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Carnaval, carnavalização e cosmovisão carnavalesca do mundo

No documento Uma visão axiológica do riso na charge (páginas 76-88)

Dostoiévski” é o quarto dos cinco capítulos que compõem a obra de Bakhtin sobre Dostoiévski e traz temáticas que o autor explora também em outros textos, tais como “A cultura popular da Idade Média e do Renascimento: o contexto de François Rabelais”, em que o filósofo russo analisa a obra literária do escritor François Rabelais e discorre

acerca da carnavalização, sobre a cultura popular e as peculiaridades dessa obra. Bakhtin (2010, 1997) analisa o aspecto da carnavalização, que vê como traço ímpar na obra dostoievskiana. Para tanto, apresenta as influências presentes nesses textos e que os singularizam.

Bakhtin (2010, 1997) considerou pertinente remontar às fontes literárias europeias por achar que elas poderiam ajudar na compreensão das peculiaridades do gênero, enredo e composição das obras de Dostoiévski. Ao retornar às origens do romance polifônico, inicia afirmando que na Antiguidade Clássica e na era do Helenismo surgiram os gêneros do sério-cômico, que faziam oposição aos gêneros elevados, como a epopeia e a tragédia, formando, dessa maneira, dois campos literários com substantivas diferenças.

Enquanto os gêneros chamados elevados tratavam de questões humanas sob um viés sério, grave, com um tom distanciado, os gêneros do cômico-sério pautam-se no riso, na quebra da distância mítica e lendária criada nos gêneros elevados por meio da atualização viva, na aproximação entre os homens não olhando para classe social, raça, entre outros, na subversão, no questionamento filosófico. Há uma forma diferente de ver o mundo, ou seja, uma cosmovisão diferente sobre as coisas, as situações e as pessoas. Os gêneros do sério-cômico apresentavam aspecto peculiar em relação aos demais e entre eles estão a sátira menipeia e o diálogo socrático. Todos trazem características comuns e fundamentais: novo tratamento dado à realidade (isso ocorre por meio da influência do folclore carnavalesco e da cosmovisão carnavalesca que coloca a palavra e a imagem em uma nova relação com a realidade através de uma alegre relatividade das coisas e da atualidade que acompanha essa cosmovisão – aqui já se começa a colocar em pauta a carnavalização); basear-se conscientemente na experiência e na fantasia livre; e a pluralidade de estilos e a variedade de vozes.

Bakhtin (2010, 1997) discorre acerca da carnavalização de maneira bastante breve para começar a falar do diálogo socrático, explicando-o, apresentando suas personagens, sua a origem e listando cinco características que são: a concepção socrática da natureza dialógica da verdade (a verdade criada entre homens e não pertencendo a um único indivíduo) e do pensamento humano sobre ela; a síncrise (que consiste na confrontação de diferentes pontos de vista sobre um determinado objeto) e a anácrise (que é um procedimento retórico de indução da palavra pela própria palavra); os heróis serem ideólogos (por defenderem ideias, pontos de vista); usar a situação de

enredo do diálogo paralela à anácrise; e a ideia se combinar organicamente com a imagem do homem, com seu portador (uma transformação momentânea do homem na própria ideia que defende). Após tal enumeração, apresenta-se o diálogo socrático como um dos principais da linha de evolução da prosa literária europeia e do romance, que leva à obra de Dostoiévski. Como degeneração do diálogo socrático, surgiram outros gêneros e entre eles a sátira menipeia, porém esta não é uma simples degeneração de outro gênero pelo fato de remontar diretamente do folclore carnavalesco.

Ao falar sobre a sátira menipeia, Bakhtin diz que fará uma breve referência de caráter meramente informativo. Explica o porquê do nome, sua origem, seus autores, sua influência na literatura cristã antiga e bizantina e afirma que a sátira menipeia é um gênero carnavalizado – ou seja, gênero que sofreu influência de diferentes modalidades de folclore carnavalesco – extraordinariamente flexível, mutável, capaz de penetrar em outros gêneros e até hoje insuficientemente apreciado. Também afirma que tal gênero tornou-se um dos principais veículos da cosmovisão carnavalesca na literatura até os nossos dias, apresentando as peculiaridades da sátira menipeia enumeradas em catorze.

A primeira é que o fator cômico, em comparação ao diálogo socrático, aumenta, embora seu peso oscile consideravelmente em diferentes variedades desse gênero flexível. A segunda é a total libertação das limitações histórico-memorialísticas, obtendo, assim, uma excepcional liberdade de invenção do enredo filosófica. A terceira é a fantasia audaciosa e descomedida em função da criação de situações extraordinárias para provocar e experimentar uma ideia filosófica (esta é considerada por Bakhtin a peculiaridade mais importante da menipeia). A quarta é a combinação orgânica do fantástico livre e do simbolismo e, por vezes, do fator místico-religioso com o naturalismo de submundo extremado e grosseiro (ao fazer referência, por exemplo, as partes íntimas de maneira grosseira). A quinta é a ousadia da invenção e do fantástico que se combina na menipeia com um excepcional universalismo filosófico e uma extrema capacidade de ver o mundo. Aqui Bakhtin diz que “a menipeia é o gênero das ‘últimas questões’, onde se experimentam as últimas posições filosóficas” (BAKHTIN, 1997, p. 115). A sexta é a manifestação de uma estrutura triplanar, pois a ação e as síncrises se deslocam da Terra para o Olimpo e para o inferno. A sétima é o fantástico experimental (a observação feita de um ângulo de vista inusitado). A oitava é a representação de inusitados estados psicológico-morais do homem – loucura, dupla personalidade, devaneio incontido, etc. A nona é a excentricidade, a violação da marcha

universalmente aceita e comum dos acontecimentos, das normas comportamentais estabelecidas e da etiqueta, incluindo as violações do discurso. A décima são os contrastes agudos e jogos oxímoros (jogo entre opostos de maneira que eles constituem uma unidade – o rei tornado escravo). A décima primeira é a incorporação de elementos da utopia social por meio de sonhos ou viagens a países misteriosos. A décima segunda é a intercalação de gêneros e a décima terceira é a multiplicidade de estilos e tonalidades. A última, enfim, é o caráter publicístico e atualizado (a menipeia tinha caráter um tanto jornalístico na época). Todas essas características formam uma unidade orgânica na sátira menipeia.

Outros aspectos desse gênero são abordados e, ao discorrer sobre o caráter dialógico interno de gêneros como a menipeia, fala da diatribe e do solilóquio, que se desenvolveram na órbita da menipeia, e do simpósio. Bakhtin afirma, ainda, que as particularidades de gênero da menipeia não só renasceram na obra de Dostoiévski como se renovaram, porém a diferença entre ambos é que a menipeia desconhecia a polifonia.

Após este momento, inicia-se uma explanação a respeito do carnaval, carnavalização e cosmovisão carnavalesca, que se aprofunda em relação ao que ele havia discorrido anteriormente. Bernardi apud Brait (2009) afirma que

Bakhtin teorizou sobre o carnaval, a carnavalização e o grotesco em outros textos, com ênfase especial no capítulo quatro de ‘Problemas da Poética de Dostoiévski’, mostrando-nos como esses fenômenos têm capacidade de revelar os processos da cultura e ao mesmo tempo denunciar, pelo riso, as conflituosas relações que se estabelecem entre os homens em situações de limiar. (p. 93)

No trecho acima, a autora relaciona as ideias apresentadas com questões culturais e com a polifonia, tendo em vista que as situações de limiar são uma das características que propiciam a polifonia no discurso dostoievskiano. Aqui começa a relação entre polifonia e carnaval em razão de ser o aspecto carnavalizado da literatura dostoievskiana que possibilita que a polifonia ocorra. Sobre a polifonia, Faraco (2009) explica que

Vivendo num mundo pesadamente monológico, Bakhtin foi, portanto, muito além da filosofia das relações dialógicas criada por ele e por seu Círculo e se pôs a sonhar também com a possibilidade de um mundo polifônico, de um mundo radicalmente democrático, pluralista, de vozes equipolentes, em que, dizendo de modo simples, nenhum ser

humano é reificado; nenhuma consciência é convertida em objeto de outra; nenhuma voz social se impõe como a última e definitiva palavra. Um mundo em que qualquer gesto centrípeto será logo corroído pelas forças vivas do riso, da carnavalização, da polêmica, da paródia, da ironia. (p. 79)

No fragmento acima, já podemos observar a relação existente entre polifonia e carnavalização, trazendo esta como uma das formas que possibilitam a ocorrência da polifonia por sua natureza dessacralizante ao momento em que profana o elevado ao colocá-lo ao lado do que é tido como inferior, subterrâneo.

O quarteto carnaval-carnavalização-grotesco-cosmovisão carnavalesca é pensado também por outros autores de diversas formas. Entre eles há Allon White ao discorrer sobre o carnavalesco em um contexto cultural, mostrando o carnavalesco como uma metáfora de transformação do social, um modo de pensar o social de maneira diferente, questionando os construtos sociais que se legitimaram como naturais. Sobre isso Hall (2003) diz que

Na verdade, o que é surpreendente e original a respeito do ‘carnavalesco’ de Bakhtin enquanto metáfora da transformação cultural e simbólica é que esta não é simplesmente uma metáfora de inversão – que coloca o ‘baixo’ no lugar do ‘alto’, preservando a estrutura binária de divisão entre os mesmos. No carnaval de Bakhtin, é precisamente a pureza dessa distinção binária que é transgredida. O baixo invade o alto, ofuscando a imposição da ordem hierárquica; criando, não simplesmente o triunfo de uma estética sobre a outra, mas aquelas formas impuras e híbridas do ‘grotesco’; revelando a interdependência do baixo com o alto e vice-versa, a natureza inextricavelmente mista e ambivalente de toda vida cultural, a reversibilidade das formas, símbolos, linguagens e significados culturais; expondo o poder arbitrário do poder cultural, da simplificação e da exclusão, que são os mecanismos pelos quais se funda a construção de cada limite, tradição ou formação canônica, e o funcionamento de cada princípio hierárquico de clausura cultural. (p. 211-212)

O carnavalesco, então, torna-se um modo de desnaturalizar os paradigmas sócio- historicamente construídos que nos chegam como naturais. Faraco (2009) relata o carnaval sob um viés cultural e diz que

E, na utopia de superar toda e qualquer monologização da existência humana, Bakhtin viu no carnaval – entendido não como uma festa específica, mas como todo um modo de apreender o mundo [...] – uma poderosa força vivificante e transformadora da vida cultural, dotada de

uma vitalidade indestrutível, porque ‘nada absolutiza, apenas proclama a alegre relatividade de tudo’ (p. 125), justamente ao permitir uma vida às avessas.” (p.80)

Como maneira de libertação da vida “oficial”, o carnaval mostra uma nova maneira de pensar sobre o mundo e os fatos de modo ambivalente, ou seja, a interdependência, mostram como uma coisa depende da outra e esta característica é própria da carnavalização, a qual é representada como a influência do carnaval na literatura, em especial sobre o aspecto do gênero. Mas antes de falar da carnavalização, faz-se necessário tecer algumas considerações acerca do carnaval, visto como um dos problemas mais complexos e interessantes da história da cultura. Portanto, o carnaval é assim conceituado:

O carnaval propriamente dito (repetimos, no sentido de um conjunto de todas as variadas festividades de tipo carnavalesco) não é, evidentemente, um fenômeno literário. É uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral, apresenta diversas matizes e variações dependendo da diferença de épocas, povos e festejos particulares. (BAKHTIN, 1997, p. 122)

Aqui vale salientar a diferença existente entre carnaval, carnavalização e cosmovisão carnavalesca, conceitos que se apresentam ao longo do capítulo “Peculiaridades do gênero, do enredo e da composição das obras de Dostoiévski”. O carnaval é uma festa popular, que aqui se apresenta não apenas como o carnaval que nós conhecemos, mas todas as festas de cunho carnavalesco, a carnavalização seria a influência do carnaval na literatura e a cosmovisão carnavalesca seria a visão de mundo que permeia o evento do carnaval, seus modos de ver e experimentar o mundo. Ponzio relaciona o carnavalesco com o surgimento do romance polifônico ao dizer que “o ‘carnavalesco’ ocupa um lugar primordial na análise que Bakhtin faz sobre a origem e as características do romance polifônico e sobre as relações entre a cultura popular e a literatura renascentista” (PONZIO, 2009, p. 169). A relação carnaval-carnavalização- cosmovisão carnavalesca-polifonia será abordada mais à frente. Sobre isso, Bernardi apud Brait (2009) afirma que

Teoricamente, a intenção de Bakhtin é, portanto, evidenciar o carnaval, não enquanto um espetáculo determinado ou uma forma

cultural específica, mas como uma cosmovisão extremamente poderosa e capaz de captar a energia popular de tal maneira que, em relação aos eventos carnavalescos, pode-se falar de um sujeito coletivo. A energia carnavalesca é capaz de contaminar tudo e todos, e possibilitar transformações socioculturais. (p. 78)

Dessa forma, o carnaval guarda características muito próprias. Entre elas está o caráter festivo, alegre e descontraído que serve de base para as outras peculiaridades. Minois (2003) relata que o carnaval tornou-se o símbolo das festas medievais e é pagão por sua suposta similitude com as saturnais (festividades romanas dedicadas a Cronos- saturno) e cabanais. O carnaval criou uma espécie de universo próprio e paralelo ao universo “real”, sendo uma maneira de viver totalmente diversa do curso habitual da vida, um tipo de “licença” da normalidade, do cotidiano. Minois (p. 156) afirma que “nas festas carnavalescas, o povo representa a própria vida, parodiando-a e invertendo- a; uma vida melhor, livre transfigurada”. No período do carnaval, em razão dele ser algo limitado no âmbito temporal e não no espacial, há uma libertação temporária das amarras a que se vive cotidianamente; dos tabus, das regras, dos valores e das hierarquias. Em “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais”, Bakhtin reflete a respeito do carnaval, focando a festividade na Idade Média e observa que os festejos carnavalescos ocupavam lugar importante na vida do homem medieval e situa-se na fronteira entre a vida e a arte, sendo uma vida representada. Tais festas se ligavam a períodos de crise, transtornos e viam o mundo assentadas em viés cômico, jocoso. Portanto, o homem medieval vivia duas vidas: uma oficial e outra carnavalizada.

Ponzio (2009) ao discutir a questão do carnaval explica que as categorias carnavalescas são: o avesso, abolição da ordem hierárquica (livre contato familiar); a mistura de valores, pensamentos e coisas (alto e baixo); e a profanação. Explica também que todos os aspectos do carnaval são ambivalentes – as imagens, a linguagem, o riso. O carnaval, portanto, é uma festa popular, de massa, às avessas (o escravo transforma-se em rei e vice-versa), todos os impedimentos são revogados – hierarquias, medos, devoção, desigualdades. Assim, o mundo carnavalesco mantém relação com a vida normal ao subvertê-la e celebrar a alegre relatividade de tudo. Como diz Bernardi apud Brait (2009)

O espírito carnavalesco também possibilitou o dialogo entre dois mundos, que de outra maneira estariam irremediavelmente separados. Pela linguagem contaminada pelo riso, e pela paródia, o homem do povo tomava consciência crítica da existência de dois mundos – o mundo oficial, normativo, onde viviam os donos do poder, e o mundo extraoficial, onde viviam os homens oprimidos pelo poder. (p. 78-79)

Além disso, a queda das barreiras entre os homens permite que haja um livre contato familiar, fazendo com que pessoas de todas as classes estejam no mesmo nível e aproximem-se, proporcionando a confraternização. Assim, vive-se o carnaval e todos são participantes, não há espectadores.

A linguagem é uma das mais expressivas singularidades carnavalescas, tendo em vista a criação de uma linguagem concreto-sensorial simbólica:

O carnaval criou toda uma linguagem concreto-sensorial simbólica, entre grandes e complexas ações de massas e gestos carnavalescos. Essa linguagem exprime de maneira diversificada e, pode-se dizer, bem articulada (como toda linguagem) uma cosmovisão carnavalesca una (porém complexa), que lhe penetra todas as formas. Tal linguagem não pode ser traduzida com o menor grau de plenitude e adequação para a linguagem verbal, especialmente para a linguagem dos conceitos abstratos, no entanto é suscetível de certa transposição para a linguagem cognata, por caráter concretamente sensorial, das imagens artísticas, ou seja, para a linguagem da literatura que chamamos carnavalização da literatura. (BAKHTIN, 1997, p. 105)

Ao falar sobre a linguagem do carnaval, o fragmento apresenta a carnavalização enquanto transposição dessa linguagem para a literatura, que, na visão de Bakhtin, seria a forma mais suscetível de incorporação. A linguagem, nesse caso, não se resume ao caráter verbal, mas abrange o gestual e como tudo no carnaval a linguagem também é ambivalente, carrega ofensas, injúrias, expressões de baixo calão, impregnadas de relatividade, alternância e renovação; é um discurso franco. As ofensas não são entendidas nesse contexto como na vida habitual, levando à discórdia, por exemplo, mas como uma forma de tratamento legítima, possibilitada por causa da irreverência e liberdade próprias do carnaval. Sendo assim, esse tipo de linguagem serve de maneira de aproximação entre os homens, ao momento em que as injúrias, juramentos não são levados a sério e o traço da ambivalência é muito importante para que assim as coisas ocorram, para que o que se diz no carnaval fique no carnaval sem levar para os aspectos normais da vid. A partir do momento que os homens alegremente se tratam por iguais

por meio de uma linguagem relaxada, que se usa de todo tipo de grosserias, isso converge para a própria diversão de todos na linguagem carnavalesca que se realiza. Essa linguagem é encontrada nas praças públicas, nas feiras, nos locais livres de restrições. A praça, inclusive, é um espaço-símbolo da universalidade pública e ela também é ambivalente por ser biplanar – espaço real e espaço carnavalizado. Ponzio (2009) falando sobre a carnavalização e a linguagem afirma que

Bakhtin chama de ‘carnavalização’ da literatura a transposição da linguagem do carnaval à linguagem literária, que se reflete em várias formas simbólicas (ações de massa, gestos individuais, etc.), unificadas pela visão comum do mundo que todas elas expressam. Entre essas duas linguagens, o carnavalesco e o artístico-literário, produz-se uma relação de afinidade que tem permitido, historicamente, a passada da primeira para a segunda, isto é, a transposição, a tradução da linguagem carnavalesca para a linguagem da literatura. (p. 172)

Como é visível no fragmento acima, todo o conjunto de expressões e gestos do carnaval exprime uma visão de mundo particular, uma visão carnavalizada do mundo, com influência dos aspectos do carnaval, uma cosmovisão carnavalesca. Sobre isso, Brait (2006, p. 57) diz que “a cosmovisão carnavalesca diz respeito [...] a uma ‘grandiosa cosmovisão universalmente popular dos milênios passados’”. Essa visão de mundo apresenta algumas categorias, entre elas estão o livre contato familiar entre os homens, a excentricidade, mésalliances (união entre os opostos) e a profanação. Todas essas categorias não são ideias abstratas sobre liberdade e igualdade e sim reais. São analisadas ainda as ações carnavalescas e a principal delas é a coroação bufa e o posterior destronamento do rei do carnaval, tendo em sua base a ênfase das mudanças e transformações, da morte e da renovação. Bakhtin (1997) diz que

A coroação-destronamento é um ritual ambivalente biunívoco, que expressa a inevitabilidade e, simultaneamente, a criatividade da mudança-renovação, a alegre relatividade de qualquer regime ou ordem social, de qualquer poder e qualquer posição (hierárquica). (p. 124)

A lógica das inversões é própria dessa cosmovisão por remeter à relatividade das verdades e questionar o que está posto na vida extraoficial, uma vez que o homem não pode empreender uma “revolução” para mudar sua situação, ele joga toda sua sede de

mudança e desejos no carnaval, abrindo brechas na realidade oficial e pensando uma nova maneira de organização do mundo. Também a imagem do fogo é ambivalente, pois concomitantemente ele destrói e renova as coisas junto com o inferno carnavalizado. Também há ambivalência no riso que explode em meio a festividade e é dirigido contra o supremo, como diz Bakhtin

O riso carnavalesco também está dirigido contra o supremo; para a mudança dos poderes e verdades, para a mudança da ordem mundial. O riso abrange os dois polos da mudança, pertence ao processo propriamente dito de mudança, à própria crise. No ato do riso carnavalesco combinam-se a morte e o renascimento, a negação (a ridicularização) e a afirmação (o riso de júbilo). É um riso profundamente universal e assentado numa concepção do mundo. É essa a especificidade do riso carnavalesco ambivalente.

Reis transformados em escravos, pessoas ricas em pedintes, mendigos em nobres são característicos de tal maneira que as inversões atingem o próprio corpo, há uma reformulação do pensamento a respeito do corpo, contrapondo-se com a estética clássica que visa tapar todos os orifícios e imperfeições por um ideal estético. A remissão ao baixo corporal – falo, vagina, ventre, etc. - é feita de modo diferenciado, pois todos eles são apresentados de maneira exagerada, escrachada e não de maneira estigmatizada, mas como algo regenerador. Isso é sustentado devido ao baixo material e corporal, concebido na sua função regeneradora, amparar-se na reversibilidade dos movimentos, o que é fundante no grotesco. A função regeneradora do rebaixamento grotesco compõe a cosmovisão carnavalesca (BRAIT, 2006, p. 57). Aqui se retrata, então, o que Bakhtin chamou de realismo grotesco. Este é uma das manifestações do inacabamento

No documento Uma visão axiológica do riso na charge (páginas 76-88)