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Uma visão axiológica do riso na charge

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Academic year: 2017

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DEPARTAMENTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

A CONSTRUÇÃO AXIOLÓGICA DO RISO NA CHARGE: UMA PERSPECTIVA BAKHTINIANA

FERNANDA DE MOURA FERREIRA

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Por

FERNANDA DE MOURA FERREIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – PPgEL da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem – Área de Concentração em Linguística Aplicada, sob a orientação do Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves.

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A CONSTRUÇÃO AXIOLÓGICA DO RISO NA CHARGE: UMA PERSPECTIVA BAKHTINIANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – PPgEL da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem – Área de Concentração em Linguística Aplicada, sob a orientação do Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves

Universidade Federal do Rio Grande do Norte Presidenta

__________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira

Universidade Federal do Rio Grande do Norte Examinadora Interna

__________________________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Eduardo Ramos

Universidade Federal de São Paulo Examinador Externo

__________________________________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Acosta Pereira

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A Deus, primeiramente, por tudo que me

fez e ainda faz.

A minha mãe, Célia Maria de Moura,

que sempre esteve presente em todos os

momentos com sua força para me ajudar a

seguir em frente.

A meu pai, Francisco Ferreira Filho, por

todo apoio e amor.

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A gratidão é um sentimento que nos faz criar admiração pelo outro por meio de seus atos para conosco. Tal admiração foi brotando em mim por muitas pessoas ao longo do caminho trilhado na pós-graduação. Dentre elas, a primeira é a minha mãe, Célia Maria de Moura, a quem sempre admirei por sua força e integridade, pelos grandes ensinamentos, pelos sacrifícios feitos para que hoje eu chegasse até aqui. Minha admiração cresceu ainda mais neste período por esta mulher fenomenal. Por meu pai, Francisco Ferreira Filho (Mano), que me apoiou. Pela minha orientadora, professora Maria da Penha Casado Alves, que me acompanhou desde a graduação, que me abriu as portas do mundo acadêmico, pelo seu exemplo de profissionalismo e enquanto pessoa. Aos meus companheiros de pós-graduação: Rhena Raize, pela amizade e ajuda que sempre me disponibilizou; Gilvando Alves, pelo seu companheirismo temático, pelas gostosas gargalhadas e pelo compartilhamento fraterno de conhecimento; Ester Silva, por ser minha grande companheira de pesquisa tanto na graduação quanto na pós-graduação, também por sua amizade; Ivone, por sua postura sempre afetuosa e conselhos. Minha admiração vai também a todos os que me deram palavras de incentivo nos momentos difíceis (amigos, familiares, colegas da graduação e da pós-graduação, professores, colegas de trabalho). Tenham a certeza de que guardo comigo cada palavra. Elas serviram de combustível para que este trabalho fosse realizado. Com certeza, não há palavras apenas minhas e das fontes citadas aqui, mas de cada um de vocês.

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Tudo, aliás, é a ponta de um mistério.

Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles.

Duvida? Quando nada acontece, há um

milagre que não estamos vendo.

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This work aims at investigating the axiological construction of laughter in cartoons. To do so, the way of conceiving laughter in such discourse genre is approached, provided that the laughter incorporated into cartoon’s dialogic relations is an axiological construction, i.e., by means of it, positionings and ideological views are built up. Hence, we narrowed the investigation on verbal-visual elements existing in the compositional units; likewise, we analyze the constitutive/constituent discursive project of the architectonic model. Assumed as theoretical-methodological background are The Bakhtin Circle’s formulations on language (2010, 2011, 1998), as well as other sources of aid from Faraco (2009), Brait (2009, 2006), Ponzio (2009) equaling with dialogic conception of language and reflections concerning dialogic discourse analysis. Particularly, we address at Ramos (2009, 2010, and 2011) and Vergueiro (2009, 2010) on cartoons as a discourse genre. As to laughter, we rely on Possenti (2010), Minois (2003), Bergson (2001), and Skinner (2002). Nevertheless, our core reference is Bakhtin’s work (1997, 2010) on carnivalesque cosmovision and the laughter. This work integrates Applied Linguistic field, is socio-historically biased, and portrays as themes language, axiology and laughter.

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1 Introdução... 10

1.1 Questões e objetivos de pesquisa... 13

1.2 Excurso sobre pesquisas que têm por herói a charge... 13

1.3 Organização do trabalho... 16

2 O gênero discursivo charge: as condições sócio-históricas de emergência... 18

2.1 O universo dos quadrinhos... 18

2.2 Notas sobre o enunciado chargístico... 22

3 Riso e o risível: uma temática pensada em diferentes épocas e sob diversos olhares... 38

3.1 O riso em perspectiva bakhtiniana... 52

4 Referencial teórico: a contribuição bakhtiniana... 58

4.1 Concepção dialógica da linguagem... 58

4.2 Forças centrífugas e centrípetas... 62

4.3 A concepção de enunciado concreto... 64

4.4 O campo dos valores: a valoração e a axiologia... 73

4.5 Carnaval, carnavalização e cosmovisão carnavalesca do mundo... 75

5 Metodologia... 87

5.1 A relação entre o paradigma qualitativo e a área da LA... 87

5.2 A perspectiva bakhtiniana de fazer pesquisa... 91

5.3 Procedimentos teórico-metodológicos... 94

6 Análise: construindo interpretações... 97

7 Considerações finais... ... 139

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Para compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural, que é a sociedade; impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma função social.

Henri Bergson

1. Introdução

De acordo com a epígrafe, o riso coloca-se no seio da sociedade que é seu ambiente natural, porém não é suficiente apenas inseri-lo aí, mas desvendar sua funcionalidade, sua finalidade. Muito embora o riso tenha sido pensado e analisado sob prismas os mais variados, neste trabalho carimbamos sobre o riso a função de veicular opiniões acerca de assuntos variados que dizem respeito à sociedade de modo geral por meio de enunciados chamados de charges. Devido a esse riso emergir no entrecruzamento linguístico, este trabalho se insere na área de conhecimento dos Estudos da Linguagem, especificamente da Linguística Aplicada de perspectiva crítica e tem por tema a relação entre linguagem, axiologia e riso. Há, aqui, uma investigação sobre o uso da linguagem na relação com o riso que se materializa por meio do gênero discursivo charge, difundido, atualmente, por três meios de comunicação de massa (jornal impresso, internet e televisão). A charge, no entanto, muitas vezes, é vista como um gênero que está recoberto por um discurso de que não há muito mais o que se dizer a seu respeito, que quase tudo sobre ela já foi dito dada a quantidade de trabalhos que a têm como herói. Porém, acredito que quanto aos seus aspectos estruturais muito já foi dito sobre o gênero em questão, mas em relação ao seu caráter valorativo e responsivo há um grande campo a ser explorado. Em pesquisa feita na internet, observamos que questões como o riso que se apresenta nas charges ainda são muito pouco vislumbradas, sendo escassas as produções que tratam dessa relação, havendo, inclusive, dificuldade para se encontrar trabalhos com essa abordagem. A questão axiológica também foi pouco explorada e muitas das pesquisas com charge estão voltadas para a sala de aula de língua materna.

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axiológica e como justificativa o que se pensa ingenuamente sobre o gênero em questão no que diz respeito à relação entre riso, axiologia e charge. Assim, a razão pela qual se escolheu pesquisar a construção axiológica do riso em charges é pelo fato de haver uma falsa ideia em relação à charge advinda da própria noção de risível que habita a ideologia do cotidiano de nossa sociedade. Muitas vezes, a charge é vista como um texto leve e inocente quando, na realidade, tem por principal objetivo retratar um fato que está na mídia, ou seja, sob uma ótica particular de visão de mundo, não se comprometendo a levar os fatos ao leitor de maneira transparente e objetiva, mas de modo intencionalmente opaco e valorativo. Também por se imaginar o riso como algo sempre positivo e alegre quando, na verdade, aparece em diferentes circunstâncias com objetivos os mais variados, indo de um aspecto positivo e inofensivo a outro pesadamente negativo e voraz. Na charge, principalmente, o riso não aparece com o fim de confraternização ou celebração da harmonia como muitos pensam. Muito pelo contrário, é um riso que visa o embate com os dizeres com os quais a charge dialoga.

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Assim, neste trabalho, tratamos de questões de linguagem que ocorrem em contextos da vida real. No caso da nossa investigação, o gênero discursivo que abordamos é a charge e o aspecto do qual nos ocuparemos é a construção valorativa do riso que se manifesta nesse gênero, partindo da hipótese de que o riso que surge na charge é construído de maneira axiológica, ou seja, um riso que se constitui pelos acentos de valor que despontam dos enunciados, tendo em vista que é por meio deles que chegamos ao axiológico, aos posicionamentos. Portanto, para estudar a constituição do riso é necessário estudar linguagem, ou melhor, o enunciado, por este proporcionar vida à linguagem e ser apenas essa vida que pode explicitar posicionamentos e valores que se constroem em sociedade por meio da interação entre sujeitos. Dessa forma, não pretendemos empreender uma pesquisa que estude o riso pelo riso ou como manifestação humana ou algo dessa natureza, mas um estudo que tenha por coluna vertebral a linguagem em seu contexto de uso e, uma vez que o riso expresso na charge é uma manifestação que se origina por meio do posicionamento frente a enunciados outros circulantes, ao nosso ver, é totalmente legítima uma investigação sob tal direção. Legítima também por haver poucos trabalhos que se preocupem com a relação riso e linguagem, principalmente, da construção do riso por meio da linguagem.

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1.1) Questões e objetivos de pesquisa

Para concretizar essa investigação, elegemos a seguinte questão principal e específicas:

1 Como o axiológico contribui na construção do riso que aparece no gênero discursivo charge?

1.1Qual a relação entre o riso e os acentos de valor?

1.2Como os acentos de valor se constituem no texto chargístico?

1.3Como se estabelecem as relações dialógicas entre enunciados outros e o enunciado chargístico?

Dessa forma, temos o seguinte objetivo geral e específicos:

1 Analisar a contribuição do axiológico no riso encontrado no gênero discursivo charge

1.1Estabelecer a relação entre os pontos de vista e a gênese do riso na charge.

1.2Explicitar os modos como se constituem os acentos de valor que se expressam nas charges que servem de corpus para esta investigação. 1.3Analisar as relações dialógicas que se estabelecem na charge a fim de

observar como o axiológico se instaura no texto chargístico.

1.2) Excurso sobre pesquisas que têm por herói a charge

Muitos autores em diversas áreas do conhecimento já se dedicaram ao estudo da charge e essa produção foi divulgada por meio da publicação de livros, de trabalhos apresentados em congressos e pesquisas realizadas em nível de pós-graduação.

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da sociedade cuja influência, muitas vezes, é direta em um processo eleitoral, buscando delinear o caminho de mudanças do candidato Lula tanto como pessoa pública quanto como personagem desenhado, enquanto caricatura e objetivando identificar não apenas as forças que levaram o candidato à vitória, mas a busca de um projeto social idealizado. A pesquisa visa, ainda, evidenciar a importância da charge jornalística-política-diária enquanto veículo transformador social. O corpus da investigação é composto por charges cariocas que influenciaram nas eleições de 2002 em que o ex-presidente era candidato. Em sua conclusão, o autor explica que as charges políticas têm poder de transformação da opinião pública, podendo servir tanto de expressão de um ponto de vista quanto de conscientizadora do social.

Outro exemplar do estudo da charge é Miranda (2009) em sua dissertação de mestrado na área de Comunicação que traz a charge como um modo genérico de manifestação do humor na imprensa. Sua pesquisa tem por objetivo buscar compreender melhor o fenômeno do grotesco através do desenho de humor de mídia jornalística impressa, tendo por questão principal qual a relação entre o grotesco na imprensa e a comicidade no âmbito do grotesco midiático. O corpus se compõe de doze charges retiradas da Revista da Semana, revista semanal da editora Abril, que traz de maneira resumida os fatos ocorridos durante a semana, dividindo-se o corpus em duas categorias: humor que a linguagem é capaz de exprimir e humor que a linguagem cria.

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mês de março a agosto de 2006, com um total inicial de 1.017 charges das quais restaram dezesseis para servirem de corpus.

Na mesma área, Cavalcanti (2008) fez estudo em nível de mestrado que contempla a relação charge, argumentação e multimodalidade ao objetivar mostrar como se articulam os modos de linguagem na charge, considerando que os argumentos também podem ser constituídos por meio do visual e apresentando uma proposta de análise multimodal para o texto chárgico a fim de tecer considerações acerca da argumentação. O corpus da pesquisa foi de 450 charges veiculadas nos três principais jornais de Pernambuco e produzidas de junho a outubro de 2006.

Também na área de Estudos da Linguagem no campo de concentração Linguagem, Cultura e Discurso com ênfase em textualidades contemporâneas Ferreira (2006) tem a charge como tema de sua dissertação. Em sua introdução, o pesquisador assinala que a motivação para seu trabalho foi ver a charge além de um gênero argumentativo, enxergando-a como uma parodização de uma realidade através da análise de elementos literários quanto à forma e ao conteúdo e entendendo a paródia como um recurso literário próprio do movimento modernista. A charge, portanto, é vista como um texto que recria a realidade e, por isso, pode ser investigada com arcabouço literário, pensando em literatura enquanto recriação da realidade e não como cópia fidedigna ou denunciadora das mazelas sociais, o que não quer dizer que, por vezes, não tenha essa intenção, contudo, a maneira como esta é feita é diversa, por exemplo, do modo como faz um artigo de opinião. Assim, o autor afirma que “O que aqui queremos dizer é que, a charge, em sua estrutura de imagem e texto, ou às vezes, somente de imagem, apresenta traços de texto literário, reconstruindo significados, intertextualizando-se com o real” (p. 24). O estudo analisa cinco charges no que concerne aos aspectos parodísticos de recriação da realidade veiculada e conclui afirmando que

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significações na forma de imagem e texto, parodiando uma realidade. (p. 70-71)

Por fim, temos a investigação de D’Athaíde (2010) no campo da Linguística Aplicada, a qual objetiva observar os silêncios que se constituem os efeitos de sentidos em cinco charges políticas publicadas no jornal Zero Hora no período de fevereiro de 2007 a junho de 2009, as quais servem de corpus da pesquisa, cujo construto teórico é a Análise do Discurso Francesa. A charge é concebida como acontecimento discursivo e a autora afirma que a relação entre o enunciado chárgico e o silêncio permite visualizar o que está à margem do que é dito em um jogo de ditos e silêncios que significam.

1.3) Organização do trabalho

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valores; e no subitem 4.5, apresentamos as noções pensadas de carnaval, carnavalização e cosmovisão carnavalesca de Bakhtin, atentando para a diferença e as peculiaridades de cada uma. O capítulo cinco refere-se à metodologia e subdivide-se em três subitens. No subitem 5.1, discutimos o paradigma qualitativo, sua relação com a área de conhecimento da Linguística Aplicada e a visão desta sobre a produção científica; no subitem 4.2, apresentamos a visão bakhtiniana de fazer pesquisa e as singularidades do fazer científico da área de Humanas; e, no subitem 4.3, apresentamos os procedimentos teórico-metodológicos deste trabalho. O capítulo seis é dedicado à análise de dez enunciados chargísticos, recuperando seus contextos imediatos e amplos, atentando para a presença de elementos que explicitem a construção axiológica do riso. No capítulo sete, apresentam-se as considerações finais da pesquisa.

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2. O gênero discursivo charge: as condições sócio-históricas de emergência

A charge é um gênero discursivo que compartilha com outros gêneros a linguagem do universo dos quadrinhos e, por essa razão, apresentamos algumas considerações sobre o universo dos quadrinhos na seção a seguir.

2.1) O Universo dos Quadrinhos

Nossas reflexões são fundamentadas em Ramos (2009, 2010, 2011), Ramos e Vergueiro (2009) e Vergueiro (2010, 2010), entre outros que se dedicam ao estudo dos quadrinhos. Estes são um tipo de linguagem que se caracteriza pelo formato sequenciado de quadros onde se desenrolam as ações, pelo uso de balões que indicam a fala, pensamentos, sonhos, reflexões das personagens, pelo uso do imagético através do desenho de paisagens e personagens, de técnicas para indicar velocidade e profundidade, por exemplo, pelas onomatopeias, entre outros.

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(dança, cinema, pintura, escultura, etc.), que ocorrem em todos os âmbitos, Vergueiro e Ramos (2009) afirmam que

Diálogos entre as linguagens ocorrem. E também acontecem com o cinema, o teatro, a ilustração. Nem por isso deixam de manter suas características autônomas. Ou será que alguém espera encontrar balões em um romance? Pois balões são uma convenção característica da linguagem dos quadrinhos. (p. 37)

Essa visão de quadrinhos como veículo para a literatura dita erudita aparece também em documentos oficiais que tratam da distribuição de obras diversas para as bibliotecas de escolas públicas de todo o Brasil. Na última década do século passado, os órgãos oficiais de educação de muitos países passaram a reconhecer a importância da inserção dos quadrinhos no currículo escolar, desenvolvendo orientações específicas para seu uso. Oficialmente, os quadrinhos entram na educação, por meio da LDB (Lei de Diretrizes e Bases), pelos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) do ensino fundamental e médio e pelo PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola).

Um aspecto que merece ser discutido é a questão dos mitos que cercaram e ainda cercam os quadrinhos. Vejamos algumas das razões que fizeram os quadrinhos serem alvo de mitos.

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histórias com os principais elementos do mundo dos quadrinhos, em razão de lá serem consolidados todos os elementos técnicos e sociais para que os quadrinhos, em especial as histórias em quadrinho, se transformassem em um produto massivo. Com isso, os quadrinhos ajudaram a disseminar o estilo americano de vida e a partir de 1920 iniciou-se uma tendência naturalista nos quadrinhos, com deiniciou-senhos mais fiéis à realidade, surgindo também os comic books, ou seja, os gibis, e os super-heróis, que alavancaram a popularidade das HQs (Histórias em Quadrinhos).

A popularidade dos quadrinhos, no final da II Guerra Mundial, era tão grande que começou a gerar desconfiança em pais e professores sobre os efeitos que poderiam provocar nos pequenos leitores, tendo em vista que majoritariamente os quadrinhos eram e são consumidos por crianças e jovens. Quanto a isso, Vergueiro (2010) esclarece como a desconfiança passou a certeza por parte da sociedade americana da época:

Baseado nos atendimentos que fazia de jovens problemáticos, o Dr. Wertham [psiquiatra alemão radicado nos Estados Unidos] passou a publicar artigos em jornais e revistas especializadas, ministrar palestras em escolas, participar de programas de rádio e tevê, nos quais sempre salientava os aspectos negativos dos quadrinhos e sua leitura. Generalizando suas conclusões a partir de um segmento da indústria de revistas de histórias em quadrinhos – principalmente de suspense e terror -, e dos casos patológicos de jovens e adolescentes que tratou em seu consultório, ele investiu violentamente contra o meio, denunciando-o como uma grande ameaça à juventude norte-americana. (p. 11)

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Por tais motivos, os quadrinhos passaram a ser vistos como algo pernicioso, sendo, inclusive, criado um código de conduta para eles, que teve, também, versão brasileira a fim de garantir a tranquilidade de pais e professores quanto ao conteúdo dos quadrinhos, com a promessa de que as HQs não iriam prejudicar o desenvolvimento moral e/ou intelectual de seus leitores e, assim, nasceu uma espécie de “selo de qualidade” dos quadrinhos. Tais selos apareciam na capa das histórias. Era uma maneira das indústrias dos quadrinhos não se prejudicarem seus negócios mediante o acento negativo que se estava colocando sobre os quadrinhos. Apesar dos esforços, as críticas aos quadrinhos eram intensas nos Estados Unidos e no resto do mundo e a partir deste ponto começa a estigmatização. Começaram a nascer mitos que se perpetuaram durante muito tempo e ainda resistem tais como o de que os quadrinhos afastariam crianças e jovens de leituras mais aprofundadas, mais eruditas, não contribuindo, dessa forma, para a formação responsável e sadia de seus leitores, o que as leituras aprofundadas fariam. Ao não contribuir com a formação moral e/ou intelectual do leitor, os quadrinhos gerariam uma espécie de “preguiça mental” que seria prejudicial aos estudos de crianças e adolescentes. Em suma, os quadrinhos causavam prejuízo escolar, embotamento do raciocínio lógico, dificuldade na apreensão de ideias abstratas e mergulho em um ambiente imaginativo prejudicial ao relacionamento social e afetivo de seus leitores.

Isso criou um abismo entre quadrinhos e sala de aula, ao momento em que os quadrinhos sofreram restrição no contexto escolar até serem banidos de maneira violenta, retornando timidamente aos poucos.

Os quadrinhos, então, saíram da Europa e se expandiram para outras regiões do mundo com a descoberta de que eles não serviriam somente de instrumento de entretenimento, mas poderiam ser veiculadores de informações e conhecimentos específicos. Instituições religiosas e governos se utilizaram da linguagem dos quadrinhos para veicular conteúdo ideológico e religioso a crianças e a adolescentes, tornando-o mais acessível e atrativo a esse público. Essa verdadeira “redescoberta” dos quadrinhos fez com que muitos dos mitos que os cercavam fossem reavaliados, concluindo que eles, na verdade, eram posicionamentos preconceituosos e desprovidos de fundamento e desconhecimento acerca da temática.

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quadrinhos elegeram esse público mais jovem em busca de uma expansão econômica ao ver nele um grande potencial de consumo, sendo ainda hoje jovem a maioria do público consumidor, porém não exclusivamente. Diversas publicações com esse formato são voltadas exclusivamente para adultos, havendo atualmente histórias em quadrinhos de cunho sensual ou pornográfico. Porém, pelo grande sucesso no Brasil de produções como a Turma da Mônica, de Maurício de Souza, ainda se sustenta o discurso de que quadrinhos são sinônimos de criança ou adolescente quando, na realidade, eles são para todas as idades. Esse é apenas um dos mitos que cercam essa linguagem.

Por fim, Vergueiro (2010) fala-nos sobre uma alfabetização da linguagem dos quadrinhos como sendo indispensável para que o aluno decodifique as múltiplas mensagens neles presentes e também para que o professor obtenha resultados mais eficientes na utilização de quadrinhos na educação. Pensando na gama de informações que são dadas ao leitor concomitantemente ao momento de leitura dos quadrinhos, faz-se necessário que o leitor tenha domínio das estratégias que caracterizam esfaz-se tipo de linguagem para um bom aproveitamento seu. Ler quadrinhos é ler linhas, cores, balões, imagem, entre outros elementos que se apresentam e singularizam sua linguagem.

2.2) Notas sobre o enunciado chargístico

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até mesmo na academia. Podemos evidenciar isso nos conceitos dados pelo Dicionário Escolar Aurélio (2001) que define a charge como um “cartum em que se faz crítica social e política”, dando indicação para se conferir o verbete “cartum” que é conceituado como um desenho humorístico. A tira é mencionada como cada uma das faixas horizontais de uma história em quadrinhos e esta como “sequência dinâmica de desenhos (quadrinhos), em geral com legendas, que contam uma história”.

Ramos (2010), pesquisador da área dos quadrinhos, faz a diferença entre cada um dos gêneros quadrinísticos. Primeiramente, o autor traz os quadrinhos como um hipergênero, isto é, um grande rótulo que agregaria diversos gêneros como charges, cartuns, tirinhas cômicas, tirinhas seriadas e os diversos modos de histórias em quadrinhos. Dessa forma, a charge é descrita como um texto de humor que aborda um fato ou tema ligado ao noticiário, recriando-o de maneira ficcional e estabelecendo relações com a notícia. As personagens desse gênero, em geral, são personalidades do contexto político brasileiro ou do mundo dos famosos e é por emitir posicionamento que, muitas vezes, a charge está localizada na página de opinião ao lado de artigos de opinião e editoriais ou em área reservada ao tema “política”. O recurso da caricatura também é fortemente utilizado. Conforme Ramos (2010), a principal diferença entre charge e cartum seria o fato de a charge estar ligada ao noticiário diferentemente do cartum. Já a tira cômica, que apresenta outras denominações, caracteriza-se pelo formato sequenciado de pequena extensão de quadrinhos, tendo o humor como marca registrada e podendo ter ou não personagens fixos tais como Garfield, Piratas do Tietê, Charlie Brown ou Mafalda. Porém, não há apenas a tirinha cômica, nomenclatura dada para as tiras das personagens acima citadas, havendo as tiras seriadas ou tiras de aventuras que se centram em uma história narrada em partes, cada tira faz um capítulo diário interligado a uma trama maior. Há ainda a tira cômica seriada que fica entre a tira seriada e a cômica, sendo um texto que se utiliza das estratégias de humor da tira cômica e tem continuidade por capítulo como uma série.

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acompanham outras formas de quadrinhos, no entanto, os jornais não são os únicos veículos desses gêneros, pois tanto a internet como os próprios livros didáticos de diversas disciplinas disseminam os três textos. Até mesmo a televisão veicula esses textos, porém de maneira bem mais escassa se comparada à internet, o jornal e o livro didático. Por serem tão divulgados, não encontram resistência atualmente e entram nas salas de aula, na academia e na mídia sem dificuldade.

O cartum apresenta-se, portanto, como um desenho humorístico que pode ou não ter trecho verbal e que “brinca”/reflete acerca de alguma situação do cotidiano, não havendo, via de regra, viés político ou ligação com fatos do noticiário. Porém, a partir de nossa experiência de leitor, sabemos e reconhecemos que existem cartuns que apresentam uma linha política e crítica. Porém, eles não se configuram de um modo direto e tão verticalizado como na charge, mas desponta enquanto crítica e, no que concerne à temática, pode-se ter influência do noticiário sobre a produção e a intenção do texto, havendo, inclusive, a possibilidade de transformação e reposicionamento de um enunciado já que há textos que nasceram como charges e, devido à natureza não fugaz da temática e de sua recorrência, passaram de um tempo ínfimo e caíram em uma temporalidade mais abrangente, perdendo as raízes com sua enunciação inicial e reposicionando-se genericamente. Em relação à tira, este é o gênero quadrinístico que mais tem rótulos, sendo um texto de humor necessariamente curto por causa de seu formato que apresenta ou não personagens fixos com desfecho inusitado o qual causa o humor, ou seja, é um riso do inusitado, do inesperado, aproximando-se, muitas vezes, da piada, como Ramos (2011) investigou em sua pesquisa de doutorado, transformada em livro e intitulada “Faces do humor: uma aproximação entre tiras e piadas”. A tira não tem relação com o noticiário ou viés político. Quanto à charge, Ramos (2009) nos indica que

Charge é um texto de humor que dialoga especificamente com fatos do noticiário. É uma leitura irônica de alguma informação, reportada ou não no jornal ou site em que foi veiculada. Quando tem como personagem algum político ou personalidade, é comum o uso de caricatura para reproduzir as feições da pessoa representada. (p. 193)

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citados pelo suporte em que se apresenta, sendo o caso, por exemplo, das charges que são veiculadas em sites que não trazem notícia alguma, apenas o texto chargístico. Até mesmo em jornais observamos que há casos em que a charge referente a uma temática sai apenas no dia seguinte ao fato noticiado. Por essa natureza dialógica da charge é que se faz extremamente necessário para a compreensão do texto que o leitor esteja atualizado e concatenado com o noticiário tanto local quanto global.

A temporalidade da charge é um fator que merece destaque. Por se alimentar do noticiário tanto local quanto global, a charge se torna um gênero ancorado em uma pequena temporalidade, isto é, um tempo brevíssimo que se extingue no momento em que um outro assunto emerge, assim como muitos textos da esfera jornalística de natureza fugaz pela dinamicidade e rapidez com a qual a informação se dissemina. Atualmente esses gêneros perdem a validade cada vez mais depressa, devido à velocidade com a qual as informações se espalham pelo globo por meio de veículos de atualização 24 horas, como a maioria dos sites jornalísticos. Essa rapidez tem diminuído a vida útil de notícias, por exemplo. A charge, temporalmente falando, aproxima-se da notícia por esta “caducar” e ter uma vida útil curtíssima. O fator temporal, portanto, é determinante para o texto chargístico. Sobre o tempo e o espaço, Eisner (2010, p. 23) indica-nos que “por estarmos imersos durante toda a nossa vida num mar de espaço -tempo, grande parte da nossa aprendizagem é dedicada à compreensão dessas dimensões”, sendo a compreensão desses elementos extremamente importantes para a charge, seu cronotopo, ou seja, a relação indissolúvel entre tempo e espaço. Amorim (2006) nos explica que “cronotopo” ao lado de “Exotopia” são conceitos que falam sobre a relação espaço-tempo, sendo o primeiro pensado inicialmente para o âmbito do texto literário e o segundo, para a atividade criadora em geral. Ambos os conceitos bakhtinianos são importantes para se entender a charge.

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visão dialógica, não exclui o entorno e os sujeitos. Desse modo, os índices de espaço, que não é apenas físico, e tempo, que não é exclusivamente o cronológico, os quais se fundem e despontam no enunciado podem ser chamados de cronotopo. O espaço aparece como uma unidade de criação a partir das circunstâncias assim como o tempo. Como exemplo, podemos pensar que sentimos a diferença no mesmo tempo cronológico quando estamos em uma sala de aula e em uma conversa animada. O tempo parece mais longo em um e mais breve em outro quando, cronologicamente, são idênticos. O mesmo ocorre com o espaço ao passo que a sala de aula pode ser a mesma fisicamente, porém, completamente diferente em se tratando de diferentes turmas que frequentam o mesmo lugar, não constituindo, assim, um mesmo espaço. Trata-se de uma atmosfera criada que reveste o espaço e o tempo. Conforme Bakhtin (2010) conceitua, “à interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura, chamaremos cronotopo (que significa ‘tempo-espaço’)” (p. 211). O autor ainda explica que

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices de tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico. (p. 211)

Alves (2012) discute acerca da noção de cronotopo e a desloca do contexto literário, em que foi pensado inicialmente, para o da sala de aula em sua relação com os gêneros discursivos, mostrando que o conceito é passível de transcender o literário e atingir outras esferas. Trazendo essa ideia como constitutiva dos enunciados, distingue-a de contexto e distingue-afirmdistingue-a que

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A partir do acima dito, podemos verificar que a ideia de cronotopo apresenta correlação com a de contexto, porém sob uma visão não externa ao enunciativo, ao contrário apresenta-se como unidade constitutiva do gênero. Dessa forma, como já foi dito, o cronotopo envolve o gênero e é fundamental para sua origem e compreensão. Na charge, essa compenetração entre enunciado e cronotopo adquire um valor especialmente forte no que diz respeito à gênese e compreensão, em razão de o cronotopo ser extremamente relevante para a interpretação chárgica e sem ele não ser possível criar sentidos sobre a charge. Sem vislumbrar o cronotopo não é possível construir o todo chargístico que apresenta dependência sobremaneira um do outro de modo mais incisiva do que em outros gêneros. Voltando o olhar para o corpus que constitui esta pesquisa, podemos evidenciar que há um cronotopo que serve de pano de fundo e corrobora com o aparecimento das charges, sendo esse cronotopo importante para nós ao passo que ele configura uma imagem de homem (Bakhtin, 2010) , sendo a imagem, nesse caso, de Dilma Rousseff criada e refletida nas charges aqui analisadas. Portanto, considerar o cronotopo é atentar para o delineamento que se faz da presidenta. A exotopia situa-se em lugar exterior por meio do excedente de visão. Bakhtin ao tratar da forma espacial da personagem reflete sobre a maneira como o olhar do outro nos completa e de como através desse olhar o outro tem acesso a locais inacessíveis a mim enquanto objeto de admiração, sendo esse olhar importante e, mesmo tempo, constituinte de mim, construindo, dessa forma, uma completude do ser que se baseia na alteridade. Baseando-se no filósofo anteriormente referido, Amorim (2006) nos indica que a criação estética expressa a diferença e a tensão entre dois olhares, entre dois pontos de vista para se realizar, consistindo o trabalho do artista em dois movimentos: primeiro, o de tentar captar o olhar do outro, entrando em seu mundo, colocando-se em seu lugar para tentar alcançar o seu olhar sobre o mundo; e o segundo, de retornar ao seu lugar externo para, então, sintetizar ou totalizar o que vê de acordo com seus valores, sua perspectiva, dando ao objeto admirado acabamento estético. Sobre esse movimento de ida e volta realizado pelo artista a fim de executar seu trabalho, Bakhtin (2011) utiliza-se da metáfora do broto e explica-nos o papel do excedente de visão

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outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento. (p. 23)

O excedente de visão, pois, é a visão sobre algo que lhe é externo e do qual se tem total visão diferentemente do que ocorre com o objeto admirado que tem visão parcial, totalizada por uma imagem mental de si. Esse olhar alcança lugares nunca visualizados pelo objeto com seus próprios olhos, mas alcançáveis pelo outro que corrobora dialogicamente com a constituição da completude do objeto admirado, de modo a apenas na interação entre admirador e admirado é que ambos se constroem, uma vez que um só o é em relação com o outro. Pensando nesse processo para o ato da criação, pusemos o conceito no mundo da vida/cultura por meio da figura do chargista no instante da gestação de seu enunciado. Levando-se em consideração que os quadrinhos já são considerados uma forma de arte e que quem os produz pode ser denominado artista, imaginemos um chargista que trabalha para um veículo midiático e que deve produzir diariamente independente de sua “inspiração”.

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para, então, formular sua crítica. A mesma autora afirma ainda que “o conceito [exotopia] está relacionado à ideia de acabamento, de construção de um todo, o que implica sempre um trabalho de fixação e de enquadramento, como uma fotografia que paralisa o tempo” (AMORIM, 2006, p. 100).

Levando em consideração que todo enunciado é finito e, por isso, sempre recebe acabamento, o enunciado chargístico enquadra a situação e paralisa o tempo, fincando raízes nele para produzir resposta, advindo, daí, sua natureza fugaz que se origina de algo tão fugaz quanto – o fato noticioso. O espaço-tempo na perspectiva exotópica faz-se importante até mesmo para o leitor que para poder interagir com o texto chárgico necessita, muitas vezes, despir-se de si para entrar no mundo da charge com a qual trava diálogo, compreendê-la em sua perspectiva para retornar ao seu lugar exterior e formular seu juízo de valor. Quando isso não acontece, ocorre que o leitor não consegue entrar em diálogo com a charge plenamente, deixando a desejar quanto ao ponto de vista lançado.

Com relação à leitura d charge, esta exige, portanto, que vários conhecimentos sejam acionados: conhecimento do contexto amplo e do contexto imediato, ou seja, da situação macro (que está ligada ao pensamento que rege a cosmovisão da época em que se está, sendo algo de natureza mais ampla e que engloba a cosmovisão coletiva) e micro (as condições imediatas de produção do enunciado, os fatores que incidiram diretamente sobre a constituição do texto) que englobam a charge; conhecimentos específicos quanto à temática abordada – via de regra, a charge apresenta a esfera sociopolítica, porém não se atém unicamente a esse contexto, havendo as que se reportam exclusivamente ao mundo do futebol, a situações peculiares envolvendo personalidades de diversas áreas ou temas outros – para que se possa interpretar os elementos verbo-visuais que se apresentam; conhecimento de natureza geral sobre diversos temas como, por exemplo, informações acerca de personalidades que frequentam a mídia tanto local quanto internacional; conhecimento genérico1 também no que diz respeito ao mundo dos quadrinhos em geral e, em particular, sobre a charge, pois ao sabermos que se trata de uma charge criamos a expectativa de que algum fato que está em alta na mídia será reportado de maneira cômica, crítica e será recriado – ao momento em que se reformula a realidade de modo axiologicamente direcionado, refratada pelo ponto de vista veiculado, sem compromisso com a fidelidade dos fatos,

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mas com sua interpretação e emissão de ponto de vista sobre os mesmos –; entre outros conhecimentos que são movimentados e ativados para uma compreensão responsiva do gênero discursivo charge enquanto enunciado que mobiliza informações várias e estratégias sofisticadas para a expressão do acento valorativo que objetiva.

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Por esta razão, ao nosso ver, observamos que a parte verbal, em muitos casos, entra na charge como um índice interpretante, como ocorre, por exemplo, em enunciados chárgicos em que há a presença apenas de uma legenda para situar o leitor com relação à temática que será abordada, sabendo que o verbal não se restringe apenas a essa função nas charges, podendo isso ser evidenciado por meio dos balões de fala. O imagético, em muitos momentos, apresenta-se como fator-chave que auxilia no condensamento informativo próprio do enunciado chargístico, caracterizando a densidade e complexidade, sendo também fator complicador interpretativamente por não haver uma cultura da leitura da imagem e uma visão da imagem apenas como ilustração ou algo secundário em detrimento à palavra. Acerca da sobreposição do verbal sobre o visual, Neiva Júnior (1986) afirma que

Signos visuais, como gestos e expressões faciais, ocupam um lugar secundário e suplementar em relação à linguagem [verbal], que de fato predomina como modelo comunicacional. O imperialismo da língua transfere para a imagem a obrigatoriedade da referência, que é uma função essencial dos signos linguísticos – apesar de não ser a única. (p. 12)

Tal concepção não é recente e se faz sentir em diversas áreas como é o caso da literatura infantil que apenas começa a voltar os olhos para a imagem depois de Paul Faucher, que a partir dos anos 20, começa a desenvolver um trabalho pedagógico pioneiro na França com o “Álbum do Pai Castor”, que teve grande influência na renovação desse tipo de literatura. Acerca desse trabalho, Coelho (2000) relata que Faucher procurava uma maneira de atingir as crianças mais fundo, de modo a liberar suas potencialidades e as orientasse para atividades em que se engajassem livres e por inteiro, buscando, dessa forma, novos critérios mais adequados, em sua opinião, à criação de um novo aparato educativo que correspondesse “às verdadeiras necessidades das crianças”

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Vemos no trecho supracitado que no primeiro terço do século passado já era predominante a concepção de imagem enquanto auxílio na compreensão do verbal e que já havia esforços de se modificar esse pensamento, visando uma educação visual e alternativa como o processo de aprendizagem infantil. Observamos na própria escrita da autora que se diferencia a “imagem” da ilustração, mostrando que, ainda hoje, não se superou a visão de que a imagem não passa de um “acompanhante” do verbal e que não apresenta complexidade ou profundidade a serem observadas. Para a autora, a imagem é independente do texto por ter uma significação própria e veicular mensagem enquanto a ilustração seria a acompanhante. Pensamos a imagem não de maneira exclusivamente independente, pois levamos em consideração casos como o da charge a qual apresenta, muitas vezes, uma relação de interdependência de sentido entre verbal e não verbal, contudo, concordamos quanto à imagem não depender obrigatoriamente da palavra e ser construtora de sentidos múltiplos por meio da interação intersubjetiva e configurar-se, por essa razão, enquanto texto – espaço de construção de sentidos por meio da interação entre subjetividades. Em uma mesma linha, Vieira (2007) afirma que

Existem novas regras semióticas para a construção de textos com imagens. Os desenhos e as figuras com valor apenas ilustrativo foram deixados para trás. O uso de imagens segue outra direção. Agora, os recursos multimodais tomam parte da composição do sentido do texto. A informação passa a ser transmitida por diferentes modos semióticos. (p. 10)

A imagem, portanto, torna-se lugar de interação intersubjetiva e de emergência de sentidos assim como ocorre no verbal e, por esse motivo, é espaço de gênese e emissão de valores. Concordamos, portanto, com Neiva Júnior (1986) quando afirma que “para que haja imagem é preciso mais do que cores, formas e volumes; é preciso consciência. A imagem é o que resulta de um julgamento; reconhecê-la já é um modo de julgá-la” (p. 26).

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discursivas no que concerne ao imbricamento existente em textos verbo-visuais, observando-se que a união e o entrelaçamento dos dois formatos constituem uma unidade orgânica que visa o mesmo horizonte interpretativo, o alcance de um projeto de dizer comum. É interessante observar a imagem no gênero chargístico por ela ocorrer de maneiras diversas, apresentando-se em alguns casos como extremamente realista em uma concepção de imitação da realidade por meio da representação dos cenários e até mesmo das caricaturas, que de tão próximas da figura real chegam a ter um perfil fotográfico; e em outros de modo “artístico”, mais voltado para o figurativo, para o representativo.

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dominante nas imagens ocidentais, um recurso capaz de harmonizar o estilo dos pintores” (p. 31).

Assim, a imagem quando imitativa apresenta-se como um retrato, uma representação “fiel” da realidade (entende-se “fiel” não no significado dicionarizado, mas no sentido de uma busca de representação que se aproxime do real e não sua cópia, pois, adotando perspectivas de mediação como a de Bakhtin ou Vigotski, vemos a realidade não como algo que nos é dado de maneira direto, porém mediada por meio dos signos). Quanto a isso, Neiva Júnior (1986) afirma que

Quando a relação entre imagem e coisa é imitativa, o suporte da representação funciona como um espelho, devolvendo, serenamente, a aparência do que é representado para o olhar. [...] O espelho é uma boa metáfora, pois supõe uma correspondência termo a termo entre a representação e o termo representado. O espelho é sempre fiel e servil à coisa que ele reproduz. Seu valor de verdade deriva exatamente dessa servidão imediata, sem que seja outorgado à imagem o menor direito de interferência os traços da coisa representada. A coisa rege e reflete-se na imagem, irrefletidamente. (p. 48-49)

A metáfora utilizada pelo autor toca na questão aristotélica da mimese e da verossimilhança em decorrência de haver nesse caso uma tentativa de imitação da realidade, porém a constituição de um cenário que não existe, mas que potencialmente pode vir a existir por sua aproximação com a realidade. No entanto, a perspectiva da imagem como imitativa está em paralelo de maneira dicotômica com a imagem não imitativa, aquela que não tem a pretensão de recriar a realidade sob um viés imitativo, tendo em vista que tanto a imitativa quanto a não imitativa recriam a realidade a que se relacionam, a primeira enquanto representação mimética e a outra enquanto metáfora por via, muitas vezes, subjetiva. Tal imagem toca a realidade de uma maneira refratada, verticalizada ao tentar quebrar com a “acostumação” do olhar sobre um referente de modo a haver uma recriação, em muitos casos, drástica do objeto, apresentando-se como tendência atual desde a explosão modernista nas artes em geral, a qual experimenta a realidade de maneiras várias. Neiva Júnior (1986) versa sobre isso ao dizer que

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mutante, a ponto de ser uma apresentação pura que escapa aos confins do corpóreo. Este não é mais o limite. Aspira-se à apresentação imagética dos processos mentais. A imagem, agora, pode atingir o incorpóreo; ela legitima o real. (p. 81)

O aspecto recriador da realidade que se apresenta por meio do imagético na charge legitima-se por meio do olhar refratado e criador do autor e completa-se pelo olhar do sujeito que entra em diálogo com o enunciado chargístico. Dessa forma, o não verbal chárgico não tem postura ilustrativa ou decorativa, porém é elemento constituinte e, por vezes único, motivador para a geração de sentidos no que tange aos acentos de valor que por meio dele são propagados. A leitura da imagem chargística é parte integrante do enunciado. Os signos plásticos devem ser igualmente considerados.

Joly (1996) ao analisar um anúncio publicitário trata da mensagem visual e assinala três constituintes seus: a mensagem icônica, a mensagem linguística e a mensagem plástica. A primeira está relacionada às imagens presentes no enunciado e a segunda ao texto verbal. No que tange à terceira, o autor nos explica que

[...] Entre os signos visuais que compõem uma mensagem visual, figuram os signos plásticos. A distinção teórica entre signos plásticos e icônicos remonta aos anos 1980, quando o Grupo Um, em particular, conseguiu demonstrar que os signos plásticos das imagens – cores, formas, composição, textura – eram signos plenos e inteiros e não simples material de expressão dos signos icônicos [...]. Ao nosso ver, essa distinção fundamental permite detectar que uma parte da significação da mensagem visual é determinada pelas escolhas plásticas e não unicamente pelos signos icônicos análogos, embora o funcionamento dos dois tipos de signo seja circular e complementar. (p. 92)

Assim, além do verbal e do não verbal há o signo plástico que está relacionado ao traço, à textura, às cores, ao ângulo, à diagramação, dentre outros os quais são tão importantes quanto a imagem e a palavra, tendo em vista que também veiculam sentidos e nos movem a impressões que nos levam a determinadas interpretações. Na análise feita, o autor lê respectivamente: suporte, moldura, enquadramento, ângulo de tomada, composição, diagramação, formas, cores, iluminação e textura, mostrando como cada um desses itens corrobora para que se chegue a uma construção de sentidos em enunciados que se utilizam de diversas modalidades.

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Esse gênero textual requer uma dupla movimentação de leitura, englobando a percepção concomitante de duas máscaras: a primeira da seriedade / autoridade e a segunda da ridicularizarão. No caso da segunda, esta traz o bojo da simultaneidade desses movimentos opostos, mas justapostos, que se sedimentam como efeito de sentido da charge. (p. 38)

Dessa maneira, o humor que se apresenta nas charges pode ser interpretado como algo que traz para si a face do sério, representada através da explicitação do discurso oficial – afinal de contas, o discurso sério sempre vem atravessado pelo peso e legitimação da seriedade, tom que coloca o enunciado em um patamar de importância perante a sociedade -, e, concomitante a isso, a face do risível, que retira o peso por meio da leveza do riso e da atmosfera que o circunda – uma vez que, via de regra, um texto com traço humorístico raramente é “levado a sério” no social em razão da pouca ou nenhuma importância que se dá e da subestimação que gira em torno desse tipo de texto.

Em suma, a charge é majoritariamente enunciativa, não sendo possível ler ou analisar uma charge descartando as relações dialógicas estabelecidas, o cronotopo e os valores que nela se apresentam. A realidade é recriada e apresenta-se sob a forma de palavras, imagens, traços, cores e outros elementos que servem de espelho convexo o qual reflete as diversas situações conforme suas orientações valorativas, comungando com o que Ferreira (2006) pensa sobre a relação entre o social e a charge: “O corpus da charge é a sociedade em que está inserida, ou seja, seu ‘pano de fundo’ é a realidade vigente, especialmente os aspectos sociais e políticos” (p. 33).

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3 Riso e o risível: uma temática pensada em diferentes épocas e sob diversos olhares

Ao falar sobre charge não podemos deixar de enfocar a questão do humor, tendo em vista ela que é um gênero humorístico, que visa causar uma crítica por meio do humor. Magalhães (2010) nos afirma que os textos de humor acabam por revelar as visões que a rede social brasileira tem sobre ética, moral e verdade, sendo importante por essa razão importante esclarecer a questão do riso dos brasileiros por meio dos textos de humor. Principalmente por meio da charge observamos o modo como as cosmovisões se explicitam por meio da linguagem tanto verbal quanto não verbal e o humor é uma das estratégias das quais a charge faz uso para acentuar sua crítica, fazendo dela uso peculiar se pensarmos em paralelo com outros gêneros que também buscam a crítica social só que por um viés de seriedade. O humor, portanto, contribui muitíssimo para a realização dessa crítica de maneira, muitas vezes, mordaz, pois, por haver uma visão do cômico enquanto unicamente alegre, muito passa despercebido pelo relativismo próprio do cômico. Sem a presença do elemento cômico, provavelmente, a crítica feita teria de ser atenuada, pois o caminho da seriedade abre brechas também para repreensões mais duras. O tom de brincadeira faz que com a força da crítica seja atenuada, porém não as anula, apenas as tornam mais aceitáveis por não serem levadas a sério.

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de reflexões chomskyanas e traz Bergson, dizendo que sua contribuição para a semântica do humor é a distinção entre humor expresso e humor criado, o primeiro é o humor espontâneo enquanto o segundo admite determinadas intenções e situações que direcionam a construção do humor, lugar onde se enquadraria o humor chargístico. Sobre o efeito de humor, Raskin diz que há duas premissas: o texto ser compatível com duas proposições que se opõem e que sejam percebidas como opostas em determinado contexto, sendo com elas o humor criado sob três aspectos: dicotomia real/irreal, oposição de discursos e categorias da existência humana, atual/não atual e absurdo/possível. Assim, o humor é visto como uma relação de proposições diversas, em que o sentido é produzido nas brechas dessas oposições. O autor ainda acrescenta que do ponto de vista psicológico o humor e o riso são apenas estratégias de dissimular estados mentais como timidez e nervosismo, mecanismo de defesa. Já Magalhães (2010) pensa que

O humor requer percepção de todos os elementos que constituem a relação de planos de leitura – a ambiguidade e a polissemia de cujas presenças o ouvinte tem consciência, mas isso não significa que seja sempre capaz de processar o significado duplo das sentenças ambíguas ao mesmo tempo, uma vez que a elas compete a ligação indireta com um determinado fato discursivo de qualquer natureza. (p. 27)

Além desse pensamento, Há o de Fry apud Magalhães (2010) ao tratar do humor em charges políticas afirma que

O humor é jogo que possui elementos nos quais se incluem o sentimento de repulsa ou desprezo, desconfiança, deboche e desesperança sob determinado aspecto, como ocorre nas charges políticas, por exemplo, em que a figura do político é denegrida de forma persuasiva, a partir das críticas convincentes do autor. (, p. 30)

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ofensa ou em sensação de poder ou em sensação de ameaça, ao invés de alegria ou de descontração. Neste momento, há a troca de cosmovisões entre o que é apregoado pela charge e pelo sujeito. Para que o riso possa nascer, faz-se necessário muitas vezes que abramos mão de nossa forma de ver o mundo para entrar no jogo de visão da charge. No entanto, quando esse acordo não existe, muitas vezes, como disse Veatch, o que deveria ser cômico torna-se ofensa. A abertura do leitor para o universo da charge é extremamente importante para que o gênero atinja a manifestação desejada por seu produtor. Veatch afirma que o humor é a dor que não machuca, sendo necessário que haja abertura para que ele ocorra, pois o humor não coabita com o sentimento de “machucado”.

Sobre o riso, especificamente, em específico, muitos estudiosos, das mais variadas áreas do conhecimento, já se detiveram sobre sua natureza, suas causas, seus benefícios e também seus malefícios. Da filosofia antiga à medicina, diversos pensadores tentaram desvendar a complexa e, para muitos, a enigmática natureza do risível. O historiador Minois (2003) revela na introdução de seu livro “História do riso e do escárnio” que o riso pode ser agressivo, sarcástico, escarnecedor, amigável, sardônico, angelical e toma as formas da ironia, do burlesco, do grotesco. Ele é multiforme, ambivalente, ambíguo. A ironia, o grotesco e o burlesco são formas de gerar riso, são maneiras de provocá-lo. Ainda na opinião do autor, o riso apresenta uma natureza paradoxal, pois tanto serve para exaltar quanto para rebaixar, tanto para o bem quanto para o mau. Especificamente na charge temos a presença de um riso muito singular se comparado ao que aparece em outros gêneros cômicos – tirinhas cômicas, crônicas, piadas, entre outros -, pensando que sua força motriz não é o elemento surpresa, como muitos pensadores concebiam a gênese do riso, mas seu gérmen está na opinião expressa. Isso talvez explique o fato de, por vezes, o riso não suscitar em algumas pessoas, por haver uma “divergência” ideológica tal que causa um efeito de horror ou indignação ao invés do riso. Apesar disso, obviamente a intenção de uma charge é criticar por meio do risível, do cômico. Minois (2003) diz que o interesse pela temática do riso não deveria surpreender, pois

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méritos, suas virtudes terapêuticas, sua força corrosiva diante dos integrismos e dos fanatismos e, entretanto, mal conseguimos delimitá-lo. (p. 17)

Pensando em um contexto de Brasil, famoso por sua gente alegre e sorridente, discordamos do autor ao momento em que diz que o riso é raramente encontrado nas ruas, devido a ser na rua que encontramos esse riso de maneira até mesmo mais estridente do que em contextos cômicos propriamente ditos. Porém, comungamos da opinião do historiador quando afirma que não deveria ser novidade ou surpresa o interesse pelo estudo do riso já que é algo tão presente em nossas vidas e pensado como algo necessário para se ter qualidade de vida. De fato, ainda hoje, após, tantos séculos e até milênios de discussão e reflexão, é curioso não haver ainda hoje, como disse o autor, uma delimitação para o riso. Este já foi cultuado e segregado ao longo da história, indo de visão de afirmação da espécie humana até alforra do diabo.

Os grandes pensadores da Antiguidade pensaram a questão do riso sob diversos prismas. Platão, por exemplo, acredita que o riso é um sinal de fraqueza e arrogância. Segundo Ramos (2011), para Platão,

O riso surgiria partir da mistura do prazer (o riso em si) com uma das dores da alma, a inveja (manifestada na pessoa que é risível). É uma característica do espírito que afasta os homens da razão, do conhecimento de si mesmos, e, por isso, seriam prazeres falsos. Ocorreria o mesmo com as manifestações artísticas, que configurariam uma aparência do real, afastando as pessoas do conhecimento filosófico. Por isso, o riso e as artes são condenados por Platão. (p. 37)

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Aristóteles também refletiu sobre a questão e na obra De partibus animaluim lança a grande premissa acerca do riso ao dizer que o homem é o único animal que ri, não sendo apenas nesse texto em que o filósofo pensa o riso mas este aparece tanto na sua Retórica quanto em sua Poética. Skinner (2002) sob uma visão aristotélica da questão afirma que o risível é um aspecto do vergonhoso, do feio e do baixo, cabendo o riso aos inferiores e o fenômeno aparecendo como reprovação dos vícios humanos. Cícero apud Skinner (2002) em De oratore compartilha essa concepção e a utiliza no que diz respeito a retórica ao assinalar que

O campo próprio e, como se poderia dizer, a província do riso estão restritos a temas que são, de alguma forma, ou indignos ou deformados. Pois a causa principal, se não a única causa, da hilaridade são aqueles tipos de observações que mencionam ou distinguem, de uma maneira que em si mesma não é inconveniente, algo que é de algum modo inconveniente ou indigno. (p. 20)

Conforme Ramos (2011), Aristóteles aborda o riso sob três ângulos: o da poética, possivelmente discutido no livro dois da Poética, surgindo o cômico em oposição ao trágico em lugar inferior (“A comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiura sem dor nem destruição; um exemplo óbvio é a máscara cômica, feia e contorcida, mas sem a expressão de dor” - Poética, p. 24); o da física, ocorrendo dentro de uma perspectiva médico-filosófica; e o da retórica, sendo utilizado para desviar a atenção do público quanto ao que é dito e tornando o tema mais favorável, a qual inspirou Cícero e Quintiliano. O riso estava presente na Antiguidade também por meio da mitologia, colocando o riso como marca da vida da divindade por meio de mitos como o citado por Reinach apud Minois (2003)

Tendo rido Deus, nasceram os setes deuses que governam o mundo... Quando ele gargalhou, fez-se a luz... Ele gargalhou pela segunda vez: tudo era água. Na terceira gargalhada, apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino, na sexta; o tempo. (p. 21)

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gregas era um marco importante e é tido como uma conexão com o divino, pois os deuses também riam tanto dos humanos quanto entre si, apresentando-se o riso festivo como irrupção do caos e sua autodestruição. Também traz o sentido de válvula de escape no que concerne à violência e à brutalidade que são próprias do humano, preservando a manutenção do bem-estar social, um modo de suportar a vida. Sobre isso, Lorens apud Minois (2003) afirma que “O riso é uma ritualização do instinto de agressão que existe em cada um de nós; ele permite controlar e reorientar nossas tendências naturais para a brutalidade, a fim de tornar possível a vida social” (p. 35).

Diversos pensadores clássicos se detiveram a refletir sobre a questão do riso, tendo diferentes visões sobre o mesmo fenômeno e chegando a Idade Média. De acordo com Ramos (2011), nessa época o riso esteve muito associado à visão teológica e apresenta como resumo o seguinte silogismo: “Cristo, Deus feito homem, não demonstrava ter rido nos textos bíblicos; os homens devem ser imagem e semelhança de Deus; logo, não é próprio do homem rir” (p. 38). No trecho citado, a última parte não coloca em contraposição o pensamento Aristotélico ao medieval. Quer dizer que, como imitadores de Cristo e atentando para o fato de que, segundo os teólogos da época, não há menção sequer um sorriso por parte de Jesus, o bom cristão, como aquilo que todos devem aspirar para salvação de sua alma, não deve rir em razão de Cristo não ter rido. As trincheiras que se colocam entre a religião e o riso aparecem já na era aristotélica, quando se inicia um processo de negativização do fenômeno ao se observar que apenas as leis e a religião devem ser isentas do risível pelo fato de o riso ser provocado pelas imperfeições e fissuras existentes, crendo a criação divina perfeita e, portanto, irrisível, havendo uma mudança no paradigma riso-divindade que acreditava, como já foi dito, ser o riso um meio, um canal que leve à divindade. A Igreja Católica, instituição religiosa predominante, tanto política quanto ideológica na Idade Média, trouxe muitos pensadores que reforçaram e propagaram a tese do riso enquanto oposto ao divino, chegando a ser associado com o diabo, considerado o inimigo de Deus e representação do mau, começou, assim, uma diabolização do riso.

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Contudo, eis que o Maligno se envolve. Porque é ele, dizem-nos as exegetas, que se esconde sob os traços da serpente bem-falante que tantos filósofos escarnecem. O pecado original é cometido, tudo se desequilibra e o riso aparece: o diabo é responsável por isso. Essa paternidade tem sérias consequências: o riso é ligado à imperfeição, à corrupção, ao fato de que as criaturas sejam decaídas, que não coincidam com seu modelo, com sua essência ideal. É esse hiato entre a existência e a essência que provoca o riso, essa defasagem permanente entre o que somos e o que deveríamos ser. O riso brota quando vemos esse buraco intransponível, aberto sobre o nada e quando tomamos consciência dele. É a desforra do diabo, que revela ao homem que ele não é nada, que não deve seu ser a si mesmo, que é dependente e que não pode nada, que é grotesco em um universo grotesco.” (p. 112)

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passou a “tolerar” o riso, embora ainda guarde consigo uma esfera de gravidade até a nossos dias, começando a entrar nos palácios por meio da presença dos bobos da corte, cuja função era fazer o riso emergir no seio da monarquia. Porém, a grande manifestação do risível se dá nas festas – as charivaris e, principalmente, o carnaval são exemplos -, sendo elas genuinamente festivas e fazendo parte da vida de toda sociedade. O riso era ingrediente fundamental de todas as festividades medievais. Bakhtin investigou o fenômeno durante a Idade Média e trataremos de sua concepção na próxima seção.

Com a nova postura emergente no que tange ao riso que se metamorfoseou ao longo da Idade Média, inicia-se no Renascimento uma nova fase que traz ventos novos para as questões do riso com base em sua explosão, apresentando um cunho científico fisiológico e psicológico para a temática com Laurent Joubert e seu Tratado sobre o riso de 1579. De acordo com Ramos (2011), a preocupação com o estudo do riso nessa

perspectiva não era ética ou teológica, mas terapêutica e relata que Joubert se baseou em princípios medicinais para explicitar os efeitos do riso no corpo humano.

O riso, para ele [Joubert], tem uma motivação externa ao corpo, que chega até o homem pelos ouvidos (através das palavras) ou pelos olhos (através das coisas). [...] No organismo, o riso passa por uma espécie de ‘circuito’. Penetra nos seres pelos sentidos, vai até o cérebro (que não mantém controle sobre ele), atinge o coração (que se expandi e se contai) e o diafragma. Todas as demais consequências físicas, como tremores, rosto rubro, respiração ofegante, são vistos como acidentes do riso, algo como um efeito colateral. (p. 39)

Além de Joubert, muitos outros se detiveram ao estudo medicinal do riso inspirados em Hipócrates, médico da Antiguidade, o qual observa o riso de Demócrito – personagem da Antiguidade considerado amigo do riso devido a na Grécia antiga todos os filósofos terem aderido à reflexão sobre o tema, tomando partido contra ou a favor -, o qual se isolara e fora considerado louco, e o interroga quanto a sua causa

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