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1. Agri-cultura orgânica: história e práticas

1.2. Outros caminhos para além da Revolução Verde

O leigo vê a fumaça que sai das chaminés, dos escapes dos carros, vê a sujeira lançada nos rios. Mas, quando compramos uma linda maçã na fruteira da esquina,

mal sabemos que esta fruta recebeu mais de trinta banhos de veneno no pomar e, quando entrou no frigorífico, foi mergulhada em um caldo de mais outro veneno. Alguns dos venenos são sistêmicos...

José Lutzenberger (1985) O padrão estandardizado na agricultura gerou inúmeras e danosas consequências em um profundo desequilíbrio social e biológico na biosfera. Prosseguindo nestas questões, nesta

seção tratarei aspectos sobre uso de substâncias químicas na produção agrária, a ineficácia energética do modelo implantado neste sistema dito “verde” e nas características da produção orgânica. O olhar dessas proposições está voltado para uma dimensão ambiental, a qual pressupõe um entendimento para além do ecológico (biocenose ou biota), estabelecendo relações sociais e culturais da produção agrícola (Abrasco, 2015; Azevedo, 2012; Lutzenberger, 1985, 1995, 2000; Nierdele, Almeida, & Vezanni, 2013).

Na cultura agrária contemporânea, a relação produtor-produto (alimento) estabelece bases de “qualidade” em uma produção de “quantidades”. Para se atender interesses diversos, grandes volumes de produção são impostos pelas monoculturas latifundiárias, subsidiando igualitariamente o mercado de fertilizantes, herbicidas, inseticidas e praguicidas em colheitas. Porto-Gonçalves (2015) apresenta dados da FAO demonstrando que de 1950 a 2000, a produção mundial de grãos chegou a ser 2,9 vezes maior e que o uso de agroquímicos aumentou em 10,1 vezes neste mesmo período. Embora diversos pesquisadores, agências, órgãos internacionais e nacionais façam constantes alertas científicos sobre os riscos e toxicidades devido ao uso de substâncias químicas na produção de alimentos, o caminho percorrido é o inverso (Abrasco, 2015; Azevedo, 2013; Klein, 2001; Lutzenberger, 1985).Governos e órgãos regulamentadores falam em minimizar questões de agressão ambiental, contudo os posicionamentos são minimamente confusos.

Em 2016, a FAO e a Organização Mundial de Saúde publicaram diretrizes na tentativa de reduzir os danos causados pelos agrotóxicos, que representam riscos para a saúde humana e do meio ambiente. Esse diálogo esbarrou em diversas questões éticas e morais sobre o uso de agroquímicos. Estudos toxicológicos não conseguem precisar consequências, interações e efeitos sinérgicos provocados em pessoas e no ambiente pelo uso dessas substâncias isoladas ou associadas. Levantamentos científicos falam sobre efeitos carcinogênicos, agregação de xenobióticos (substâncias estranhas aos organismos), repercussões teratogênicas (mutações),

sensibilidades e alergias, distúrbios neurocomportamentais e neurológicos, alterações de imunidade, entre outros muitos transtornos fisiológicos e bioquímicos citados nesta direção (Anvisa, 2008; Beseler, & Stallones, 2008; Bezerra, & Schneider, 2012; Carson, 1962/2010; Siqueira, & Kruse, 2008).

Neste panorama, discutir segurança de pesticidas com definições de níveis de ingestão diária aceitável (IDA), considerando que uma quantidade estimada pode ser ingerida ao longo da vida e sem riscos aparentes para a saúde, parece-me enquadrar o mesmo diálogo jocoso sobre “quantidade tolerada da presença de pelo de roedores em molhos de tomate” (Anvisa, 2014). As IDAs se aplicam para toda a população, exceto para lactentes com menos de 12 meses. Entretanto, já em 1962, Rachel Carson apresentou pesquisas que demonstravam a presença de produtos químicos em leite materno.

Os riscos seguem e as regulamentações/fiscalizações não acompanham. O dilema linguístico de agrotóxicos versus produtos fitossanitários ou defensivos agrícolas, expõe a hipocrisia do interesse econômico e a superficialidade de algumas discussões que simplificam riscos e consequências da imprudência do uso dos agroquímicos. A vigente cultura agrária global (incoerente e disfuncional), exige minimamente uma regulamentação, todavia, é explícito e pulsante o viés econômico-político presente nesta questão.

Como exemplo de avanço no uso intensivo de agrotóxicos no Brasil, dados divulgados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), durante o 2º Seminário sobre Mercado de Agrotóxicos e Regulação (2012), mostram que enquanto nos últimos dez anos o mercado mundial de agrotóxicos cresceu 93%, no Brasil cresceu 190%. Desde 2008, o Brasil ocupa o posto de maior mercado mundial de agrotóxicos e entre os anos de 2015 a 2017, movimentou-se em território nacional US$ 9 bilhões/ano em torno desta questão (Abrasco, 2015).

O mercado nacional de agrotóxicos já oligopolizado e com proprietários definidos, caminha para fusões sem precedentes. Neste período (2015 a 2017), nove empresas representavam 70% das vendas deste tipo de insumo para a agricultura brasileira e para 2019 estão agendadas fusões entre Dow e Dupont, Bayer e Monsanto, representando o oligopólio de 5 empresas no mercado brasileiro. A Syngenta e Adama, embora com estruturas separadas, representam uma só – a Chemchina e a FMC uniram-se a Cheminova. Com essas fusões, o mercado brasileiro ficará composto (encapsulado) pela Bayer, Syngenta/Adama, Corteva (Dow/Dupont), Basf e FMC (Associação Brasileira dos Defensivos Genéricos, 2018).

Essas grandes corporações vêm dirigindo seus interesses para a Argentina, Paraguai, Bolívia e Brasil, visando não somente o mercado de herbicidas, mas também o de sementes (via produção transgênica). Mercados se fundem em um entrelaçamento de agricultura e agronegócio. Nesse jogo, a estratégia mercadológica envolve aparato político, jurídico e econômico para respaldar, sem as devidas análises e precauções, diversas práticas prejudiciais ao meio ambiente e as pessoas, e entre elas, o uso de produtos agroquímicos nas culturas agrícolas. Infelizmente, o Brasil é um excelente exemplo desta postura cultural do fazer agrário contemporâneo (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, 2015).

Nesse panorama brasileiro, desde a década de 80, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) defende uma agricultura em oposição ao modelo hegemônico do agronegócio nacional. Inicialmente, combatendo o latifúndio e as grandes propriedades concentradas em poucos donos, a partir de 2014, o movimento amplia olhares para a defesa da agroecologia. O MST que sempre apostou no modelo das pequenas propriedades centradas na família, agora investe em alimentos saudáveis como alternativa ao “veneno” representado pelos agrotóxicos, usados na agricultura tradicional. Em 2017, o movimento alcançou a posição de maior produtor de arroz orgânico na América Latina e por intermédio de suas feiras agroecológicas, estabelece diálogo com a sociedade urbana (Nexo Jornal, 2018).

Em meio a esse cenário predador de cultura agrária mundial, Leff (2004) e Shiva (2001) propõem como um caminho de diálogo, uma racionalidade nas questões relacionadas a sociedade e natureza. Leff (2004) sugere que se considerem não somente as relações com a natureza, mas as relações sociais e de poder travadas por meio das relações com a natureza.

Embora ele admita uma complexidade da harmonização de interesses entre “colonizadores e

colonizados”, todavia, defende que o caminho de análise e de organização para se chegar a uma sociedade sustentável passa por esse diálogo. Nesse turno, alguns impasses de interesses econômicos necessitam ser reestruturados nesse modelo agrotécnico de relações sociais e de poder, como pondera Shiva (2001):

O balanço que já se podia fazer da Revolução Verde, nos anos 1970, acusava que o mundo passara a viver uma situação nova e ambígua: pela primeira vez na história da humanidade a quantidade de alimentos ultrapassava as necessidades da humanidade, e como já dizia Josué de Castro, a vergonha de nossa época não é que hoje exista fome, e sim que hoje a fome conviva com as condições materiais de resolvê-la [...]a produção de alimentos vem sendo cada vez mais concentrada na mão de menos produtores, e em muitos lugares a implantação da Revolução Verde agravou os problemas da fome e acentuou os conflitos sociais. (p.142) Em defesa da importância de se analisar uma racionalidade econômica mercantil, Leff, Argüeta, Boegue e Porto-Gonçalves (2002) se posicionam sugerindo que a natureza seja tratada como riqueza e não recurso. Contudo, Porto-Gonçalves (2015) ainda discute a dificuldade de se implantar esta perspectiva em uma sociedade global com temporalidades e territorialidades diferentes afirmando que:

A temporalidade do capital, sobretudo nesse período técnico-científico e informacional, com sua velocidade em permanente frenesi relativiza de tal forma a relação que cada povo e cultura estabeleceu com o espaço, com o tempo, com a natureza em geral e com sua manifestação em cada ser específico e por suas relações entre si, que termina por tornar obsoleto qualquer sistema de normas, antes mesmo que tenha sido assimilado por cada um dos responsáveis por estabelecê-lo. (p. 278)

O dilema continua e a questão permanece na tentativa de se estabelecer o diálogo entre a natureza como riqueza e o padrão de poder consolidado nos sistemas agrários do sistema neoliberal globalizado.

Além de todas essas dificuldades, outras questões se deparam sobre o uso de energia. O modelo energético implantado nesse fazer agrário é ineficaz e exige um entendimento mínimo sobre limites de temporalidades e territorialidades. A Terra que sempre encontrou caminhos para sobrevivência de ecossistemas e para sua autonomia energética, em termos civilizatórios humanos, esbarra em um dilema de tempo geológico necessário à energia fóssil (petróleo e carvão), que não atende nem a “ansiedade” da nova cultura agrária e nem mesmo, às leis da termodinâmica para reposição energética. A instrumentalidade energética e a tecnociência desse modelo produtivo reduziu o tempo a uma abstração matemática, na busca pela acumulação de capital, ampliou, neste turno, os riscos ambientais e civilizatórios pelo uso de combustíveis fósseis, em uma concepção temporal completamente equivocada e focada no capital (Porto-Gonçalves, 2015).

Apenas em termos ilustrativos e para enfatizar o avanço histórico do consumo de energia nas culturas agrárias, Matias (2017) sintetizou o uso de energia demonstrando que o homem primitivo consumia apenas a energia contida na sua alimentação (uma média estimada de 2000 kcal/dia). O homem caçador (100.000 a.C.) consumia alguma energia adicional na cocção (chegando a 5000 kcal/dia). O homem agrícola (5.000 a.C.) utilizava também a energia animal em trabalhos do campo (com consumo energético per capita de 16.000 kcal/dia). O homem medieval europeu com moinhos de vento e os moinhos d’água acrescidos ao seu consumo energético (26.000 kcal/dia). O homem industrial (Inglaterra do século XIX) introduziu a máquina a vapor (e o consumo per capita de todas as formas de energia já utilizadas somavam 77.000 kcal/dia) e, finalmente, o homem tecnológico (Estados Unidos do

século XX) introduziu, inclusive, a eletricidade e os motores de combustão interna (chegando o consumo individual a cerca de 230.000 kcal/dia).

Em uma análise sobre energia fóssil aplicada na produção de alimentos nos Estados Unidos, Ackerman-Leist (2013) demonstrou que a produção agrícola estadunidense consumia 21,4% do total de energia empregada na produção alimentar (do campo à mesa das pessoas). No Brasil, dados nacionais estão fracionados em trabalhos por região ou por culturas (soja, milho, algodão, etc.). Um estudo sobre silagem de milho no Paraná, por exemplo, demonstrou que o consumo de energia direta com combustíveis e lubrificantes para maquinários representou 45 % do total aplicado na produção, sendo 24,1 do total direcionado para os defensivos agrícolas e 10,5% para fertilizantes. A dinâmica energética do agronegócio envolve também a expansão da rede de transportes para atendimento de toda a sua logística (silos, armazéns, portos, entre outros). A ampliação das fronteiras agropecuárias (latifúndios), além de desmatamentos e desapropriações, também demandou a ampliação do uso de combustíveis fósseis para deslocamentos.

Como proposta antagônica a este sistema, Ackerman-Leist (2013) demonstrou que a reconstrução de sistemas alimentares locais, minimiza o consumo de energia direta (produção, transporte, armazenamento) e consolida práticas mais sustentáveis na agricultura. O pesquisador afirma que a eliminação de fertilizantes e pesticidas sintéticos, além de melhorar aspectos ambientais, sociais e de saúde, reduz em 33% o uso dos insumos energéticos da agricultura.

As discussões sobre usos de energia, saúde biológica e socioambiental demonstram que a produção e consumo dos alimentos orgânicos é uma excelente opção à valorização de culturas agrárias ambientalmente mais ajustadas (Abrasco, 2015; Ackermain-Least, 2013; Azevedo, 2012; Medaets, & Fonseca, 2005; Sebrae, 2015, 2016). A produção alimentar orgânica traz em si uma noção de sustentabilidade e de responsabilidade social que se

estabelecem desde seu cultivo até o consumo final. Diferentemente do proposto pela agricultura dita convencional (com bases conceituais da Revolução Verde), a agricultura orgânica estrutura-se como um sistema alimentar que apresenta características produtivas mais equilibradas em sua organização. Considera-se um sistema orgânico de produção alimentar:

Todo aquele em que se adotam técnicas específicas, mediante a otimização do uso dos recursos naturais e socioeconômicos disponíveis e o respeito à integridade cultural das comunidades rurais, tendo por objetivo a sustentabilidade econômica e ecológica, a maximização dos benefícios sociais, a minimização da dependência de energia não-renovável, empregando, sempre que possível, métodos culturais, biológicos e mecânicos, em contraposição ao uso de materiais sintéticos, a eliminação do uso de organismos geneticamente modificados e radiações ionizantes, em qualquer fase do processo de produção, processamento, armazenamento, distribuição e comercialização, e a proteção do meio ambiente. (Lei n° 10.831, 2003, p. 1)

A preservação ambiental e o respeito social promovidos pelo processo produtivo orgânico trazem em si a reflexão sobre uma cultura agrária mais ajustada aos ecossistemas, sinalizando para o retorno de processos sustentáveis de cultivo e de estabelecimento relações humano-ambientais mais equilibradas. O acréscimo de benefícios enumera-se na redução de danos biológicos e sociais no presente para ecossistemas (pessoas, insumos e ambiente), restrição quanto à perduração em uma escala de processos agressores continuados e implicação em uma redução nos agravos ambientais no futuro. Nessa direção, a produção alimentar orgânica contribui consideravelmente para uma perspectiva de futuro sustentável, coadunada a técnicas agrícolas que não agridem o meio ambiente, com relações de trabalho mais justas e assegurando o consumo de um alimento mais saudável (Azevedo, 2012; Pessoa, & Alchiere, 2013).

Pensar em outros caminhos para além da Revolução Verde impõe a necessidade de uma modificação cultural nas relações de poder e capital para a produção alimentar. Os princípios de produtividade dos paradigmas agrários contemporâneos e os princípios da

sustentabilidade são extremamente contraditórios. Admitindo que eles vão coexistir por enquanto, é preciso imaginar um novo tempo (não só cronológico, mas cultural), no qual valorizemos enquanto sociedade global, uma riqueza socioambiental e não somente a econômica. O trabalho para recuo de uma cultura agrária predadora e a reprogramação de monoculturas da mente, esbarra em conceitos convencionais que devem ser reinterpretados e reestruturados para corresponder à sustentabilidade. Tentando fazer valer o que escreveu Chico Science, em Monólogo ao pé do ouvido:

O orgulho, a arrogância, a glória, enche a imaginação de domínio de poder [...] Bravio da humanidade, Viva Zapata, Viva Sandino, Viva Zumbi, Antônio Conselheiro, Todos os Panteras negras, Lampião sua imagem e semelhança [...] Há um tempo atrás se falava de bandidos, Há um tempo se falava em solução, há um tempo atrás se falava de progresso, há um tempo atrás eu via televisão.