• Nenhum resultado encontrado

A perspectiva da vítima

No documento MARIA GABRIELA VIANA PEIXOTO (páginas 69-73)

2. A PRÁTICA JURÍDICO-PENAL DIANTE DO DISCURSO

2.1 A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA NO DISTRITO FEDERAL EM

2.1.2 O furto e o bem jurídico

2.1.2.3 A perspectiva da vítima

Restou diagnosticado pelas entrevistas realizadas com as vítimas de crimes patrimoniais que a busca pelo Estado sinaliza para a necessidade de resgatar o bem que lhe foi tirado, ou para garantir amparo que faça cessar o sentimento de insegurança:

E estava com objetos no carro para vender. Sou vendedor e tinha acabado de encher o carro para levar as coisas para a feira. E o pior é que eles destruíram tudo, rabiscaram todo o carro e acabaram

com o motor (...) Demorou um pouco. Fiquei revoltado com o tempo, tive eu pedir dinheiro para arrumar o motor que destruíram. O carro achou rápido. Fiquei revoltado. Olha eu acho que esse cara deveria ter que me pagar o meu prejuízo, pois fiquei sem carro e ainda com dívida (vítima de furto)

[Se] a polícia tivesse tomado atitude antes, não chegaria ao ponto que chegou. Então, assim, não me sentiria ameaçada em ir trabalhar todos os dias, porque ele poderia muito em um dia... ele usava droga, eu sei disso, ele poderia ter cheirado e ter me pegado na rua, independente de nada (vítima de furto).

Além disso, essas falas também sinalizam que a interferência da vítima é muitas vezes importante para que a investigação policial seja realizada. O seu empenho em comunicar o fato à polícia, em fornecer dados para a identificação do autor ou para a localização do bem, em efetuar o flagrante, exerce influência para que haja o início de um inquérito policial.

Foram recorrentes falas que denunciaram serem as vítimas as responsáveis para que a polícia tivesse a notícia do crime, ou mesmo que revelaram sua interferência diretamente na autuação e identificação dos autores da conduta criminalizada:

Sim acompanhei, eu acho que um ponto foi que eu corri atrás do processo, corri atrás de solução. Primeiro quando eu cheguei na delegacia não queriam me dar um retorno nenhum, era um caso de furto e era comum na Ceilândia, não tinham tempo nem resposta. Então eu cheguei tive que fazer alguns telefonemas cheguei com o endereço dos ladrões e os nomes deles pra delegacia, com tudo, eu corri atrás porque minha indignação era muito anterior ao fato meu carro, não foi uma questão de ter sido meu carro, mas é porque tinham um estoque de furto naquele local, meu carro era o 13 em um ano, eu cheguei com tudo pronto. [...] Se eu não tivesse feito pressão na delegacia, se eu não tivesse pressionado, porque eu pressionei, por que pra eles é comum o que é que tem... [...] Se eu não tivesse pressionado não teria acontecido absolutamente nada, não teria chegado a ponto algum, tinha acabado em pizza, não teria nem tido ocorrência praticamente (vítima de furto).

O processo caminhou bem na minha opinião, como foi flagrante eu é que peguei o ladrão e chamei a polícia eles foram lá e tudo se resolveu (vítima de furto).

A experiência que eu tive é o seguinte foi um roubo de um tênis eu vi o cara entrar na minha casa e pegou o tênis que tava assim na varanda. Só que meu filho foi atrás dele, só que nesta corrida do meu filho ele correndo e meu filho atrás dele pra pegar o tênis tinha 2 policiais que andavam na quadra eles andavam de bicicleta então os policiais conseguiu pegá-lo (vítima de furto).

Ainda que a legislação vigente no Brasil determine que a ação penal dos crimes de furto não dependa de representação da vítima, pois em regra é pública

incondicionada, as evidências empíricas anteriormente descritas indicam como a iniciativa da vítima exerce forte influência para o início de uma investigação criminal de crimes de furto.

No entanto, na perspectiva das vítimas dos casos de furto estudados, ainda que tenham sido essas suas expectativas iniciais frente ao sistema de justiça criminal, o dimensionamento do conflito do qual fizeram parte representou um somatório de múltiplos fatores. Não é a posse em si, nem a propriedade o mais reclamado ao fim do processo. Para além do prejuízo patrimonial advindo do furto, outros traumas, tão importantes quanto este, estão agregados.

É o que se depreende das entrevistas realizadas com as vítimas do referido crime patrimonial, segundo as quais, os traumas vividos da experiência do delito são para além da perda da posse e/ou da propriedade. Isto é não giram, tão-somente, em torno do objeto do furto em si. Falas que indicam a ausência de reparação do dano ou que tratam das perdas irreparáveis (associadas ao valor afetivo agregado ao bem perdido) estão presentes.

Por exemplo, percebeu-se que a lesão sofrida pela vítima não se resume ao dano patrimonial, somando-se a ele um elemento de abalo psicológico. Neste sentido, destaca o seguinte trecho de entrevista com uma vítima em que essa repercussão extrapatrimonial do conflito fica patente:

Mas a questão não era a máquina se ela quisesse ela podia até ficar, a questão era o conteúdo que estava dentro da máquina e como ela não sabia nem manjar a máquina ela simplesmente puxou o filme, isso foi o que mais me chateou. “Olha se você soubesse pelo menos tirar o filme”. Eu não queria nem saber de máquina. Porque para mim era o de menos. Porque parte da história ficou perdida, tenho todas as outras e essa não [...] as lembranças ficaram marcadas só na mente. (vítima de furto).

Nesse ponto, faz-se remissão ao dilema indicado por parte da doutrina acerca da existência de crime patrimonial estar condicionada à lesão de interesse economicamente apreciável (BITENCOURT, 2007, p. 12-13). Como visto, para as vítimas, a compreensão é de estarem agregados valores não monetários, mas que são igualmente patrimoniais aos bens delas furtados.

Destaca-se, no entanto, outro fator a ser agregado ao referido somatório de múltiplos fatores. Trata-se da desproporcionalidade entre o trauma sofrido pela perda do bem e o que adveio da relação negativa com a justiça criminal, pois o acesso ao sistema de justiça além de precário e humilhante não garantiu respostas do que aconteceu com o

processo ou mesmo que não sobreviessem represálias por parte dos réus. Daí a associação do fato a extremo sofrimento, impunidade, inferioridade; revolta, insegurança, medo e impotência.

Primeiro quando eu cheguei na delegacia não queriam me dar um retorno nenhum, era um caso de furto e era comum na Ceilândia, não tinham tempo nem resposta. Então eu cheguei tive que fazer alguns telefonemas cheguei com o endereço dos ladrões e os nomes deles pra delegacia, com tudo, eu corri atrás porque minha indignação era muito anterior ao fato meu carro, não foi uma questão de ter sido meu carro, mas é porque tinham um estoque de furto naquele local, meu carro era o 13 em um ano, eu cheguei com tudo pronto (vítima de furto).

Eu entrego um rapaz que mexe com drogas, que vive no submundo do crime, ele vai solto. O que eu vou pensar? Eu vou pensar que a qualquer momento ele vai me pegar (vítima de furto).

[Se] a polícia tivesse tomado atitude antes, não chegaria ao ponto que chegou. Então, assim, não me sentiria ameaçada em ir trabalhar todos os dias, porque ele poderia muito em um dia... ele usava droga, eu sei disso, ele poderia ter cheirado e ter me pegado na rua, independente de nada (vítima de furto).

Teve um processo. Eu vim aqui retirar o processo, eu vim aqui para o juiz e pedi para retirar o processo, porque todo o processo que estava acontecendo, só estava me trazendo transtorno. Só, eu estava sendo chamado para audiência, eu estava sendo chamado para alguma coisa, outra coisa, eu vim aqui e disse: “Senhor juiz, eu queria lhe fazer um pedido, para retirar o processo, porque eu não vi nada que acontecesse de melhor a partir do momento que eu tivesse ido na delegacia. Porque eu tinha adquirido meus bens materiais, nada, porque isso aí não era problema, não. Eu já gastei muito mais, em transporte para ir para lá, gasolina, perdendo tempo que eu tenho uma empresa, em deixar minha empresa só lá, ficar sentado aqui em bancos para audiência, para correr para um lado, para outro. Quer dizer, se eu somo todo esse tempo que perdi, daria muito bem para eu ter comprado um som novo, ter comprado um aparelho para mim, a parabólica e esse terceiro objeto, que eu não lembro qual foi”. Eu digo para você, a justiça é muito falha. Infelizmente, nós estamos em um país que a impunidade é muito grande, não sei aonde nós vamos parar, porque eu sou pequeno, eu sei que sofro, a corda só quebra do lado do mais fraco (vítima de furto)

No meu caso não cheguei ir ao juiz não, sempre fui de bem. Quando eu fui fazer a ocorrência o próprio delegado me jogou um balde de água fria, rapaz esta moto tu jamais acha, eles poderiam levantar mais meu astral, a você vai achar acabou que eu é que achei a moto, não tem mais jeito, na hora ele nem colocou uma viatura pra correr atrás, eu fui lá e assina aqui e em duas quadras eu achei ela[...] (vítima de furto)

Esse breve dimensionamento acerca da perspectivas iniciais e finais das vítimas com relação ao furto ganha importância ao considerarmos ser entendimento para a doutrina penal de que para a configuração do crime de furto é irrelevante a identificação e individualização da vítima, pois a lei não protege o patrimônio de alguém em particular, mas de todos em geral (BITENCOURT, 2007, p. 6). O que é contraditório com o diagnóstico de que a vítima acaba por ter um papel de destaque para que a notícia do crime chegue à polícia e de ser sujeito, com expectativas e frustrações, dentro da relação que se constituiu ao longo do processamento do caso de furto.

No documento MARIA GABRIELA VIANA PEIXOTO (páginas 69-73)