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A perspectiva bakhtiniana de fazer pesquisa

No documento Uma visão axiológica do riso na charge (páginas 92-95)

5 Metodologia

5.2 A perspectiva bakhtiniana de fazer pesquisa

Como já foi dito na introdução desta pesquisa, o gênero discursivo charge já foi explorado em diversos aspectos. É interessante observar que nada há de inédito se pensarmos em Ciências Humanas. Tudo já foi dito e comentado por alguém em algum momento. Não há assuntos “virgens”. Porém é preciso ter a consciência de que, por já se ter falado sobre tudo, não quer dizer que esgotamos o diálogo ou que não há mais nada a se acrescentar, muito pelo contrário, pois nosso olhar sobre algo sempre encontra algum aspecto que ainda não foi analisado mesmo sendo o objeto desacreditado exatamente pela diferença de olhares que temos, por sermos sujeitos e o sujeito sempre ter um olhar próprio, formado por suas vivências, experiências, crenças, posição social e muitos outros fatores que particularizam nosso modo de ver o mundo e as coisas. O ineditismo, portanto, não está no objeto, mas no olhar que lanço sobre ele.

E é sob este prisma do ineditismo do olhar que Bakhtin vem nos dizer que é preciso lançar os olhos sobre temáticas já conhecidas ao dizer que

Algumas vezes é extremamente importante expor um fenômeno Bem-conhecido e aparentemente bem-estudado a uma luz nova, reformulando-o como problema, isto é, iluminando novos aspectos dele através de uma série de questões bem orientadas. [...] Uma problematização renovada pode colocar em evidência um caso aparentemente limitado e de interesse secundário como um fenômeno cuja importância é fundamental para todo o campo de estudo. (BAKHTIN, 1998, p. 148-149)

Isso se justifica também na própria natureza mutável do sujeito que é sempre novo na medida em que é inacabado e vive, ou seja, o olhar está em permanente construção. O modo como concebemos o objeto de investigação por parte do discurso é

bastante complexo se pensarmos que o objeto é sempre desacreditado e contestado por um lado e obscurecido pela multiplicidade de opiniões que o recobrem. Sendo assim, trabalhamos sempre com o texto em Ciências Humanas e ele é produzido exclusivamente por sujeitos que não estão fora de um corpo, tempo ou espaço, no entanto com todas essas características, não ocorre estagnação, esgotamento. Pois,

Nas ciências humanitárias, à diferença das ciências naturais e matemáticas, surge a questão especifica do restabelecimento da transmissão e da interpretação das palavras de outrem [...]. Quanto às disciplinas filológicas, o sujeito falante e sua palavra aparecem aqui como objeto fundamental do conhecimento. (BAKHTIN, 1998, 150- 151)

Dessa forma, a principal diferença que reside entre Ciências Humanas e as Ciências ditas “duras” é a interpretação e o restabelecimento, ou seja, não há brechas para diversas interpretações se pensarmos em um fenômeno natural. Essas ciências lidam com uma exatidão extrema, com padrões fortemente rígidos, porém não há como tratar com tamanha rigidez as Ciências Humanas pelo fato delas se referirem ao homem, ou seja, a algo que nunca é o mesmo, que está em constante mutação, não dando possibilidade de estabelecer sobre ele verdades absolutas e incontestáveis como acontece com experimentos químicos. Estamos investigando sempre o dizer do outro, suas palavras, seu discurso e pesquisando o discurso com discurso, que é o nosso de pesquisador, pois também somos sujeitos, portanto, seres mutáveis. Tratar a palavra do outro com nossa palavra exige de nós uma postura primordial para toda pesquisa, um olhar que possibilita a realização da pesquisa: o olhar exotópico.

Exotopia é uma categoria bakhtiniana pensada para o campo da literatura, no entanto, como muitos dos conceitos bakhtinianos que migraram da literatura para o mundo da vida, tal ideia chega aqui como algo imprescindível para o pesquisador.

Como já foi relatado acima, Amorim (2006) em artigo intitulado “cronotropo e exotopia” aborda a temática dizendo que Todorov propôs a tradução do russo para o francês exotopie na primeira obra que lança o nome de Bakhtin no ocidente, que se consagrou e quer dizer situar-se em um lugar exterior. O texto em que Bakhtin melhor aborda o conceito é “O autor e o herói” que faz parte de “Estética da Criação Verbal”, já tendo aparecido no texto “Para uma filosofia do ato”. Desta forma, a exotopia consiste em

Primeiro, tentar captar o olhar do outro, de tentar entender o que o outro olha, como o outro vê. Segundo, de retornar ao seu lugar, que é necessariamente exterior à vivência do retratado, para sintetizar ou totalizar o que vê, de acordo com seus valores, sua perspectiva, sua problemática. (AMORIM, 2006, 96)

É extremamente necessário ao pesquisador fazer o movimento de se retirar de seu lugar, colocando-se no lugar do outro, olhando pelos olhos do outro e após retornar ao seu lugar para então fazer nascer a pesquisa. O olhar exotópico é que possibilita ao pesquisador esse ir e voltar. E é exatamente por esse conflito entre voz do pesquisador e voz do objeto que se diz que as Ciências Humanas são dialógicas, o que implica renunciar a toda ilusão de transparência tanto do discurso do outro quanto do discurso do pesquisador, dada a opacidade própria da linguagem.

Amorim (2007) sintetiza o conceito de Exotopia ao dizer que “a obra de arte é o lugar de tensão porque entre eu e o outro [...] há sempre uma diferença fundamental de lugares e, portanto, valores” (p. 14). Isto é, não há uma incidência do meu olhar de pesquisador sobre o olhar que o objeto tem de si mesmo e nem pode haver, em razão do texto do pesquisador não emudecer o do pesquisado e vice-versa, por ser na interação que reside a principal riqueza das Ciências Humanas: a construção de sentidos. Assim,

[...] Enquanto pesquisador, minha tarefa é tentar captar algo do modo como ele se vê, para depois assumir plenamente meu lugar exterior e dali configurar o que vejo do que ele vê. Exotopia significa desdobramento de olhares a partir de um lugar exterior. (AMORIM, 2007, P. 14)

O olhar exotópico, portanto, é de extrema importância para o pesquisador e para a pesquisa, pois o pesquisador é um dos principais instrumentos da pesquisa porque, sendo parte integrante da investigação, sua compreensão se constrói a partir do lugar sociohistórico no qual se situa e depende das relações intersubjetivas que se estabelecem com o sujeito da pesquisa. Sobre o sujeito, Freitas (2007) nos explica que há diferença entre objeto e sujeito da pesquisa. O primeiro é destituído de voz e o pesquisador aparece como o detentor de todo poder enquanto o segundo tem voz dentro da pesquisa, criando sentidos acerca do seu entorno e entrando em interação com a voz do pesquisador. É, pois, dando um outro sentido ao sujeito que o pesquisador dá de seu lugar com seus valores como contribuição o que ele enxerga.

Pesquisar é um processo de desencantamento e encantamento simultâneos do mundo físico e social. Pesquisar é também penetrar na intimidade das camadas de leitura que vão sendo construídos pelo pesquisador através da sua interação simbólica no mundo. (p. 81)

É interessante pensarmos a pesquisa sob tal prisma pelo fato de passarmos a ver o mundo sob uma desacralização das coisas para tocá-las, investigá-las e, então, encantá-las, torná-las objeto de lapidação, de descoberta. Também no próprio processo de pesquisa ver a descoberta como uma sobreposição de leituras feitas acerca do sujeito por meio da linguagem, já que essencialmente as Ciências Humanas têm por empiria o texto produzido pelo homem. Devido a essa natureza discursiva, Bakhtin (2011), ao falar sobre os gêneros do discurso, afirma achar necessário o estudo da natureza do enunciado, pois seu desconhecimento debilita as relações da língua com a vida.

Por fim, Amorim (2007) explica-nos que a pesquisa em Ciências Humanas está na linha do singular e do universalizante, ao passo que cada situação é única em suas circunstâncias e tende a ampliar-se como totalidade. Se buscamos uma pesquisa em uma escola, por exemplo, a investigação será singular porque visará analisar aquele contexto que perto de um quadro de educação brasileira é micro, porém aquele micro pode espelhar todo esse contexto maior. A autora nos afirma ainda que “na tensão entre os pólos singularizante e universalizante esta, segundo Bakhtin, o desafio e a riqueza das Ciências Humanas e somente uma postura relativista pode querer fugir a essa tensão” (p. 12).

No documento Uma visão axiológica do riso na charge (páginas 92-95)