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CAPÍTULO 3 – ESCOLHAS ESCOLARES: REFERENCIAIS TEÓRICOS E

3.3. A perspetiva de Pierre Bourdieu: habitus e capital cultural

Em oposição à teoria da escolha racional, autores como Bourdieu e Lahire analisam a problemática das escolhas escolares com base na perspetiva disposicionalista. Bourdieu

42 Segundo Beart e Filipe (2014), esta assunção de que as preferências são constantes contribuiu para a simplicidade do modelo teórico. Todavia, adotá-la a qualquer custo em estudos empíricos pode conduzir a conclusões precipitadas.

79 procura compreender as relações que se estabelecem entre o comportamento dos indivíduos e os condicionamentos resultantes das estruturas sociais. Para o efeito, e no quadro do seu investimento teórico, recorre, sistematicamente, aos conceitos de habitus e capital cultural. Relativamente ao primeiro conceito, o autor salienta que a sua utilização visa “romper com o paradigma estruturalista” em que as ações (escolhas) dos agentes eram reduzidas ao papel de suporte da estrutura, ou seja, segundo o autor seria “necessário e suficiente ir do opus operatum ao modos operandi, da regularidade estatística ou da estrutura algébrica ao princípio de produção dessa ordem observada” (Bourdieu, 1983: 65). Para este autor, o habitus é definido como:

Um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas (Bourdieu, 1983: 65).

Ao colocar o conceito de habitus no centro da sua abordagem teórica, Bourdieu distancia-se, por um lado, da conceção subjetiva da ação (“velha filosofia do sujeito ou da consciência”), segundo a qual os indivíduos organizam as suas práticas de forma autónoma e consciente e, por outro lado, rejeita a conceção objetivista43. Deste modo, o referido conceito servia de ponte de mediação entre a estrutura e as ações dos agentes (Bourdieu, 2011: 59).

Na perspetiva de Bourdieu, as ações dos indivíduos resultam de um processo complexo de interação entre o habitus adquirido ao longo do processo de socialização e a conjuntura onde estes foram socializados. Por outras palavras, o autor procura demonstrar que os indivíduos não agem de forma autónoma. Pelo contrário, as suas ações são orientadas com base na posição social que eles ocupam na estrutura social. Assim, o conceito de habitus constitui uma ferramenta conceptual de grande importância, no sentido de identificar uma certa homogeneidade nas disposições e escolhas dos agentes com trajetórias de socialização semelhantes. Tal como o próprio autor escreve:

Pelo fato de que a identidade das condições de existência tende a produzir sistemas de disposições semelhantes (pelo menos parcialmente), a

43 Bourdieu (2011: 59) “desejava pôr em evidência as capacidades «criadoras» activas,

80 homogeneidade (relativa) do habitus que deles resulta está no princípio da harmonização objetiva das práticas e das obras, harmonização esta própria a lhes conferir a regularidade e a objetividade que definem sua “racionalidade” específica e que as fazem ser vividas como evidentes ou necessárias, isto é, como imediatamente inteligíveis e previsíveis, por todos os agentes dotados do domínio prático do sistema de esquemas de ação e de interpretação objetivamente implicados na sua efetivação e por estes somente (Bourdieu, 1983: 66).

Mais adiante, o referido autor salienta que “o habitus é, simultaneamente, um princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e um sistema de classificação destas práticas” (Bourdieu, 2010: 270). Enquanto “estrutura estruturada”, o habitus direciona o indivíduo para um processo de “divisão em classes lógicas” das opções disponíveis no quadro do processo de escolhas escolares, tendo sempre como base a condição de classe de origem. Assim, as escolhas dos estudantes exprimem de forma objetiva uma diferenciação de habitus resultante da diferenciação social da família de origem.

Na perspetiva de Nogueira (2004), o conceito de habitus permite ultrapassar as limitações da abordagem subjetiva do mundo social, ou concretamente, do processo de escolhas escolares:

Uma abordagem subjetiva do ato de escolha educacional consistiria, por um lado, em tomar as preferências, as aspirações e as representações de si mesmo e da situação envolvida nesse ato como elementos definidos de maneira mais ou menos autónoma pelos atores individuais. Consistiria, além disso, em acentuar a capacidade desses mesmos atores de calcular com distanciamento e objetividade, as vantagens e desvantagens de cada umas das vias alternativas de ação (Nogueira, 2004: 76-77).

Tal como foi já referido, além do conceito de habitus, Bourdieu (1998b: 71-79) formulou o conceito de capital cultural com o objetivo de analisar as desigualdades de trajetórias escolares. Especificamente, o autor procurava compreender como os indivíduos de diferentes classes sociais, detentores de montantes diferentes desse capital específico, obtinham benefícios das opções disponíveis no sistema escolar. Segundo o autor, o capital cultural existe sob três formas diferentes: incorporado, objetivado e institucionalizado. O

81 capital cultural incorporado assume a forma de disposições duráveis, que são transmitidas pela família no decurso do processo de socialização. A acumulação e a incorporação desse capital pressupõem, por parte do recetor, um exercício de assimilação que decorre ao longo do tempo. Por sua vez, este capital desempenha um papel preponderante nas escolhas escolares, uma vez que as referências culturais, bem como o domínio da linguagem, facilitam a apropriação dos conteúdos escolares por parte dos estudantes provenientes de determinados meios sociais. Relativamente ao estado objetivado, o capital cultural existe sob a forma de bens culturais, nomeadamente quadros, livros, dicionários e outros instrumentos. A sua aquisição depende da existência de um capital económico, ao passo que a sua apropriação simbólica obriga à existência de capital cultural incorporado. Finalmente, o capital institucionalizado concretiza- se na forma de títulos e diplomas escolares que podem ser convertidos em outros tipos de capitais, designadamente económico e social.

3.4. Vantagens da perspetiva de Bourdieu como instrumento de análise do processo de