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A PERCEPÇÃO DOS PROFESSORES E PROFESSORAS

Ficou evidente que as professoras da 5ª e 6ª séries davam mais atenção aos meninos, fato que estimulava a maior parti- cipação deles e o silenciamento delas. Este silenciamento ge- rava dificuldade de expor suas fraquezas e dúvidas e dificulta- va o aprendizado delas. A professora da 5ª série assumia sua preferência por ensinar meninos, ou seja, não era uma atitude inconsciente. Impensada pode ser, mas ela tinha consciência do que fazia e se culpava por isso. Ela via esta situação como um problema dela, algo que percebia como indevido, mas não conseguia mudar.

A: Você vê alguma vantagem em lidar com as meninas?

B: A vantagem que eu vejo em dar aulas pras meninas... é que eu acho que elas produzem mais com relação ao que você pede pra eles ... e elas atendem com maior grau a tua expectativa ... eu penso que elas são mais dedicadas.

A: E uma vantagem de lidar com os meninos...

B: Como professora de Matemática... eu me sinto mais satisfeita com relação ao aprendizado deles ... mas eu tenho um problema muito sé- rio que é meu... tá ... eu sou apaixonada nos meninos com relação a aprendizagem de Matemática ... mas é um problema meu que eu sei que não é verdade que os meninos aprendem mais que as meninas... eu sei que não é verdade ... mas eu tenho um problema meu que eu me entusiasmo muito com os meninos quando eu ensino e que eles vão me acompanhando e me respondendo ... eu fico muito entusiasmada com eles... então é um problema meu (Marina, profa. da 5ª série).

A fala da professora deixa transparecer que mesmo que as meninas tenham uma melhor produção do que os me- ninos, ela prefere ensinar a eles. O que a entusiasmava nos meninos era a vibração deles com a matéria, com o que ela estava ensinando. As meninas, silenciadas que são, não mani- festavam nenhuma reação, o que não estimulava a professo- ra. Ela evidencia que, pela própria experiência, ela que tinha 30 anos de magistério, sabia que esta percepção era equivo- cada, pois meninos e meninas tinham a mesma capacidade de aprendizagem e apresentavam rendimentos semelhantes. Demostrava um certo sofrimento por pensar assim, sentia-se culpada por não conseguir mudar esta forma de pensar e de agir. Esta culpa foi percebida também na fala da professora Marjorie (6ª série), o que não aconteceu nas falas dos profes- sores Carlos e Rafael.

Romper as regras é uma forma de fazer valer suas vonta- des e demonstrar que não existe uma submissão completa ao que é determinado pelo/a professor/a, pela direção ou pelos/ as colegas. É uma forma de se apropriar do poder e fazê-lo cir- cular, no conceito de Foucault (2009). Os meninos eram mais barulhentos ao romper as regras e por isso dava a sensação

de que o faziam com mais frequência. A sutileza das meninas levava, após o primeiro olhar, à conclusão equivocada de que elas eram submissas ao que era preestabelecido, porém um olhar mais atento era capaz de captar que elas também infrin- giam as normas sempre que desejavam, como se evidencia no excerto a seguir.

O professor entrega as provas. Duas meninas tentam se comunicar. Uma aluna usa a calculadora do celular. Ouço o barulho das teclas (DC, 8ª série, 09/06/2009).

Os/as professores/as percebiam as meninas e meninos com comportamentos diferenciados. Elas eram vistas como mais caprichosas, dedicadas e esforçadas e eles como mais desleixados, ativos e participativos. A professora Marina per- cebia os meninos como mais insurgentes, como predispostos a romper os limites por ela estabelecidos e as meninas como mais submissas às ordens dadas por ela, como mais respeito- sas. Já o professor Carlos considerava as meninas como mais dedicadas e os meninos como mais capazes de aprender, com o cognitivo mais desenvolvido. São percepções baseadas nos estereótipos que preveem as mulheres e os homens com ca- racterísticas como as citadas por eles.

Porém, a professora Marina percebia que, ao longo do tempo em que lecionava, houve uma mudança na postura e nas atitudes das meninas e dos meninos em sala de aula. Na fala dela percebe-se a convergência para a percepção dos alu- nos e alunas acima citados no que tange ao comportamento dos/as estudantes em sala de aula. Eles são percebidos pela professora como mais barulhentos, porém, ela destaca que nos últimos anos as meninas passaram a fazer mais bagun-

ça, desordem. A professora percebe ainda que a mudança de postura das meninas provocou transformações no compor- tamento dos meninos, fazendo com que elas assumissem a liderança em sala de aula.

A: A bagunça deles é mais barulhenta?

B: É mais barulhenta... a bagunça deles é mais barulhenta... só que ... isso de uma forma geral... nos últimos 10 anos... eu acho que tem... tá meio igual ... sabe... os meninos ainda a gente percebe que bagunçam mais ... mas eu acho que igualou bastante.

A: Igualou por quê eles diminuíram um pouco ou por quê elas au- mentaram?

B: Eu acho que porque elas aumentaram... eu percebo assim que a ousadia delas aconteceu o seguinte... eles estão um pouquinho mais tímidos em relação as atitudes das meninas... pode saber a liderança em sala de aula dificilmente tem meninos... só tem mulher ... só tem meninas na liderança (Marina, profa. da 5ª série).

Marina percebe ainda que, no que tange ao estabelecido em sala de aula, os meninos são os mais desobedientes, entre- tanto, as meninas são mais respondonas. Ela percebe que esta postura das meninas é prejudicial na relação entre professora e alunas, pois a magoam como pessoa. Demonstra cuidado para que esta mágoa não interfira em sua avaliação do desem- penho dos/as estudantes. A fala da professora demostra ainda dificuldade de aceitar este questionamento das meninas. Dá a sensação de que ela não está acostumada a ser questiona- da e quando alguém o faz, gera desconforto. Como se perce- be que os meninos não têm o mesmo comportamento, não é possível saber se este desconforto se dá pelo fato de que são meninas as autoras do enfrentamento ou simplesmente pelo fato em si. Cabe ressaltar que nós, enquanto professoras/es,

não estamos acostumadas/os a ter as nossas determinações questionadas e, talvez, em situação semelhante a enfrenta- da pela professora Marina tivéssemos a mesma sensação e, quem sabe, dificuldade em assumir este sentimento com re- ceio do julgamento que outros/as poderiam fazer.

O excerto a seguir evidencia o sentimento da professora Marina diante do enfrentamento das meninas.

A: Quem desobedece mais quando você pede pra fazer alguma coisa? B: Olha ...os meninos me desobedecem mais e as meninas me respon-

dem mais.

A: Elas respondem... elas questionam?

B: Elas respondem... elas brigam mais ... os meninos... eles ficam quie- tos mas eles não fazem ... elas não... elas já respondem na hora ou questionam na hora.

A: Você acha que isso é favorável a elas ou não?

B: Com relação a minha relação com elas não é favorável ... tá... por- que as respostas delas... eh... vai me ofendendo mais pessoalmente as- sim sabe...porque elas vão... então... com relação ao relacionamento nosso ... eu tenho que ir sempre apagando, apagando... eu não posso ir acumulando ... quando eu vou fechar a nota eu tenho que olhar só o número ... não olho o nome pra não saber quem é ... eu tenho que fazer assim ... mas vai acumulando umas magoazinhas e depois pas- sa (Marina, profa. da 5ª série).

Considera-se que não é inadequado o fato de alunos e alunas apresentarem comportamentos, reações e atitudes di- ferentes. O problema está em querer que todos os meninos e todas as meninas apresentem o mesmo comportamento diante de uma situação, ou seja, que haja a padronização de comportamento para estudantes de um determinado sexo, e que preferencialmente este comportamento se aproxime do que se espera de cada grupo. Não há nada de errado em um

menino que seja organizado, calmo e caprichoso, tampouco em uma menina que seja ativa, questionadora e desorgani- zada. No espaço escolar encontramos uma multiplicidade de comportamentos e formas de pensar e isso é produtivo e en- riquecedor. Existe equívoco ainda ao valorizar mais as carac- terísticas que se espera de um sexo do que as que se almeja encontrar em outro. Usualmente se valoriza mais as caracte- rísticas que se espera encontrar nos meninos e se critica me- ninas que as apresente, como se isso fosse um defeito.

As falas da professora Marina e do professor Carlos evi- denciam a diferença de percepção dos/as professores/as so- bre ensinar meninas e meninos.

Então ... eh... eu acho que com os meninos uma dificuldade que tem é eles ficarem sempre ultrapassando os limites não de aprendizagem mas os limites de comportamento ... e daí eu tenho que estar sem- pre levando eles muito na... não posso dar muita liberdade pra eles sabe... por que eles ultrapassam os limites e as meninas respeitam mais (Marina, profa. da 5ª série).

Eu vejo que o empenho dos meninos... é melhor que o empenho das meninas. Elas são mais dedicadas... elas são mais dedicadas ... pela dedicação é preferível dar aulas pra meninas... pela dedicação que elas tem... pelo esforço... eles não são esforçados mas o cognitivo deles é me- lhor desenvolvido do que o das meninas (Carlos, prof. da 7ª série). A: Você percebe diferença na forma com que meninos e meninas se

relacionam com a Matemática? B: Sim... sim.

A: Que tipo de diferença?

B: Eu vejo que até na 5ª e na 6ª as meninas se dão melhor do que os meninos ... e a partir da 7ª série inverte... eu acho que é o seguinte... não é uma questão de ter mais ou menos capacidade ... mas pelo fato

delas terem medo de errar... quando elas percebem que elas começam a se perder um pouco no conteúdo ... por medo de errar elas travam... e ao invés de solucionar uma ou duas dúvidas... isso vira uma coisa bem complicada pra elas... então eu noto nesse sentido assim... pelo perfeccionismo delas eu acho Lindamir... não há diferença cognitiva não (Rafael, prof. da 8ª série).

Vê-se que o professor Rafael percebia as meninas como perfeccionistas e isto geraria nelas o medo de errar. Na con- cepção deste professor, isto fazia com que elas não se expu- sessem e uma pequena dúvida fosse se acumulando e provo- casse o travamento das meninas. Rafael diverge de Carlos e não vê diferença no cognitivo entre meninos e meninas.

A fala do professor Carlos converge para o argumento de que as meninas são menos aptas para o aprendizado de mate- mática, entretanto, no caso da 7ª série, da qual ele era professor, as meninas obtinham melhor resultado e se mostravam mais adaptadas ao conteúdo da disciplina. Uma possível justificativa para este pensar do professor é que ele está inserido em uma so- ciedade que considera as meninas e mulheres como menos ca- pazes no campo das exatas e esse conceito estaria enraizado na forma de ele perceber meninos e meninas no cotidiano escolar.

Esta percepção se reflete no meio acadêmico quando se argumenta que as mulheres não são capazes de fazer ciência. Este argumento é contestado por Lima e Souza (2011, p. 26) que afirma que “somos dotadas de todas as habilidades necessárias ao exercício da investigação científica. Seguir nesta luta consti- tui, verdadeiramente, o nosso maior desafio”. De forma similar pode-se afirmar que as meninas são dotadas de capacidade de aprender e se desenvolver na matemática da mesma forma que os meninos, desde que sejam oferecidas a elas oportunidades e incentivos semelhantes aos que são proporcionados a eles.

O professor Rafael, ao falar sobre seus/suas alunos/as, classificou Eliane como uma aluna exemplo de dedicação e inteligência e ressaltou o desempenho dela naquele ano. Sem dúvida, Eliane merecia todos os elogios feitos pelo professor. Ela era participativa, questionadora, assertiva, contribuía de forma intensa para o bom andamento das aulas. A fisionomia do professor Rafael, ao falar de Eliane, revelou a satisfação de ter uma aluna assim. Isso ficou evidente em sua expressão, seus olhos brilhavam. O mesmo professor demonstrou decepção com Pedro Almeida, que obteve um desempenho pior que sua irmã no ano anterior, indicando sua expectativa de que ele fos- se melhor ou igual a sua irmã, fato que não ocorreu. Rafael se- quer tocou no nome de Pedro, aluno que obteve a melhor mé- dia da turma e que, segundo o próprio professor, não era bem aceito pelos colegas, pois pensavam que ele era gay. Pedro era um aluno participativo, questionador e interessado pelas aulas. Mantinha uma boa relação com o professor que fazia brinca- deiras com ele e Pedro respondia no mesmo tom, porém, não mereceu elogios do professor. Por que o professor silenciou com relação a ele? Não se encontrou respostas a esta questão.

B: Eu gosto de ensinar... quem tem vontade de aprender né ... inde- pendente de ser menino ou menina...por exemplo eu sentia um prazer enorme em observar assim quando eu passava exercício ... ou quando eu tava explicando... a fixação que a Eliane tinha no quadro... dá pra ver... parece que a gente via o cérebro dela estabelecendo relações. B: Quando uma menina se destaca em Matemática ...ela fica bem

pertinho da perfeição ... porque ela junta a facilidade mais a dedica- ção ... entendeu... e o menino de uma forma geral... ele fica só na faci- lidade ... esse ano eu tive um belo exemplo do Pedro Almeida né... que era um menino assim que... nossa eu apostava um monte nele porque

eu fui professor da irmã dele o ano passado e a irmã dele era EXCE- LENTE ... e ele também é excelente mas ele oscilou muito em nota ... porque não houve dedicação ... já a Eliane lá que ela tinha facilidade e dedicação ...imagina ela foi com duas notas dez no boletim comigo ... no terceiro e no quarto de novo (Rafael, prof. da 8ª série).

Percebe-se que a fala dos/as professores/as está impreg- nada de estereótipos do que é ser menino e menina. Eles/as esperam e muitas vezes percebem as meninas como mais or- ganizadas, caprichosas, dedicadas e tímidas, porém não per- cebem de que forma tais características interferem na apren- dizagem das mesmas. Não há questionamento por parte de professores/as sobre tais comportamentos. Eles são vistos como normais e desejados.

Embora tenhamos encontrado situações como as cita- das anteriormente, as relações de gênero eram silenciadas, não percebidas por professores/as e estudantes. O objeto de pesquisa se apresentava a eles/as como algo novo e inusita- do. Louro (2001) argumenta que tão importante quanto es- cutar o que é dito é perceber o que é silenciado. Neste caso, tanto as meninas, quanto as relações de gênero eram silen- ciadas, caladas, invisibilizadas. Ficavam no campo do não dito. Por que há este silenciamento? Esta é uma pergunta importante a ser feita quando se depara com uma situação destas. Nesta pesquisa pode-se perceber que os/as profis- sionais não percebiam as relações de gênero como fator que influenciava no processo ensino/aprendizagem. Uma das possíveis causas para tal é a falta de cursos de formação de professores/as que abordem a temática de gênero, visto que é raro encontrar cursos de licenciatura que tenham este en- foque. No caso dos/as professores/as que participaram des-

ta pesquisa, nenhum/a havia participado de curso de forma- ção sobre a temática.

Porém, o silenciamento das meninas era um compo- nente que influenciava no desempenho delas. Elas se ca- lavam diante das dúvidas e esse calar poderia resultar em dificuldade de aprendizagem e se refletia em baixo rendi- mento. Fato que parecia evidente na fala do professor Ra- fael ao justificar o motivo para queda de rendimento das meninas. Entretanto, os meninos que, segundo o profes- sor Carlos, tinham maior capacidade de aprendizagem em Matemática também apresentavam rendimento abaixo do desejável. Por que isso ocorria? Entender os motivos que levam ao silenciamento é fundamental para as discussões de gênero e para a melhora do processo de ensino/apren- dizagem, especialmente nas aulas de matemática. Promo- ver um ambiente no qual todos/as se sintam acolhidos/as, respeitados/as e estimulados/as pode resultar na melhoria da aprendizagem e se refletir no aumento das notas dos/as estudantes.