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O discurso jurídico-penal ignora a baixa operacionalidade do sistema

No documento MARIA GABRIELA VIANA PEIXOTO (páginas 114-117)

3. A FUNÇÃO REAL DA CRIMINALIZAÇÃO DO FURTO

3.2 A PRÁTICA IGNORADA PELO DISCURSO

3.2.5 O discurso jurídico-penal ignora a baixa operacionalidade do sistema

Se os estudos criminológicos buscaram demonstrar a real operacionalidade do sistema de justiça criminal, revelando a não correspondência entre ela e a forma pela qual os discursos jurídico-penais supõem que o sistema atue, importante destaque pode ser dado ao fato de que reduzidos casos efetivamente chegam à última instância de criminalização, representada pelos mecanismos de execução da pena.

Já era sabido que nem todo crime é apresentado ou recepcionado no sistema de instâncias formais de controle, ou conhecido pela polícia, confirmando a disparidade entre o programa elaborado pelas agências de criminalização primárias e a quantidade de conflitos realmente criminalizados. No entanto, ainda que a criminalidade “nasça”, nem sempre “sobrevive”, pois que

do caudal da criminalidade conhecida pela polícia , nem toda é descoberta ou clarificada, objecto de acusação, julgamento, condenação. A passagem do crime de instância a instância (polícia – acusação – tribunal – administração penitenciária) é inevitavelmente feita à custa da intervenção de margens maiores ou menores de cifras negras21 (DIAS; ANDRADE, 1997, p. 135).

Assim, para além da realidade de que muitas das situações que se enquadram nas definições da lei penal não entram na máquina do sistema penal, em parte pelo grande número de vítimas que não denuncia os fatos puníveis à polícia, tem-se também, que esta

não transmite todos os fatos que lhe são comunicados ao Parquet, o qual, por sua vez, longe de mover processos em relação a todos os fatos que lhe são submetidos, arquiva a maior parte. Isto quer dizer que o sistema penal, longe de funcionar na totalidade dos

21 Acerca da cifra negra, ou criminalidade oculta, ensinam Jorge Figueiredo Dias e Manuela da Costa

Andrade, que “muitas vezes o crime nem chega a nascer como facto estatístico, ou seja, não se dá a sua apresentação ou recepção no sistema de instâncias formais de controle: é o que acontece com a criminalidade oculta, expressão que abrange todo o crime que não atinge o limiar mínimo de crime conhecido pela polícia” (DIAS; ANDRADE, 1997, p. 133).

casos em que teria competência para agir, funciona em um ritmo extremamente reduzido (HULSMAN, 1997, p. 64).

De fato, a “prática” em análise revelou um alto índice de prescrição da pretensão punitiva e executória nos casos de furto no Distrito Federal, revelando uma baixa operacionalidade do sistema de justiça que o acompanha em todas as fases do processo de criminalização.

A superação da ideologia da defesa social evidenciara o mito da igualdade do direito para todos, e consequentemente o pressuposto defendido pelo discurso dogmático, o qual busca imprimir racionalidade ao direito penal pressupondo sua ubiquidade em regular as relações dos indivíduos em sociedade e destes com a mesma sociedade. Assim, inequívoco afirmar que a legalidade processual não se realiza, pois que o poder operado pelos órgãos do sistema de justiça criminal não criminalizam todos os autores de ação típicas, antijurídicas e culpáveis.

No entanto, esta baixa operacionalidade está vinculada à própria estrutura do sistema penal montado para que ela não opere e para que exerça seu poder com arbitrariedade seletiva dirigida aos setores vulneráveis (ZAFFARONI, 2001, p. 27). Única resposta plausível ao questionamento suscitado por Louk Hulsman: “pode haver algo mais absurdo do que uma máquina que se deva programar com vistas a um mau rendimento, para evitar que ela deixe de funcionar?” (HULSMAN, 1997, p. 64). A descoberta e a teorização da criminalidade oculta e da mortalidade do crime no interior do sistema de instâncias de controle, evidenciaram sua imbricação com os mecanismos de seletividade.

E assim, ao dimensionar essa análise no contexto da totalidade do poder do sistema, será visto como as agências do sistema de justiça criminal exercem, em verdade, uma parcela mínima do mesmo, a qual serve de pretexto para seu verdadeiro exercício de poder. Aqui se denota traços perversos do discurso de justificação do sistema penal, ao procurar legitimar o exercício total de poder do sistema penal como esgotado no ínfimo e eventual exercício que efetivamente realiza (ZAFFARONI, 2001, p. 25), a despeito da inobservância de qualquer princípio sobre os quais o sistema de justiça criminal deveria apoiar-se. Pois que a realização de todos os princípios garantidores do direito penal (legalidade, culpabilidade, humanidade e, especialmente, o de igualdade) acabam por representar ilusão diante da operacionalidade do sistema

penal, a qual está estruturalmente preparada para violar a todos. (ANDRADE, 2003, p. 290). Afinal,

como achar normal um sistema que só intervém na vida social de maneira tão marginal, estatisticamente tão desprezível? Todos os princípios ou valores sobre os quais tal sistema se apóia (a igualdade dos cidadãos, a segurança, o direito à justiça, etc...) são radicalmente deturpados, na medida em que só se aplicam àquele número ínfimo de situações que são os casos registrados (HULSMAN, 1997, p. 65).

A função preventiva atribuída à pena está adstrita a um grupo reduzido no próprio universo dos criminalizados, os quais acabam por figurar como verdadeiros bodes expiatórios dentro da lógica do sistema de justiça criminal.

A desmistificação do princípio da igualdade importa igualmente a absoluta relativização do “princípio da finalidade ou da prevenção”, pautado igualmente pela ideologia da defesa social.

Como visto, o Código Penal Brasileiro consagrou as teorias unificadas da pena ao determinar sua aplicação “conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” (art. 59, Código Penal), as quais podem ser compreendidas nos três níveis de realização do direito penal: a função de prevenção geral negativa corresponde à cominação da ameaça penal no tipo legal; a função de retribuição e a função de prevenção geral positiva correspondem à aplicação judicial da pena; a função de prevenção especial positiva e negativa corresponde à execução da pena (SANTOS, 2008, p. 470).

No entanto, como ensinam Dias e Andrade (1997, p. 409-410), a verificação generalizada da seleção pôs absolutamente em crise a função social de normas que, ainda que sistematicamente violadas, só excepcionalmente são aplicadas. Assim que essas normas, embora satisfaçam certas necessidades da sociedade punitiva, “dificilmente se poderão justificar em nome da eficaz tutela de bens jurídicos. Nem poderá continuar a invocar-se o potencial da prevenção geral que a própria ameaça abstrata da sanção representa”. Além disso, considerando que tais normas são, em verdade, reprodutoras das desigualdades socioestruturais, “corre-se o risco de os delinqüentes funcionarem como bodes expiatórios das frustrações coletivas em geral e das frustrações profissionais dos órgãos formais de controle”.

3.2.6 O discurso jurídico-penal ignora que a principal função da pena se realiza

No documento MARIA GABRIELA VIANA PEIXOTO (páginas 114-117)