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Componentes legitimantes que atribuem função ao direito penal

No documento MARIA GABRIELA VIANA PEIXOTO (páginas 125-130)

3. A FUNÇÃO REAL DA CRIMINALIZAÇÃO DO FURTO

3.3 DESLEGITIMADO PELOS PRÓPRIOS FATOS

3.3.1 Componentes legitimantes que atribuem função ao direito penal

O componente que cumpre a “função legitimante do discurso jurídico-penal”, atribuindo-lhe funções promissoras e positivas foi brevemente apresentado na primeira parte deste trabalho quando tratada da função atribuída ao direito penal em proteger bens jurídicos, e das finalidades atribuídas às penas.

Como visto, a proteção de bens jurídicos insere-se no contexto de busca por uma “etização” ao direito penal com o qual se pretendia racionalizar e, portanto, impor limites à seletividade típica da agência legislativa. Ao direito penal assim concebido estaria reservada a função “positiva”, de preservação de valores éticos sociais fundamentais. Como ensina Zaffaroni (2001, p. 211):

A antiga etização do direito penal do pós-guerra significou a culminância ideológica do programa iniciado com a expropriação do bem jurídico afetado e a consequente exclusão da vítima do modelo penal. A única desculpa para semelhante expropriação era que o sistema penal se erigia em guardião de valores “éticos” superiores dos bens jurídicos. As vítimas eram obrigadas a sacrificar seus direitos em favor de um suposto “magistério ético” exercido pelo poder para garantir o direito de todos. A racionalização baseava-se no princípio de que mais desejável seria que todos internalizassem esses valores, isto sim, muito mais importante que o simples direito individual da vítima.

No entanto, evidentemente, a constatada deslegitimação do sistema penal deixa sem sustento esta teoria, porque ela desconsidera a seletividade do sistema penal, sua arbitrariedade, sua violência, sua corrupção, entre outras características desveladas pela análise criminológica crítica e pelas evidências empíricas apresentadas neste trabalho.

Igualmente Santos (2008, p. 5-6) critica a missão declarada pelo discurso jurídico oficial diante da limitação da proteção de bens jurídicos a ser realizada pelo direito penal em virtude de sua subsidiariedade e fragmentariedade. Subsidiária, pois é reconhecida a atuação de outros meios de proteção mais efetivos do instrumental sociopolítico e jurídico do Estado, para além do direito penal, no que se refere à proteção de bens e valores caros à sociedade; e, fragmentária porque não protege todos os bens jurídicos definidos pela Constituição da República, além de esta proteção ser apenas parcial.

Assim, ante a constatação da deslegitimação do sistema penal o sentido protetivo de bem jurídico que se quer emprestar à norma penal é irracional, pois que desvinculado da realidade. Realmente, se de um lado a legitimidade da atuação estatal está vinculada a que sua atuação se faça necessária para impedir a interferência no pleno gozo de direitos fundamentais de um indivíduo, por outro, deve-se atentar que não será o direito penal a dirimir esta questão. Ele verdadeiramente atua somente após o fato, o que denota seu caráter eminentemente sancionador de interferência após este ter-se concretizado.

O sentimento que fica é que a proteção de bens jurídicos trata de mais um valor simbólico não realizável pelo direito penal, uma vez que o caráter deste é eminentemente coercitivo, pois está limitado a atuar a posteriori. Põe, portanto, em xeque, não só a função do direito penal declarada por esta premissa, mas igualmente quando vislumbrado enquanto princípio fundamentador da criminalização primária e norteador da secundária.

Sobre esse mesmo ponto, Juarez Tavares (2003, p. 180) também contesta o caráter real da proteção do bem jurídico penal diante da sua utilização como instrumento de manutenção e reprodução da ordem, aspecto não enunciado pelo discurso da dogmática:

Geralmente, insere-se o bem jurídico como pressuposto do tipo, mas na qualidade de objeto de proteção. Na verdade, não se pode instituir como pressuposto do tipo a proteção de bem jurídico, porque essa proteção não possuiu conteúdo real. Em primeiro lugar, não há demonstração de que, efetivamente, a formulação típica de uma conduta proibida proteja o bem jurídico. Em segundo lugar, essa proteção do bem jurídico funciona apenas como mera referencia formal, sem fundamento material. Finalmente, inserir a proteção de bem jurídico como pressuposto do tipo significa uma opção política criminal puramente sistêmica, de tomar o tipo não como instrumento de garantia, mas sim como instrumento de manutenção e reprodução da ordem. Este último aspecto é ignorado pela dogmática, que, simplesmente, aceita a finalidade protetiva atribuída ao tipo como absolutamente irrefutável.

Em verdade, essas reflexões devem ser estendidas para a própria compreensão, a que se quer chegar, acerca do conceito de bem jurídico. O qual foi criado e recriado pela dogmática jurídica, denunciando “que sua criação não é apenas produto da elaboração jurídica pura, mas também de um contexto político e econômico” (TAVARES, 2003, p. 182).

Ferrajoli (2006, p. 432) destaca, como fator de deformação do problema do bem jurídico, a ideia de que uma resposta à questão axiológica externa sobre “o que punir” tenha de fornecer um critério positivo de identificação dos bens jurídicos que requerem tutela penal e das sanções penais correspondentes. Para ele, não se pode alcançar uma definição exclusiva e exaustiva da noção de bem jurídico. “O que significa que uma teoria do bem jurídico dificilmente pode nos dizer positivamente – e não adiantaria nada que nos dissesse – que uma determinada proposição penal é justa enquanto protege um determinado bem jurídico”.

Assim, o conceito de bem jurídico pode nos oferecer apenas uma série de critérios negativos de deslegitimação que, além de indicar a irrelevância ou o esvaziamento do bem tutelado, indicam desproporção com as penas previstas, a possibilidade de uma melhor proteção por meio de medidas destituídas de caráter penal, a inidoneidade das penas na consecução de uma tutela eficaz, ou, inclusive, a ausência de lesão efetiva por ocasião da conduta proibida. Sinalizam a carência de justificação para uma determinada proibição penal ou a punição de uma concreta conduta proibida. Para o Ferrajoli (2006, p. 432-433) “isto é tudo o que se pede à categoria do “bem jurídico”, cuja função de limite ou garantia consiste precisamente no fato de que a lesão de um bem jurídico deve ser condição necessária, embora não suficiente, para justificar sua proibição e punição como delito”.

Partilhando com a função legitimante consubstanciada na proteção do bem jurídico, as teorias da pena, como aduzido por Zaffaroni (2001, p. 183), podem ser entendidas enquanto parte dos componentes legitimantes do discurso jurídico penal, eis que o brocardo justifica o direito penal na proteção de bens jurídicos lesados e na capacidade da pena controlar a criminalidade em defesa da sociedade mediante a prevenção geral e especial.

Afinal, se de cada uma das teorias da pena existentes pode ser deduzida uma teoria do delito e uma concepção da quantificação (ou individualização) da pena, conseguintemente, elas estão insertas na disfuncionalidade entre sistema penal e discurso declarado. Assim, as funções atribuídas às penas – de retribuição da culpabilidade, de prevenção especial e de prevenção geral da criminalidade – denotam, igualmente como o discurso penal e a realidade da pena caminham em direções absolutamente contrárias.

Em verdade, como apresentam Rusche e Kirchheimer (2004, p. 18-19), as teorias penais não apenas contribuíram pouco como tiveram uma influência negativa nas análises sociológicas dos métodos punitivos. Afinal, por elas, a punição é entendida como algo eterno e imutável, o que condiciona, inclusive, o afastamento de investigações de cunho histórico sobre a temática. Consequentemente, a análise das relações eventuais entre método de punição e organização da sociedade ocorre apenas numa esfera limitada. Assim,

Para adotar uma abordagem mais profícua para a sociologia dos sistemas penais, é necessário despir a instituição social da pena de seu viés ideológico e de seu escopo jurídico e, por fim, trabalhá-la a partir de suas verdadeiras relações. A afinidade, mais ou menos transparente, que se supõe existir entre delito e pena impede qualquer indagação sobre o significado independente da história dos sistemas penais. Isto tudo tem que acabar. A pena não é nem

uma simples conseqüência do delito nem o reverso dele, nem tampouco um mero meio determinado pelo fim a ser atingido. A pena precisa ser entendida como um fenômeno independente, seja de sua concepção jurídica, seja de seus fins sociais. Nós não negamos que a pena tenha fins específicos, mas negamos que ela possa ser entendida tão somente a partir de seus fins. [Grifo da autora].

O contrassenso, como destacado por Santos (2008, p. 460), é que a política penal realizada pelo direito penal é legitimada pelas funções atribuídas à pena criminal pela ideologia oficial, destacando que é na ideologia da defesa social onde esta encontra seus fundamentos. Afinal, esta sintetiza “o conjunto das representações sobre o crime, a pena e o direito penal construídas pelo saber oficial e, em especial, sobre as funções socialmente úteis atribuídas ao direito penal e à pena” (ANDRADE, 2003, p. 137). Isto é, no âmbito destas teorias é encontrada a promessa de realização da função instrumental da defesa social e do controle efetivo da criminalidade, ainda que por meio de funções inalcançáveis – prevenção geral negativa e prevenção especial positiva - e outras impróprias à persecução dos fins preventivos – prevenção especial negativa e prevenção geral positiva.

Nesta mesma esteira, Zaffaroni et al (2003, p. 71) afirmam serem as teorias da pena parte do discurso jurídico-penal dominante que busca racionalizar o poder das agências de criminalização. No entanto, o fazem de maneira falseada, pois, ao apresentarem os elementos discursivos legitimantes e de racionalização da criminalização “procedem à generalização de alguma função positiva, a partir de casos particulares (a eficácia comprovada do poder punitivo em algum conflito é por eles estendida praticamente a toda a conflituosidade social sem nenhuma prova empírica), condicionando o resto do discurso”. De fato, no caso em estudo, basta lembrar do baixo índice de cumprimento das penas previstas para o tipo penal de furto, que deveriam ser alternativas, em contrapartida ao alto índice de aplicação de prisões provisórias.

Ainda assim, os modelos legitimantes do poder punitivo são construídos a partir das funções manifestas da pena, as quais atribuem valores positivos à criminalização. E, sob bases equivocadas, é edificado todo o discurso utilitarista do

direito penal o qual se legitima a partir de uma promessa de segurança. Como fora dito, o eficiente processo de legitimação do poder punitivo só foi possível diante da ilusão de segurança propagada por este discurso, o que permite, por outro lado, abrir espaço para que as reais funções do sistema penal quedem latentes e ganhem livre espaço para serem edificadas.

Como se vê, “o sistema de justiça criminal, operacionalizado nos limites das matrizes legais do direito penal, realiza a função declarada de garantir uma ordem social justa, protegendo bens jurídicos gerais e, assim, promovendo o bem comum” (SANTOS, 2008, p. 10). Função esta “legitimada pelo discurso oficial da teoria jurídica do crime, como critério de racionalidade construído com base na lei penal vigente, e pelo discurso oficial da teoria jurídica da pena, fundado nas funções de retribuição, de prevenção especial e de prevenção geral atribuídas a pena criminal”.

No documento MARIA GABRIELA VIANA PEIXOTO (páginas 125-130)