão que cada pessoa elabora do lugar. Embora embasados em uma referência pessoal, traços culturais e sociais, os mapas mentais estão indissociavelmente alinhados na representação do espaço. Segundo Lynch (1999), o mapa mental é uma abstração, não uma realidade física em si, mas são impressões genéricas que o aspecto real provoca em um observador. O conceito de mapa cognitivo necessita ser mais discutido em uma abordagem ecológica. Heft (2007b) não sugere essa necessidade em pesquisas estimulando uma técnica projetiva, mas considera que a análise da imagem mental

associada a observações, comentários e justificativas dos respondentes, que pode auxiliar pesquisadores a compreender como os espaços são representados e quais elementos são importantes nos comportamentos adotados pelas pessoas individualmente ou em grupo.

A imagem que surge por meio do mapa cognitivo é dinâmica e pode mudar de acordo com as circunstâncias. Contudo, ao invés de um exame de vários aspectos das representações mentais dos indivíduos sobre os ambientes, dentro da perspectiva ecológica, o conceito de mapa cognitivo deve "espacializar" fenômenos temporais, e a investigação de rotas de navegação necessita da informação do estímulo que suporta os aspectos funcionais sistêmicos (Heft, 2007a). Uma síntese dessas necessidades reside no cerne da informação extraída no econicho.

Essa informação estabelece-se ao longo do tempo e é utilizada como “rota” para o percebedor. Essa afirmação tem influência de aspectos explicativos da percepção ambiental gibsoniana na teoria das affordances (Gibson, 1986/2015, 1979). No econicho, as transições que são percebidas no tempo, conectam visões sucessivas por meio do significado funcional apreendido (affordances). Seguindo este raciocínio, uma rota de navegação pelo ambiente pode ser compreendida como construída através das affordances percebidas no econicho (Garling, Book, & Lindberg, 1984; Gibson, 1986/2015; Heft, 1996, 2007).

Para a abordagem ecológica, os recursos da memória e imaginação se posicionam como um modo não perceptivo que auxiliam a captação da informação fornecida pelo econicho. Imaginar, para a abordagem ecológica é a consciência de um objeto ou evento que poderia acontecer ou ser gerado, vinculado a aspectos perceptivos da conscientização dos recursos persistentes do ambiente (Reed, 1991; Gibson, 1986/2015). Toda a organização perceptual relaciona-se a uma funcionalidade de ação detectável ao longo do tempo (affordances) (Heft, 2007a). Pelo olhar ecológico, os processos mentais atuam como facetas

colaborativas desse sistema perceptual unificado, porquanto a experiência com o ambiente é direta e não mediada.

No econicho, as inúmeras informações a serem percebidas em um exercício continuo de exploração e aprendizagem, torna as habilidades da ação perceptiva cada vez mais refinadas. As diferentes possibilidades de ação, interpretadas nas affordances momento a momento, não são "disparos" mecânicos de uma relação estímulo-resposta, mas estabelecem o ambiente como relacional, com significado e carregado de valor (Heft, 1989). Gibson (1979) defende que perceber é um processo de valorização ecológica do objeto. Ele cita que “a física pode ser livre de valores, mas a ecologia não é” (p. 140).

Na teoria gibsoniana, duas categorias das affordances são pontuadas: as affordances de recursos animados(pessoas), que fornecem "o mais rico e mais elaborado affordance do meio ambiente "(Gibson, 1986/2015, p. 135); e as relativas à recursos inanimados (objetos) com significado universal, funcional e culturalmente derivadas. Gibson sintetiza que as affordances têm características naturais e são produtos de atividades culturais. Em termos evolutivos, a espécie humana organizou sua base cultural por meio das pressões de seleção, como a capacidade de trabalhar em grupos e de se beneficiar da instrução de outros. Assim sendo, a evolução cultural e biológica são inextricavelmente interligadas (Gibson, 1986/2015; Reed, 1991).

Em síntese, Gibson (1979) e Heft (2007) defendem que a teoria das affordances oferece uma abordagem funcional à descrição ambiental, por acrescentar conteúdo psicológico, temporal e funcional ao espaço. A posição ecológica sugere uma diferente abordagem para aspectos representacionais de processos internos e um olhar relacional para as informações ambientais disponíveis para serem percebidas. A abordagem ecológica não exclui a subjetividade, mas defende uma nova forma de análise das conceituações relacionais pessoa-ambiente.

No campo da psicologia ambiental, a percepção pode ser estudada por uma ampla gama de metodologias e técnicas (Aragonés, 1991; Cavalcante & Maciel, 2008; Ittelson, 1978; Ittelson et al, 1974; Kuhnen& Higuchi, 2011; Rogoff, 1990; Sommer, & Sommer, 1997; Stokols, 1978; Tuan, 1980). Para estudos em abordagem ecológica, os pressupostos de Gibson e Barker, sobre percepção (no conceito das affordances) e sobre configurações de comportamento (no conceito do behavior setting), respectivamente, colaboram com os entendimentos dos contextos de heterogeneidade teórica intrínsecos aos estudos do campo da psicologia ambiental. Essas assertivas contribuem significativamente em poder teórico e valor heurístico para aárea.

Para finalizar, posiciono que são nestas direções e entendimentos que (re)organizo conhecimentos, (re)construo avaliações e impressões sobre a percepção ambiental por meio da perspectiva ecológica, para estudar aspectos que envolvem a escolha do alimento orgânico em feiras especializadas. Conhecer como as pessoas percebem, vivenciam e significam o alimento orgânico no contexto das feiras, poderá auxiliar na compreensão de elementos psicológicos que favoreçam comportamentos mais sustentáveis. Sequencialmente, na proposta de pesquisa, apresento alguns aspectos norteadores da decisão de investigar este tema.