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mas foi em vão… minha voz se fez ouvir lá no porão…

(Luana Bayô - Voz negra)

Mediante as facetas da exclusão social, essa realidade de adversidade pode não só gerar um possível conformismo a uma vida desrespeitada, de olhos ofuscados, como resposta à sua impotência; pode também incitar a subordinação voluntária ao ajustamento custoso da própria vida, buscando responder, por meio do trabalho, do consumo e da própria alma, às demandas dos mecanismos sociais de controle para que, deste modo, ilusoriamente, corresponda à estima social, deixando-se levar pelo desejo introjetado do sucesso, de que, quem sabe um dia, como os protagonistas das novelas, sejam eles também bem-sucedidos pelo acaso da sorte (ADORNO; HORKHEIMER, 2006); pode haver ainda aqueles que se entorpecem diante da Quimera em uma “embriaguez narcótica, que expia com um sono parecido à morte a euforia na qual o eu está suspenso [...]” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.39). E outros que, com ego ainda tão mais frágil, rasgam-se por dentro, implodem e gritam a loucura da barbárie em seus próprios rangeres de dente. Em todas essas dimensões determinadas e conectadas pelos mesmos determinantes sociais, por conseguinte, ocorrem a dominação dos sentidos, o empobrecimento da experiência sensível e o abandono do pensamento. Enquanto são dominados pela grande maquinaria do poder econômico e, assim sendo, pela racionalidade do mundo administrado, assim como os navegantes companheiros de Ulisses, com seus ouvidos cobertos por cera e com seus braços incessantes a remar, buscam a autoconservação às custas da própria vida sensível, da renúncia de seus sonhos e da sua autonomia, uma vez que:

Quem quiser vencer a provação não deve dar ouvidos ao chamado sedutor do irrecuperável e só alcançará se conseguir não ouvi-lo. Disso a civilização sempre cuidou. Alertas e concentrados, os trabalhadores têm de olhar para frente e esquecer o que foi posto de lado. A tendência que impele à distração, eles têm de se encarniçar em sublimá-la num esforço suplementar. É assim que se tornam práticos (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.39).

Ou, então, como os lotófagos, amaldiçoados pelo sofrimento inescapável quanto à opressão e hostilidade social, há aqueles que se entregam ao esquecimento de si nas frestas de uma felicidade aparente pela “psicodelia” dos seus vícios “[...] a fim de suportar o insuportável” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.59), sendo, então, duplamente excluídos pela razão auto

conservadora que exige a renúncia voluntária da consciência do prazer. Todavia, há aqueles que mesmo curvados pelo peso da barbárie, não se deixam estar de acordo por completo, não se entregam totalmente à lábia do negociante de diversões, à submissão voluntária ou mesmo à reificação da consciência alienada. Nessa dimensão, por assim dizer, podemos reconhecer essa postura de enfrentamento político social como objetivo cerne da práxis dos projetos sociais, os quais parecem se agarrar a uma “[...] última idéia de resistência” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.119), não deixando-se desistir da possibilidade de uma subjetividade pulsante e da possibilidade da autonomia do pensamento, tendo na arte e na cultura a possibilidade política do reencontro entres esses dois domínios: aproximando-se pois da ideia de arte engajada (ADORNO, 1993), a arte enquanto uma função social.

As organizações sociais, de um modo geral, rebelam-se contra a dominação social e contra os mecanismos e artifícios da indústria cultural e que, por mais que essa rebelião seja “o resultado lógico do desamparo para o qual ela própria o educou” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.119), e mesmo havendo uma possível reprodução de mecanismos de ajustamento dentro dessas formas de organizações grupais, não se pode afirmar categoricamente a imobilidade total das massas em relação à “lei do grande número” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.120).

A luta por reconhecimento e as práticas socioeducativas que envolvem o ensino de diferentes modalidades artísticas em projetos sociais são prova de uma tentativa ativa de enfrentamento e de crítica social. Os objetivos que norteiam os projetos sociais e suas mais diversas variantes, comunitários ou instalados nos principais bolsões de pobreza (em determinadas zonas rurais e nas periferias das cidades grandes) se caracterizam sobretudo pelo seu caráter sociopolítico cultural e educacional, visando-se à transformação social, ao desenvolvimento da cidadania e à formação do indivíduo, as quais, dentro do contexto de tais organizações, e em tese, estão intimamente relacionadas com os repertórios populares e comunitários, bem como com as suas causas sociais (GOHN, 2015).

Por meio das diferentes modalidades estéticas, da arte, da cultura e, por sua vez, de práticas educativas e formativas, as diferentes formas de organizações socioculturais tendem a articular em suas práticas os conteúdos da história e da memória local, regional, dos personagens comuns, anônimos à história formal e lacunar. Tratando-se de um resgate da memória em resposta-resistência à destruição da própria memória e, consequentemente, “[...] do desaparecimento da consciência da continuidade histórica” (ADORNO, 2006, p.32). Síntese do

processo estrutural da pseudoformação e da semicultura como resultado operante da razão dominante e, consequentemente, do empobrecimento da experiência e do enfraquecimento social do indivíduo pelos mecanismos da indústria cultural. Contra estas forças, o resgate da memória histórica e da cultura popular se põe a frente em muitos dos projetos socioculturais educativos de modo a se fazer uma luta por reconhecimento (HONNETH, 2003) para que, por meio de práticas e intervenções de cunho formativo, se contribua para a formação de grupos e de indivíduos mais fortalecidos subjetivamente diante das forças hostis, coercitivas e opressoras do condicionamento e da adaptabilidade social, para que, assim, seja possível a transformação social no sentido de se construir uma eticidade coletiva para a concretude da democracia em seu sentido conceitual pleno e profundo: o da real possibilidade de existência e coexistência entre os processos de socialização e individuação; o reconhecimento mútuo; a humanização da consciência, a consciência sensível; a justiça social; a existência da concretude de uma relação possível entre razão e liberdade. Assim seja, por um princípio de realidade por meio do qual seja possível a emancipação do sujeito. No caso em questão do projeto participante da pesquisa empírica, mais especificamente, a educação, a arte e a cultura e, mais especificamente, a música e a educação musical, aparecem estreitamente vinculadas aos princípios básicos dos direitos humanos, da democracia e da formação de uma consciência sensível, bem como dos seus valores correlatos (respeito, coletividade, solidariedade, comprometimento, etc.) e objetivos estabelecidos (garantia de direitos básicos, educação de qualidade, formação de senso crítico e desenvolvimento de cidadania, por exemplo) de modo que, conforme a coordenadora pedagógica, seja possível “se emocionar, de a gente ter um caminho de fato que a gente possa se fazer presente mesmo, se fazer consciente” e que “[...] os alunos consigam se pontuar, se enxergar no mundo, de que eles possam ser autônomos de si e, principalmente, propagadores do que eles aprenderam aqui dentro...já têm alunos, inclusive, que atuam nos grêmios da escola, levando atividade musical, planejando atividades culturais [...]” (A., coordenadora pedagógica, entrevista 1, Anexo D).

Pelo tipo de propostas apresentadas, de modo geral, pelas organizações sociais, pelos seus objetivos, princípios e valores, essas reagem à passividade da alienação social, não se entregam ligeiras à moral e às recompensas inalcançáveis, prometidas em troca da própria alma, mas buscam responder à exclusão social não desmoronando-se ou conformando-se a essa, mas esforçam-se para resguardar a própria vitalidade sobrevivente, um puxadinho de alegria de viver e a possibilidade mínima de consciência crítica: pela solidariedade, pelo acolhimento, pela

enfrentamento coletivo, pelo resgate e pela valorização da sua história e memória – de seus heróis anônimos, de sua herança cultural e ancestral –, pela valorização das suas próprias narrativas, pelo desenvolvimento de suas capacidades cognitivas e sensíveis, pelo lirismo popular, etc.

O modo de enfrentamento das adversidades sociais pelas diversas organizações sociais – seja pela instância jurídica, pela garantia de determinados direitos, seja pela reconstrução da opinião pública, pelo resgate da memória ou pelo sentimento de pertencimento comunitário e pelo fortalecimento da autoestima –, leva-nos a reconhecer uma práxis estética, educativa e cultural marcada pela diretiva da resiliência enquanto proposta coletiva e/ou institucional de superação e de transformação de experiências negativas da comunidade local (PERES et al., 2018). Essa práxis é comum e característica dos projetos sociais, organizados com o intuito de ser soluções para problemáticas comuns da comunidade (GOHN, 2009, 2015), destacando-se, nesse sentido, a relação dos moradores e de idealizadores de projetos filantrópicos com a arte, cultura e esporte, enquanto “[...] diferentes estratégias de lidar com as adversidades cotidianas” (BEZERRA, 2009; TAKEUTI, 2010 apud PERES et al., 2018, p.62). Em contextos como os das periferias, a compreensão acerca da resiliência dialoga com aquilo que se entende, a partir de Honneth (2003, 2013), como luta por reconhecimento, visto que em ambos os trabalhos conceituais, evidenciaram-se, em seus conteúdos, as forças existentes de enfrentamento da população local e as de todos aqueles envolvidos e solidários às suas causas de luta contra as diferentes dimensões da dominação social. A resiliência é compreendida por alguns autores contemporâneos, a partir da adoção de concepções essencialistas, referindo-se:

[...] às condições de sujeitos ou coletivos que superam os efeitos das adversidades às quais são submetidos, podendo sair fortalecidos e transformados dessas experiências (Cabral & Cyrulnik, 2015; Ferreira, Silveira & Peixoto, 2013). Enquanto as periferias urbanas são muitas vezes naturalizadas em suas adversidades e determinadas pela forma como se conta sua história, a noção de resiliência desafia a inércia com a qual elas costumam ser compreendidas (Ferreira et al., 2013). Pelo olhar da resiliência, é possível focalizar as vivências de enfrentamento às incongruências dos espaços marginalizados urbanos (Bezerra, 2015; Takeuti, 2010) (PERES et al., 2018, p.62).

[...] algumas concepções essencialistas do termo, no presente estudo entende-se à resiliência como um processo, o qual inclui ser afetado por adversidades, enfrentando-as e transformando-as em potencialidades de crescimento (Cabral, 2012, 2015; Cyrulnik, 2001/2004, 2016; Ferreira et al, 2013). A resiliência representa não uma tentativa de apagar o que acontece ou aconteceu, mas uma

busca por caminhos que podem ser abertos a partir do que se vive (Bezerra, 2009, 2015; Cabral, 2015; Cyrulnik, 2016, 2015) (PERES et al., 2018, p.62).

Frente a este contexto territorial periférico e, mais especificamente, aos movimentos e coletivos culturais e artísticos ali atuantes, a luta por reconhecimento está para o processo de resiliência como o próprio campo para possíveis experiências de enfrentamento e transformação (individual e social). Para crianças e adolescentes desta comunidade, em pleno desenvolvimento, essa luta pode corroborar para a qualidade do seu próprio processo de socialização e da sua possível autodeterminação no que se refere, por exemplo, ao desenvolvimento do auto-respeito e da sua autoestima – viabilizados por meio da vivência e/ou experiências grupais de relacionamento, de respeito, de solidariedade, de apoio, de reconhecimento, de motivação, de garantia de direitos, etc. – em detrimento da continuidade de relações interpessoais monadológicas, das perspectivas unilaterais negativas e da ideia decorrente do fracasso, do contentamento e do conformismo diante da situação de desigualdade social.

Mesmo que a indústria cultural já tenha transformado a imagem de Dandara dos Palmares e da negra escrava Anastácia em valor agregado, a força representativa de rebeldia, resistência e de luta ainda não se ausentou dessas personagens da história brasileira, justamente pela preservação de suas histórias nesses terreiros comunitários por meio das diferentes narrativas artísticas e produções culturais. Diferentemente do entretenimento, os coletivos e os movimentos culturais, por exemplo, buscam convoca do espectador um envolvimento e um esforço intelectual para o reconhecimento e para a compreensão quanto a uma verdade a ser denunciada ou reapresentada, que, semelhante ao engagement, a relação estabelecida com a arte, enquanto função social, caracteriza-se por uma determinação estética com intento para a reflexão e para a crítica, “[...] mediatizada relativamente à realidade enquanto sua negação determinada” (ADORNO, 2011, p.123). Ou seja, pelos seus conteúdos de uma história não legitimada socialmente em confronto com a totalidade da história única, tais forças artísticas de enfrentamento não se entregam passivas à indústria da diversão ligeira, ou mesmo da distração por vezes forçosa; inspiram, desta forma, a continuidade da história da luta, dessa vez, por meio da arte, da cultura e da educação, por mais que seja reprimida ou censurada nos livros das escolas brasileiras, como o é a história de tantos outros combatentes além de Dandara e Anastácia: mulheres negras escravas e quilombolas, intelectuais negros, índios tupiniquins e tupinambás (como de outras tantas etnias), mulheres da vida, boêmios da noite, poetisas, “flores do mal”.

Essa força social pelos diferentes movimentos artísticos e da cultura popular ficou evidenciada, por exemplo, no ano de 2019 durante uma das principais manifestações culturais brasileiras, o carnaval, no qual em sua expressão festiva popular, pôde-se sobressaltar-se pelo arrojo de sua intenção para uma crítica social quanto ao desconhecimento programado da história frutacor brasileira através, especialmente, da escola de samba Estação Primeira de Mangueira que, ao recontar a história do Brasil em seu samba-enredo e em seu desfile por meio do resgate de outros heróis da gente esquecida, das veias abertas pela colonização, confrontou a história única, a dos dominantes:

Comemoramos 500 anos de Brasil sem refazermos as contas que apontam para os mais de 11.000 anos de ocupação amazônica, para os mais de 8.000 anos da cerâmica mais antiga do continente, ou ainda, sem olhar para a civilização marajoara datada do início da era Cristã. Somos brasileiros há cerca de 12.000 anos, mas insistimos em ter pouco mais de 500, crendo que o índio, derrotado em suas guerras, é o sinônimo de um país atrasado, refletindo o descaso com que é tratada a história e as questões indígenas do Brasil. Não fizeram de Cunhambembe – a liderança tupinambá responsável pela organização da resistência dos Tamoios – um monumento de bronze. Os índios Cariris que se organizaram em uma confederação foram chamados de bárbaros. Os nomes dos caboclos que lutaram no Dois de Julho foram esquecidos. Os Índios, no Brasil da narrativa histórica que é transmitida ainda hoje, deixaram como “legado” cinco ou seis lendas, a mandioca, o balanço da rede, o tal do “caju”, do “tatu” e a “peteca”. [...] O fato é que a atuação de “gente comum”, ou mesmo a incansável luta negra organizada em quilombos, em fugas, no esforço pessoal ou coletivo na compra de alforrias e em revoltas ou conspirações, já enfraqueciam o sistema escravocrata àquela altura. Entretanto, ensinar na escola o nome de “Chico da Matilde, jangadeiro, mulato pobre do Ceará (líder da greve que colocou fim ao embarque de escravos no estado nordestino, levando-o à abolição da escravatura quatro anos antes da princesa ganhar sua “fama” abolicionista) não serviria à manutenção da premissa de que as conquistas sociais resultam de concessões vindas "do alto" e não das lutas. A história de Chico da Matilde era inspiradora demais para o povo. Não à toa, seu nome não está nos livros (GRES ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA, 2019).

As forças populares e comunitárias, contíguas e herdeiras da história de luta da “gente comum”, fazem frente ao monopólio cultural, recontando a sua própria história através da cultura popular de modo a se resgatar a esperança e a coragem da história diante da fraqueza social do eu, da estrutura da personalidade autoritária, e, desta forma, da própria ideologia dominante (ADORNO, 2006), por mais que possuam suas limitações em relação à arte autônoma, por mais que haja pouco discernimento consciente quanto às dimensões estéticas envolvidas (a estética

como produção cultural que aparenta a dimensão estética como reflexão crítica), e por mais que sejam ínfimas diante da perspicácia da indústria cultural e por ela sejam também cooptadas, ou até estejam fadadas ao fracasso diante à perversidade do sistema. Não se dobram à ideia de um mero espetáculo cômico como eternos consumidores, onde “a diversão favorece a resignação, que nela quer se esquecer” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.117); na verdade, muitas das intervenções dos movimentos e dos coletivos culturais não buscam produzir humor, mas sim provocar o desconcerto do automatismo, o envolvimento dos olhos antes distraídos pelo riso falso – o Teatro do oprimido, método criado pelo dramaturgo, diretor e teórico Augusto Boal, é um importante exemplo disso, o da desmecanização do corpo servil por meio de uma construção conjunta (atores e espectadores) de uma crítica sensível acerca da dominação social e de uma reconstrução da estética do oprimido.

O sofrimento denunciado desde os primeiros navios negreiros – e antes deles, o genocídio indígena –, e nas estatísticas atuais, nesses grupos, não coadunam com a intenção objetiva da moral da estética burguesa do trágico, o qual, como descrevem Adorno e Horkheimer (2006, p.125), “[...] é reduzido à ameaça da destruição de quem não coopera […]”, mas sim expõe elementos de tal contingência ideológica, aproximando-se, por seu turno, do sentido paradoxal do trágico, fornecido pela arte, que, segundo esses mesmos autores, “[...] consistia outrora resistência desesperada à ameaça mítica” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.125). Não deixam, pois, de se opor à barbárie social, ao mesmo tempo que, porém, “[...] ao assemelhar-se às coisas reais, se adapta no entanto à reificação, contra a qual protesta” (ADORNO, 1993, p.123).

5.3 O funk e o rap como repertórios estéticos musicais da juventude periférica: entre