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A realidade de vulnerabilidades e desigualdades sociais, anteriormente apresentada, apesar de estar diretamente relacionada ao tipo de atuação do Estado, é, de modo inverso, associada enfaticamente aos próprios moradores das periferias enquanto responsáveis pela própria condição de precariedade, seja pela compreensão comum, seja pelo discurso das grandes mídias e meios de comunicação de massa, seja até pela produção do conhecimento científico. Ao mesmo tempo, esse conjunto de aspectos negativos é referido com um sentido de totalidade nos mais diferentes discursos, absolutizando-se por vezes pela sua repetição exaustiva e configurando-se, por fim, em uma perspectiva estereotipada generalizada, em detrimento de uma compreensão mais objetiva, que parta da experiência e de um conhecimento mais aprofundado, consistente e fundamentado acerca do dinamismo, da multiplicidade e das contradições que abrigam e organizam uma comunidade, a qual também envolveria o reconhecimento de outros elementos, como aspectos positivos dessa mesma comunidade. Não à toa, os principais bolsões de pobreza das cidades (periferias, morros e favelas) são referenciados, principalmente, pela chancela das vulnerabilidades, da criminalidade, da sua periculosidade, das chacinas, do extermínio, do tráfico de drogas, pela ameaça e pelo medo, enquanto que a alegria presente nas rodas de samba, no tambor de crioula, a ancestralidade africana viva nos terreiros e na capoeira de angola, o protagonismo social, político e cultural dos saraus e das organizações comunitárias, os músicos e poetas que lá residem, a orquestra sinfônica de Heliópolis, a história e a memória desses lugares, as intervenções artísticas itinerantes, a poesia de rua, as danças folclóricas, a discotecagem, o seu próprio repertório cultural e a sua própria voz ainda são menos evidenciadas, reconhecidas e ouvidas.

Entre festividades populares e o novo, como o funk, a discotecagem e a cultura hip hop, e entre as mais diversas formas de organizações culturais e sociais, como os saraus e coletivos culturais, há ações interventivas políticas e culturais, e projetos sociais atuantes nas periferias, cujas práticas colaborativas compõem um novo campo educacional e formativo cultural, que não o das escolas regulares e da educação formal, sendo essas ainda objeto de pouco debate nas grandes mídias e até mesmo na produção acadêmica científica atual, conforme constatado na pesquisa bibliográfica e por outros autores da área.

A partir da atividade de mapeamento territorial do extremo sul da cidade de São Paulo, pudemos nos aproximar e melhor conhecer o que existe nessas regiões urbanas, destacando-se a diversidade de organizações culturais comunitárias e instaladas nas áreas das periferias correspondentes, e, consequentemente, nos levou a contrapor e a evidenciar alguns elementos do preconceito e da segregação social, bem como a ampliar a compreensão sobre o que vem a ser os territórios periféricos. De acordo com Trotta (2016, p.89), esta fica comprometida pelas concepções atomizadas de “falta”, “carência” e “vulnerabilidade”, quando, na verdade:

Periferia é uma metáfora geográfica que se refere a todo um conjunto de práticas e valores que circundam o universo popular. Incorpora tanto os habitantes de áreas marginalizadas das grandes cidades quanto suas práticas de consumo, seus produtos, gostos e estilos de vida. Fortemente atravessada por uma interpretação do popular e do periférico como construções operadas a partir da “falta” [...]. (TROTTA, 2016, p. 89)

Para melhor compreender alguns dos elementos estruturantes das relações sociais que levam a produção de concepções costumeiramente negativas e monadológicas em relação às comunidades das periferias e às pessoas que lá vivem recorremos, em um primeiro momento, a algumas das contribuições teóricas de Axel Honneth (2003, 2013), por meio das quais, foi possível fazer uma leitura reflexiva sobre alguns aspectos do processo de socialização e das construções grupais e, inerente a isso, da (pseudo)individuação. Deste modo, essa primeira análise acerca da realidade social das periferias dentro da lógica social de divisão de classes, como também sobre os discursos dominantes e os tipos de relações sociais concernentes, foi sustentada principalmente pelas noções conceituais de reconhecimento recíproco, luta por reconhecimento e direito. Também, buscamos elaborar uma leitura crítica a partir da compreensão conceitual adorniana quanto às formas vigentes da organização social e sua lei objetiva de desenvolvimento.

As comuns perspectivas sociais estereotipadas acerca das periferias estruturam-se por estigmas que se têm sobre essas comunidades: pela estética da pobreza, pela estética da fome, pela estética da violência urbana, pela estética da falta de higiene, pela estética dos barracões e das “barraqueiras” (referência às mulheres das periferias). As quais se reproduzem pelo modo como as periferias são retratadas no discurso das mídias dominantes, nos filmes, nos programas televisivos, nas novelas e, por fim, no senso comum e até mesmo no discurso de muitos

representantes políticos brasileiros e nos sentidos que orientam determinados tipos de intervenção policial, missionária religiosa, e também de projetos sociais nessas áreas. Perspectivas tais que nos permitem pressupor o atenuamento de uma visão sócio histórica sobre a organização da sociedade, bem como o tipo de concepções componentes de sua eticidade e dos valores sociais hierárquicos imanentes que estão envolvidos e que produzem uma realidade de desigualdades sociais, claramente manifesta pela marginalização social das periferias: geográfica, política, cultural, social e humana. Revelando a fragilidade das relações entre pessoas, da garantia dos direitos básicos às populações marginalizadas e da experiência coletiva no que diz respeito ao cumprimento consistente (solidário, afetivo, institucional e jurídico) do princípio de igualdade universal, não à toa que “[...] na estranheza do povo em relação à democracia se reflete a alienação da sociedade em relação a si mesma” (ADORNO, 2006, p.36).

A estereotipia e a estigmatização social das periferias, e também a não garantia dos direitos básicos dessas comunidades, consistem em algumas das principais problemáticas sociais reclamadas pela parcela da população mais vitimada e por pessoas e organizações solidárias às suas causas. Questões políticas e sociais que são tidas como uma das principais razões precedentes pelas quais foram formados os corpos dos coletivos e movimentos culturais, bem como de muitos dos projetos sociais das periferias da zona sul da cidade de São Paulo. O direito pela sua existência, transformação social, cidadania e inclusão social são os eixos orientadores e os objetivos mais comuns desses movimentos e organizações sociais (GOHN, 2009, 2015; PERES et al., 2018; TOMMASI, 2013). Tal como se pôde observar na descrição dos grupos elencados no mapeamento territorial realizado, todos eles vincularam seus repertórios culturais e estéticos à linha de frente da luta política de enfrentamento e resistência contra a realidade de estigmatização das periferias e de desigualdades sociais sofridas em seus territórios como forma alternativa de superar o silenciamento e o ensurdecimento, socialmente determinados, de suas vozes, de suas estéticas, de suas histórias, memórias e realidades cotidianas: por uma nova ideia de estética periférica. Buscam, desta forma, passar “[...] das páginas policiais pras páginas culturais” (VAZ, COOPERIFA, 2012) das seções dos jornais e, também, em contiguidade, resgatar a autoestima de seus conterrâneos. Movimentos como esses estão aos poucos conquistando visibilidade e estão “ultrapassando as fronteiras geográficas e simbólicas” da cidade (TOMMASI, 2013, p.28). Para Takeuti (2010), a arte e a cultura popular periférica manifestam

um intento político, visando à ressignificação social quanto às perspectivas dominantes sobre as margens sociais, segundo este autor:

A entrada ao novo milênio começou mostrando uma movimentação inédita em alguns territórios urbanos brasileiros: se, antes, a “periferia” era visível apenas como o lugar da infâmia (violências diversas, crimes, tráfico de drogas...), ela passou a expor também um cenário em que se disseminam inventividades artísticos literários-culturais-esportivos com produções que chegam a escoar para fora dela. Dir-se-ia que se trata de uma expressão de múltiplas singularidades em conexão, realizando movimentos em proliferação que efetivam ultrapassagens de fronteiras. A mise-en-scène de uma arte popular parece produzir desdobramentos peculiares na subjetividade de seus habitantes, os quais passam a ter outras posturas diante das infindáveis dificuldades e dilemas produzidos pela insistente condição de pobreza e miséria (TAKEUTI, 2010, p.14).

Somados a isso, os movimentos e projetos sociais comunitários configuram-se também por um caráter educacional e formativo, o qual, conjuntamente com práticas pedagógicas e atividades político culturais, resulta de uma rede colaborativa e específica de conhecimentos e saberes populares e territoriais. Conforme Gohn (2009), articulam-se como:

[...] novos campos de produção de conhecimento e áreas de saber que estavam invisíveis ou não tratados como conhecimento ou saber educativo - recobertos de práticas pedagógicas e processos educativos. Outras dimensões da realidade social, igualmente produtoras de saber, vieram à tona, tais como as que advêm do mundo das artes, do “mundo feminino” das mulheres, do corpo das pessoas, das religiões e seitas, da cultura popular, das aprendizagens do cotidiano, via a educação não-formal. E estas outras racionalidades estão predominantemente presentes nos trabalhos desenvolvidos no campo da educação não-formal, junto a centenas ou milhares de pessoas que participam de projetos sociais comunitários (GOHN, 2009, p.30).

De modo geral, pouco ainda se conhece a “perspectiva de dentro” (PERIFERIA EM MOVIMENTO, 2009), das pessoas que residem nas periferias, ou ainda, a história, a memória e o repertório cultural são pouco reconhecidos e respeitados em sua complexidade, especificidades e em suas reais potencialidades educativas para a transformação social, por mais que, atualmente, esse quadro venha se modificando e os movimentos culturais das periferias, assim como os seus artistas vêm conquistando e ganhando maior visibilidade que outrora (TOMMASI, 2013). Quanto ao caráter educativo dos projetos sociais, dos movimentos e coletivos culturais, tal como afirma Gohn (2009, p.31), “[...] é uma área que o senso comum e a mídia usualmente não veem e não

tratam como educação porque não são processos escolarizáveis”. Há, deste modo, uma relação entremeada por uma perspectiva parcial e atomizada, assim sendo, generalizada e estilizada, que, de acordo com Axel Honneth (2013):

Por mais diferentes que pudessem ser essas construções de grupo típicas de cada época, elas se assemelham muito na tendência formal de sempre selecionar um dos possíveis atributos de agrupamentos sociais e estilizá-los como a característica que tudo define. Nas concepções negativas, os traços grupais regressivos, ameaçadores do Eu, foram generalizados a tal ponto que, da multiplicidade de suas manifestações sociais, restou tão somente a tediosa massa, enquanto nas concepções positivas, os elementos civilizatórios, fortalecedores do Eu, foram idealizados a tal ponto que, imperceptivelmente, os riscos da perda de autonomia tiveram que passar despercebidos. Na forma dessas perspectivas unilaterais, tais teorias frequentemente influenciaram a consciência cotidiana comum, ao contribuírem para a formação de mitologias sociais, que logo depois estariam refletidas na literatura ou nos meios de comunicação (HONNETH, 2013, p.59).

São recorrentes as manchetes dos jornais reportarem, por exemplo, a violência nos morros, a guerra do tráfico, as chacinas, a vulnerabilidade social, as carências materiais, a pobreza, etc., nessas áreas, assimilando-as em associações diretas aos próprios moradores, lembrando aquilo pontuado já há décadas: “[...] a posição do indivíduo torna-se assim precária. No liberalismo, o pobre era tido como preguiçoso, hoje ele é automaticamente suspeito.” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.124). Sendo projetados costumeiros julgamentos monadológicos, referindo-se a eles, em uma assimilação direta, como “bandidos”, “criminosos”, “ladrões”, “traficantes”, “sem cultura” ou “sem acesso à informação”. Situação generalizada que vem a ser uma expressão evidente da manutenção do medo e da ameaça para além da sua necessidade real de autoconservação, mas como comportamentos economicamente racionais e psíquicos da dominação social (CROCHIK, 2001).

As generalizações populares, midiáticas e até científicas são comportamentos que têm “[...] na sua origem e manutenção essa ameaça e o consequente medo” (CROCHIK, 2001, p.21) em detrimento da própria relação entre indivíduos, uma vez que o desconhecimento, a estereotipia e o preconceito contra essas populações expõem essa não relação, bem com a consciência alienada quanto à complexidade sociológica e psicológica que as forma. O que contribui, em contrapartida com a banalização das outras histórias por detrás da história oficialmente imposta pela razão dominante e ideológica, bem como para manter a estrutura dessa

realidade de despotencialização humana, exclusão e desigualdade social. Isso impede o conhecimento objetivo, e reforça, por fim, a ideologia da dominação, assim como retroalimenta discursos e consciências alienadas, que concebem o todo dinâmico, histórico e social dessas comunidades tão somente por “[...] um aspecto do fenômeno social” (HONNETH, 2013, p.60).

O gérmen produtor dos estereótipos, preconceitos e estigmas sociais está presente nos elementos do antissemitismo, na perspicácia da indústria cultural e na semicultura, e, consequentemente, na pseudoindividuação: o desenvolvimento de um eu enfraquecido, a regressão do esclarecimento e o medo como meios para a manutenção da dominação, o que é incompatível com a relação humana, no sentido de haver intersubjetividade, em seu lugar, a relação entre indivíduos fechados em uma consciência reificada, determinada por uma lógica exterior a eles. Segundo Adorno:

Pesquisas feitas nos Estados Unidos revelaram que a estrutura da personalidade não se relaciona tanto assim com critérios econômicos-políticos. Ela seria definida muito mais por traços como pensar conforme dimensões de poder - impotência, paralisia, e incapacidade de reagir, comportamento convencional, conformismo, ausência de auto-reflexão, enfim, ausência de aptidão à experiência. Personalidades com tendências autoritárias identificam-se ao poder enquanto tal, independente de seu conteúdo. No fundo dispõem só de um eu fraco, necessitando, para se compensarem, da identificação com grandes coletivos e da cobertura proporcionada pelos mesmos (ADORNO, 2006, p.37).

O processo formativo para a emancipação é subtraído pelos mecanismos de manipulação das massas, pela educação domesticada e pela identificação, ordenadas pelas soberania do todo sobre o particular, restritas a uma malha de socialização adaptativa, marcada por renúncias individuais, com fins ilusórios de uma autoconservação quando na verdade a real finalidade extrapola a esta, passa a ser a própria dominação, não necessária à sobrevivência humana mas para a produção capitalista (ADORNO; HORKHEIMER, 2006; CROCHIK, 2001). Em decorrência disso, a racionalidade operante, a racionalidade técnica e a cultura administrada, e seus mecanismos obnubilam tudo aquilo que a ameaça, ou seja, a própria a autodeterminação, a individuação e o pensamento esclarecido, bem como de tudo aquilo que esses processos de formação dependem: liberdade, autonomia, tempo, espontaneidade, relação intersubjetiva e experiências. O que leva, consequentemente, à formação de uma socialização na qual “As relações entre os indivíduos não são relações entre sujeitos - sujeitos de sua consciência, sujeitos

de sua ação - e, sim, entre mônadas” (CROCHIK, 2001, p.21). Tal impessoalidade, expressão da falência da experiência e do pensamento, acaba por manter a opinião pública afastada do objeto, sua relação é meramente projetiva, na qual tende a haver o deslocamento dos imperativos sociais vigentes e seus respectivos efeitos para a ordem individual, como próprias da “natureza” humana, que, para Adorno e Horkheimer (1973), refere-se à teoria das mônadas, que:

[...] oferece um modelo conceptual para a visão individualista do homem concreto na sociedade burguesa: ‘que uma substância particular não atua sobre uma outra e ainda menos a sofre, se considerarmos que tudo o que acontece a cada uma delas é tão-só a consequência da sua idéia ou da sua noção completa, pois essa idéia já encerra todos os predicados ou eventos e expressa todo o universo’. ‘As mônadas não têm janelas pelas quais possam entrar ou sair alguma coisa’ e as modificações que nelas ocorrem não têm causas externas mas derivam, outrossim, de um ‘princípio interno’. Por último, cada mônada é diferente das outras todas. A sociedade será, pois, a soma de indivíduos singulares [...]. (ADORNO; HORKHEIMER, 1973, p. 46, 47)

A tendência característica da sociedade do capital, sociedade de classes, quanto à perspectiva unilateral, ou, à luz da compreensão conceitual frankfurtiana, da perspectiva monadológica, é determinada pela racionalidade objetiva e estratégica da produção econômica, cuja lógica é própria dos negócios, e cujos interesses privados se confundem e se sobrepõem aos interesses e sentidos éticos e humanos de uma coletividade autônoma, tornando-os heterônimos aos próprios sujeitos (ADORNO, 2006; ADORNO; HORKHEIMER, 2006):

Que importa do nauta o berço Donde é filho, qual seu lar? Ama a cadência do verso Que lhe ensina o velho mar! Cantai! que a morte é divina! (ALVES, 2008, p.16)

Para a manutenção da ordem dominante, o princípio de realidade é investido de uma irracionalidade racionalizada, por meio da qual elementos do antissemitismo perduram e justificam-se. Assim como no regime nazista, a violência e o horror assolaram apenas alguns grupos bem definidos e evidenciados pela campanha da destruição enquanto muitos outros viveram das benesses da sua alienação partidária, tal como indicado por Adorno:

Para um número incontável de pessoas, a frieza do seu estado de alienação parecia eliminada pelo calor do estar em comunidade, por mais manipulada e imposta que fosse esta situação; a comunidade popular dos não-iguais e dos não- livres, como mentira que era, também era simultaneamente a realização de um sonho burguês antigo, embora desde sempre perverso. (ADORNO, 2006, p.38)

Longe de ser superada, na verdade, ainda somos uma civilização esclarecida para a barbárie, cujo “[...] ‘irracionalismo’ é derivado da essência da própria razão dominante e do mundo correspondente a sua imagem” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.15): o preconceito, o estigma, a opressão, a discriminação e a exclusão social. A periferia é uma das expressões atuais mais evidentes disso, herdeira dos navios negreiros, do tráfico de pessoas negras, do mourão, da casa grande e da senzala:

Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus?! (ALVES, 2008, p.23)

Não à toa, é nas bordas sociais, nas grandes periferias, onde se contabiliza os maiores índices estatísticos alvos da violência policial, de população encarcerada, de homicídios, do genocídio negro, de pessoas com empregos subalternos, de moradias irregulares, de esgotos à céu aberto, da quase inexistência de políticas e equipamentos públicos, e para onde pouco se voltam a comoção geral, a empatia e a solidariedade humana. Na periferia acordam mais cedo para servir o café nas padarias do Jardins, de Pinheiros e de Moema. Lavam seus automóveis, limpam suas vitrines, constroem seus edifícios de luxo, cuidam de suas crianças. Tornam-se somente braços e pernas, mãos inchadas, engrenagens da maquinaria, rostos anônimos, pequenos borrões substituíveis. Homens e mulheres que todos os dias descem o morro com suas histórias e viram suco (ANDRADE, 1981), esmagados diariamente, em uma vida-morte-sina, pela hostilidade social, que, como no versinho do personagem-poeta popular Deraldo, “[...] enquanto a fortuna dorme, a desgraça não descansa” (ANDRADE, 1981). Paradoxalmente, sobrevive a imagem contrária, de que “os trabalhadores, que são na verdade aqueles que proveem a alimentação dos demais, são alimentados, como quer a ilusão ideológica, pelos chefes econômicos, que são na verdade os alimentados” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.124).

O silenciamento é previsto, os detalhes da desgraça e a ginga da resistência nas e das periferias são amordaçados pela censura jornalística, pelo estereótipo e pelo descaso social. O estreitamento das perspectivas gerais acerca de suas condições e repertórios é artifício publicitário para salvaguardar o mecanismo operante e inflexível da oferta e da procura e de tudo aquilo que, para isso, ele venha a exigir e a submeter. Isso só é possível em uma sociedade de classes, massificada, não-emancipada, ou seja, somente pela divisão entre dominantes e dominados, pela condição da alienação cultural, papel atribuído às forças produtoras de sentido, de racionalidade, pela ação da indústria cultural. Sob a aparente promessa liberal, faz-se imperar a determinação social à custa da própria vida humana, sobretudo, a dos dominados, que como os próprios dominantes se tornam “livres de não pensar” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006). A autonomia é destituída de seu próprio direito para, assim, garantir a então frágil existência de pessoas não-emancipadas, enquanto categorias sociais, falsos indivíduos.

Isso tudo de modo tão perspicaz e faceiro, dominador e bárbaro, que “sob o monopólio privado da cultura a tirania deixa o corpo livre e vai direto à alma” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.110), com exceção que nas bordas sociais os corpos continuam impedidos, esgarçados e rasgados, com sangue retinto, pisado e esquecido pelas páginas dos grandes jornais. E tal como é introduzida no prefácio do livro Educação e Emancipação, de Adorno (2006), “a indústria cultural obscurece por razões objetivas, aparecendo como uma função pública da apropriação privada do trabalho social. Na continuidade de seu próprio desenvolvimento, o esclarecimento se inverte em obscurantismo e ocultamento” (MAAR, 2006, p.21, 22).

A ideia de indivíduo que se forma e se constitui em si mesmo, fechado em sua “substância particular”, evidencia essa irracionalidade objetiva e a sua perversidade, impede a consciência, o reconhecimento e a compreensão de que a formação subjetiva, bem como qualquer práxis humana, é também a expressão das relações socioculturais de seu tempo. Como consequência, de acordo com Adorno (2004, p.50), “La separación de los actos sociales en los que se reproduce la