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A EDUCAÇÃO E O EMPODERAMENTO

Como já citado, Paulo Freire, um educador brasileiro re- verenciado mundialmente, foi um dos primeiros pensadores a tratar da ideia de empoderar por meio da educação. Seu lega- do e suas obras tratam de fundamentos e propostas de educa- ção que, numa visão progressista, vão oferecer possibilidades para que educadores e educandos tomem consciência de suas condições concretas e da necessidade de se tornarem ativos na construção de suas histórias individuais e coletivas. Para Freire, a educação é vista como “prática de liberdade” (FREIRE, 1979)7.

Coelho e De Mari (2013), num estudo sobre a educação de jovens e adultos a partir de Paulo Freire, levantam uma sé- rie de relações entre o pensamento freireano e a prática pe- dagógica que podem ser pensadas em todas as modalidades e níveis de ensino. Entre essas relações estão a forma de en- tender a educação como um processo vivo e as possibilidades que esse processo oferece.

7 Obra publicada em 1967 – Educação como prática da liberdade – em que Paulo Freire trata de uma metodologia de alfabetização de trabalhadores e trabalhadoras desenvolvida por ele na década de 1960, com uma fundamentação teórica e prática voltada à superação da condição de opressão e submissão a que os alunos e alunas da educação básica de adultos eram submetidos. Os fundamentos de liberdade, autonomia e educação para a transformação da sociedade contidos nessa obra continuaram em todo o legado de Paulo Freire para a educação e serviram de fonte para a construção de práticas em outros países também (LUTTRELL et al., 2009).

Para Coelho e De Mari (2013), a aprendizagem (segun- do Paulo Freire) leva a uma modificação tão significativa que carrega consigo o germe da transformação, uma necessidade de intervir e modificar o mundo e, no caso de uma educação libertadora, a noção de que é possível interferir e modificar a realidade. Segundo os autores:

A educação freireana, em essência, visa a libertar e fa- vorecer a abertura de novos horizontes, no forjar de ho- mens e mulheres sujeitos de sua própria história, o que os capacitariam a serem os construtores de seus próprios caminhos e gestores de suas vidas. A compreensão frei- reana é a do fortalecimento de sujeitos não sujeitados. Homens e mulheres livres de relações servis, com uma vocação ontológica para serem mais, no sentido de uma constante superação de limites pessoais e coletivos, para um aprimoramento do sujeito e da sociedade (COELHO; DE MARI, 2013, p. 42).

Mais do que simplesmente idealista ou utópico, Paulo Freire concentrou seus estudos e publicações em esperan- ça, politização de todos os envolvidos no processo escolar ou educacional e desvelamento da realidade posta, a chamada reflexão político-pedagógica. A tônica de seu legado não está em construir uma outra sociedade, mas instrumentalizar as pessoas para que vejam a si próprias como agentes de suas histórias, tomem consciência de suas realidades e possibili- dades e entendam que podem contribuir para transformar a sociedade (FREIRE, 2001)8. Segundo Gadotti (2007, p. 66, gri-

fos do autor):

8 Segundo Aranha (2006), esta obra de Paulo Freire é a mais marcadamente idea- lista, atravessada por sua formação católica inclinada aos princípios da Teologia da Libertação.

Paulo Freire sonhava com uma nova sociedade, um mun- do onde todos coubessem. Não um mundo feito apenas para alguns. A educação pode dar um passo na direção deste outro mundo possível se ensinar as pessoas com um novo paradigma do conhecimento, com uma visão do mundo onde todas as formas de conhecimento te- nham lugar, se dotar os seres humanos de generosidade epistemológica, um pluralismo de ideias e concepção

que se constitui na grande riqueza de saberes e conheci- mentos da humanidade.

Ao relacionar educação com empoderamento, é perti- nente localizar algumas bases do campo da pedagogia e da história da educação em que as premissas se relacionam. Com base nas ideias de empoderamento em que os objetivos transitam no campo da democratização do saber, no rompi- mento das fronteiras entre os que estão em condições privile- giadas e aqueles que estão à margem dos processos de cons- cientização. Na crença no poder de transformação da própria condição, desde que consciente que essa possibilidade existe e que a educação e a escola são fundamentais neste processo, a educação que está sendo considerada tem seu aporte teóri- co na teoria progressista.

Tendo como precursores desta teoria Makarenko, Pistrak, Gramsci, Snyders, Charlot, Giroux, Manacorda, e outros, as ideias destes pensadores, apesar das diversas origens e contextos se conectam no que diz respeito à não neutralidade da prática pedagógica. Ao ver a ação do professor como uma ação política, esses teóricos marcaram o início de uma nova visão sobre o papel da escola, suas contradições e a necessidade de assumir um compromisso político com aqueles a que se destina. Ao repensar a escola, essa teoria passou a considerar os conteúdos como a grande força do processo pedagógico,

diferentemente das correntes que a antecederam, a teoria progressista vê os conteúdos como saberes importantes que só adquirem sentido se vinculados à realidade. E ainda, a teoria progressista buscou a “superação da clássica dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual”, considerando as técnicas como parte do processo, mas buscando contextualizá- las social e historicamente (ARANHA, 2006, p. 275).

Tanto a teoria crítica9 nascida a partir da escola de

Frankfurt (representada primeiramente por Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin e Eric Fromm), quanto as teorias crítico-reprodutivistas10

(representadas por Althusser, Establet, Bourdieu e Passeron) abriram os caminhos teóricos para que a escola e a educação passassem a ser analisadas sob um ponto de vista crítico. Os processos de ensino-aprendizagem, a estrutura da escola, os objetivos da educação, as relações entre a educação, a escola e a sociedade, o papel do professor, a função social da escola, foram seguidamente (e ainda são) questionados, pensados e repensados a partir dessas contribuições teóricas.

9 Segundo Rusconi apud Arantes (1983) a teoria crítica – como costuma ser cha- mado o conjunto dos trabalhos da Escola de Frankfurt – é uma expressão da crise teórica e política do século XX, refletindo sobre seus problemas com uma radicalidade sem paralelo. Por isso os trabalhos de seus pensadores exerceram grande influência, direta em alguns casos, indireta noutros, sobre os movimen- tos estudantis, sobretudo na Alemanha e nos Estados Unidos, nos fins da déca- da de 60. A base da Teoria Crítica não poderia se dissociar da cultura filosófica que os autores frankfurtianos reivindicam – Kant, Hegel e Marx são filósofos centrais para questionar o conceito de teoria e o de dialética, porque as insufici- ências da teoria revolucionária se transmitem à práxis histórica (MATOS, 1993). 10 Para esses teóricos, “a escola está de tal forma condicionada pela sociedade di- vidida que, em vez de democratizar, reproduz as diferenças sociais, perpetuan- do o status quo” (ARANHA, 2006, p. 273).

Ainda que as tais teorias crítico-reprodutivistas não suscitassem possibilidades de mudança, já que o potencial transformador da escola não era considerado, elas foram im- portantes para o entendimento do funcionamento da escola em uma sociedade de classes (ARANHA, 2006). Foi a partir desse entendimento que as teorias progressistas marcaram a importância e a relevância do papel do professor e do papel social da escola.

Com o fim da ditadura, a educação brasileira se encontra- va entre a tendência predominante da pedagogia tradicional, mas havia incorporado os princípios de uma pedagogia tec- nicista direcionada a formar a mão de obra especializada, tão necessária ao desenvolvimento do país, com uma reforma que envolveu todo o sistema educacional. Mesmo com princípios da pedagogia tecnicista, em que o professor era um facilitador e a ênfase maior estava nos métodos e técnicas empregadas no processo ensino-aprendizagem, a pedagogia tradicional man- teve-se firme, centrada na autoridade do professor e na pas- sividade do aluno – essa pedagogia sobrevive até os dias atu- ais. É preciso lembrar das prerrogativas de classe social como um fator importante na estruturação da educação brasileira, o ensino voltado às técnicas e profissões direcionado às classes populares, com término pensado até o segundo grau e o ensi- no tradicional, acadêmico, conteudista voltado aos filhos das classes abastadas e esperadas pelo ensino superior.

Nesse quadro foram ressurgindo com força as pedago- gias críticas que buscaram superar os limites das pedagogias que estavam dominando a educação brasileira e aumentando o fosso econômico e social que separava classes altas e po- pulares. Assim, num movimento que havia sido interrompi- do pela ditadura militar, educadores e teóricos da educação

foram construindo um corpo de teorias, cuja proposta era repensar a educação e direcionar os esforços por uma escola pública de qualidade, que oferecesse uma formação integral e possibilidades de ascensão econômica e social. Então, nos anos de 1980, surge a pedagogia crítico-social dos conteúdos, tendo como mentor José Carlos Libâneo que, referindo-se à pedagogia libertadora de Paulo Freire, elaborou uma crítica a esta em que:

enfatizava a função política e social da escola, do trabalho permanente com os conhecimentos sistematizados, de modo que possibilitasse às classes populares as condições intelectuais para se inserirem e participarem efetivamente das lutas sociais e defenderem seus interesses individuais e de classe (ORSO; TONIDANDEL, 2013, p. 147).

Nessa mesma corrente de pensamento, Demerval Savia- ni elaborou um aporte teórico voltado à construção de uma pedagogia voltada prioritariamente à escola pública e às clas- ses trabalhadoras, que denominou de pedagogia histórico- -crítica. Saviani (2008) distingue as teorias em educação entre teorias não-críticas (pedagogia tradicional, pedagogia nova e pedagogia tecnicista), as teorias crítico-reprodutivistas (teo- ria da escola como violência simbólica, teoria da escola en- quanto aparelho ideológico do Estado e teoria da escola dua- lista) e, finalmente, a teoria crítica da educação representada pela pedagogia histórico-crítica, que vem com uma perspec- tiva historicizadora baseada no materialismo histórico. Savia- ni (2008, p. 22) diz que:

A compreensão da natureza da educação enquanto um trabalho não-material, cujo produto não se separa do ato de produção, permite-nos situar a especificidade da

educação como referida aos conhecimentos, ideias, con- ceitos, valores, atitudes, hábitos, símbolos sob o aspecto de elementos necessários à formação da humanidade em cada indivíduo singular, na forma de uma segunda natureza, que se produz, deliberada e intencionalmente, através de relações pedagógicas historicamente determi- nadas que se travam entre os homens.

Essa pedagogia engloba a importância de situar o conhe- cimento histórico e socialmente, enfatiza a importância do acesso ao saber elaborado, historicamente acumulado para todos, resgata o papel do professor como agente do processo e responsável social e politicamente pela prática que desenvol- ve e trata do papel social da escola pública e seu compromisso político com aqueles que dela necessitam. Para Saviani (2008, p. 8), “a neutralidade é impossível porque não existe conheci- mento desinteressado”.

A menção dessa pedagogia se faz importante neste tra- balho porque a pedagogia histórico-crítica foi implantada no sistema educacional do Estado do Paraná nos anos de 1980 e vigora nos documentos oficiais até os dias atuais (BACZINSKI, 2014; ORSO; TONIDANDEL, 2013). Outra razão importan- te é que, pela forma com que foi elaborada, essa pedagogia representa um espaço privilegiado para pensar questões so- ciais, reelaborar saberes e conceitos e contrapor-se a mitos e condutas baseadas em preconceitos ou generalizações. Essa dinâmica relaciona-se diretamente com o propósito dos es- tudos de gênero e as premissas do curso de formação que este trabalho analisa. A ideia de trazer as teorias envolvidas nas questões de gênero sob os mais diversos pontos de vis- ta, o resgate das elaborações e lutas dos movimentos femi- nistas e de mulheres, os debates em torno das sexualidades,

com aporte teórico, científico e social, representam o próprio movimento proposto pela pedagogia histórico-crítica onde, apropriando-se do saber historicamente elaborado e acumu- lado, os educandos (neste caso, os professores e professoras) terão condições de compreender as suas realidades e agir so- bre elas com consciência de seu papel como cidadãos e, neste caso, como professores.