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O discurso jurídico-penal diz operar perante a sociedade de maneira

No documento MARIA GABRIELA VIANA PEIXOTO (páginas 97-101)

3. A FUNÇÃO REAL DA CRIMINALIZAÇÃO DO FURTO

3.2 A PRÁTICA IGNORADA PELO DISCURSO

3.2.1 O discurso jurídico-penal diz operar perante a sociedade de maneira

A conclusão da existência de um “sistema penal subterrâneo”, o qual, a despeito do princípio da igualdade declarado pelo discurso jurídico-penal, age sistematicamente em função da seletividade pode ser visualizado, em parte, no diagnóstico acerca do perfil das pessoas criminalizadas por furto no Distrito Federal. No caso, os réus de furto em sua maioria foram homens jovens, pretos e pardos, desempregados, com um nível de renda e escolaridade muito baixo.

As teorias com base no labelling aproach viabilizaram a discussão dos fundamentos da ideologia penal tradicional, tendo colocado em discussão o principio da igualdade, demonstrando como a criminalidade não é comportamento de uma minoria, mas da maioria dos cidadãos. Caso a capacidade operativa dos órgãos fosse plenamente eficaz ter-se-ia a criminalização várias vezes de toda a população.

No entanto, a disparidade entre o exercício do poder programado e a capacidade operativa dos órgãos, não foge à própria lógica do sistema, denunciada pelas novas correntes criminológicas. É que aqui a criminalidade é entendida enquanto o “status atribuído a determinados indivíduos por parte daqueles que detêm o poder de criar e aplicar a lei penal, mediante mecanismos seletivos, sobre cuja estrutura e funcionamento a estratificação e os antagonismos dos grupos sociais têm influência fundamental” (BARATTA, 2002, p. 113).

Assim, seja o processo da criminalização primária – ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas –, seja o processo de criminalização secundária, execução do programa estabelecido pelas agências políticas responsáveis pelo “que deve ser” apenado – a lógica da seletividade é reproduzida (ZAFFARONI et al., 2003, p. 43). Isso afeta o grau efetivo da tutela de bens, pois a distribuição do status de criminoso ocorre independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não consituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade (BARATTA, 2002, p. 165).

Baratta afirma ser, portanto, justamente nos mecanismos da criminalização secundária onde se acentua o caráter eminentemente seletivo do direito penal. No caso, preconceitos e estereótipos guiam a ação tanto dos órgãos investigadores como dos órgãos judiciais, levando-os a procurar “a verdadeira criminalidade principalmente naqueles estratos sociais dos quais é normal esperá-la”. Nas suas palavras (2002, p. 165):

As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da “população criminosa” aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social (subproletariados e grupos marginais). A posição precária no mercado de trabalho (desocupação, subocupação, falta de qualificação profissional) e defeitos de socialização familiar e escolar, que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos, e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia liberal contemporânea são indicados como as causas da criminalidade, revelam ser, antes, conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído.

Assim, é possível compreender quanto o processo de seletividade é fortalecido com a lógica perpetrada pela criminalização secundária, uma vez que, apesar de a primária representar um passo importante, esta ainda se mantém no nível da abstração. Como explica Zaffaroni et al (2003, p. 44), ante a inviabilidade de realização do programa de criminalização primária faraônico, resta limitada a capacidade operativa das agências de criminalização secundária que não tem outro recurso senão proceder sempre de modo seletivo. “Dessa maneira, elas estão incumbidas de decidir quem são as pessoas criminalizadas e, ao mesmo tempo, as vítimas potenciais protegidas. A seleção não só opera sobre os criminalizados, mas também sobre os vitimizados”.

É importante vislumbrar que esta seletividade direciona-se para pessoas sem poder e para fatos grosseiros e até insignificantes. Atinge, principalmente, aqueles que têm baixa defesa perante o poder punitivo, aqueles que se tornam mais vulneráveis, seja porque suas características pessoais se enquadram nos estereótipos criminais, seja porque sua educação só lhes permite realizar ações ilícitas toscas e de fácil detecção, ou porque a “etiquetagem” suscita a assunção do papel correspondente ao estereótipo com o qual seu comportamento corresponde (a profecia que se autorrealiza) (ZAFFARONI et al, 2003, p. 47)

Esse estereótipo criminal forma-se, a partir de características de pessoas em posição social desvantajosa, reforçando preconceitos racistas e de classe, fazendo crer que este tipo de criminalidade é a única existente. Leva a conclusão falsa de que a pobreza e a educação deficiente são as causas do delito, quando na realidade são estas, junto ao sistema de justiça criminal, fatores condicionantes dos delitos desses segmentos sociais, de sua criminalização; e não o contrário. Como ressaltado por Zaffaroni, et al (2003, p. 46-47), essa seleção criminalizante condiciona todo o funcionamento das agências do sistema penal e representa o

[...] principal critério seletivo da criminalização secundária, daí a existência de certas uniformidades da população penitenciária associadas a desvalores estéticos (pessoas feias), que o biologismo criminológico considerou causas do delito, quando, na realidade, eram causas da criminalização, embora possam vir a tornarem-se causa do delito quando a pessoa acabe assumindo o papel vinculado ao estereótipo (é o chamado efeito reprodutor da criminalização ou desvio secundário).

Como se vê, o sistema de justiça criminal penal atua como um filtro, operando seletivamente sobre pessoas que se encontram sob um determinado estado de vulnerabilidade ao poder punitivo que encontra correspondência, mais baixo ou mais alto, com um determinado estereótipo criminal. Como ensina Zaffaroni, et al (2003, p. 49):

O poder punitivo criminaliza selecionando: a) as pessoas que, em regra, se enquadram nos estereótipos criminais e que, por isso, se tornam vulneráveis, por serem somente capazes de obras ilícitas toscas e por assumi-las desempenhando papeis induzidos pelos valores negativos associados ao estereótipo (criminalização

conforme o estereótipo); b)com muito menos frequência, as

pessoas que, sem se enquadrarem no estereótipo, tenham atuado com brutalidade tão singular que se tornaram vulneráveis (autores de homicídios intrafamiliares, de roubos neuróticos etc.)

(criminalização por comportamento grotesco ou trágico); c) alguém que, de modo muito excepcional, ao encontrar-se em uma posição que o tornara praticamente invulnerável ao poder punitivo, levou a pior parte em uma luta de poder hegemônico e sofreu por isso uma ruptura na vulnerabilidade (criminalização devida à falta

de cobertura).

Para Santos (2009c), apesar de ser legítima a suposição de que variáveis socioestruturais podem determinar a criminalidade como comportamento do sujeito, parece igualmente legítimo afirmar que tais variáveis têm poder maior, e porque não determinante, sobre a criminalização marginalizada. “Carências e déficits sociais não seriam, simplesmente, variáveis independentes no sentido de causas da criminalidade atuantes sobre o indivíduo, mas a própria origem da filtragem do processo de criminalização que produz a clientela do sistema de controle social”.

Daí o perfil tão específico do grupo criminalizado na pesquisa. A expectativa de criminalidade dirigida pelas instâncias oficiais sobre indivíduos já marginalizados faz com que se encontre neles um percentual enormemente maior de tais comportamentos ilegais. É por isto que se encontra a concentração desproporcional de grupos mais débeis e marginalizados da população na criminalização do furto. Os estudos a partir do marco criminológico da reação social já haviam indicado que a clientela do sistema penal é constituída de pobres não porque tenham uma maior tendência para delinquir, mas precisamente porque têm mais chances de serem criminalizados e etiquetados como criminosos. Assevera Andrade (1996, p. 283):

Desta forma, a minoria criminal “perigosa” a que se refere a explicação etiológica (criminologia positivista) resulta de que as possibilidades (chances) de resultar etiquetado, com as graves consequencias que isto implica, se encontram desigualmente distribuídas. E um dos mecanismos fundamentais desta distribuição desigual da criminalidade são precisamente os estereótipos de autores e vítimas que, tecidos por variáveis geralmente associadas aos pobres (baixo status social, cor, etc.) torna-os mais vulneráveis à criminalização; é “o mesmo estereótipo epidemiológico do crime que aponta a um delinquente as celas da prisão e poupa a outro os seus custos”.

3.2.2 O discurso jurídico-penal desconsidera a predominância da baixa lesividade

No documento MARIA GABRIELA VIANA PEIXOTO (páginas 97-101)